Eu me recordo das minhas viagens com o auxílio das minhas fotos, e quando olho para elas, graças a elas, ocorre uma espécie de ressurreição das minhas lembranças, semelhantes às que surgem vez por outra no decorrer do dia, de maneira muito aguda e precisa, exatamente como se tivesse acabado de vivê-las.
Pierre Verger
Pierre Verger é conhecido por suas pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras praticadas na Bahia, pelo seu interesse pela botânica e pelas histórias comuns ao translado de diferentes povos baseados no continente africano rumo ao Brasil. Mais do que um pesquisador distante desses assuntos que envolviam a alteridade, Verger era também um praticante do candomblé e alguém que se entregava existencial e fisicamente aos lugares por onde passava.
Suas pesquisas, porém, não se iniciaram com o desejo de transformar em palavra as suas experiências; elas despontam em sua juventude e através de uma linguagem em expansão na primeira metade do século XX: a fotografia. Nascido em 1902, Verger parte de sua Paris natal em 1932 e inicia um longo período de viagens ao redor do mundo. Fazer fotografia não é seu objetivo central, mas sim o elemento utilizado para resguardar um fragmento daquelas experiências que poderia levá-lo a outras memórias de um lugar – tal qual dito em sua citação acima. Pouco a pouco, fotografar se transforma em uma maneira de obter alguma renda no meio de seu anseio por conhecer tudo que parecia diferente do seu lugar de partida.
As 145 fotografias presentes na exposição Dorminhocos, em cartaz na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, foram feitas nesse momento da vida de Pierre Verger. São todas imagens produzidas no período entre as décadas de 1930 e 1950, ou seja, da sua saída da França rumo ao mundo até os anos posteriores ao seu encontro divisor de águas com a cidade de Salvador, em 1946. As imagens têm uma constância formal: são todas fotografias de pessoas dormindo no espaço público em diferentes lugares do mundo. O título da exposição é o mesmo título com o qual Verger catalogou algumas dessas imagens em francês: dormeurs, ou seja, dorminhocos. Pela primeira vez essas imagens são todas ampliadas e transformadas no núcleo de uma curadoria.
No projeto curatorial para a exposição, optei por agrupar espacialmente as fotografias de acordo com suas diferentes regiões geográficas. O Brasil foi fulcral para o fazer fotográfico de Verger – mais da metade das fotografias foi produzida na Bahia, Maranhão e Pernambuco, porém é importante perceber como seu percurso foi o de um artista-viajante capaz de produzir imagens em qualquer lugar que estivesse. Regiões como a da China, Argentina, Peru, Congo, Filipinas, México e Polinésia Francesa foram de grande aprendizado e o levaram a produzir imagens dos Dorminhocos que sugerem questões econômicas, raciais, sociais e urbanísticas diferentes daquelas observadas no Brasil.
Trata-se quase em sua totalidade de homens – com exceção das duas fotos em que o corpo feminino está presente e das imagens de um gato e um rinoceronte. Todas as fotografias são produzidas com o auxílio da luz solar e imediatamente incitam dúvidas ao espectador: são momentos de repouso nos intervalos do trabalho ou corpos que se entregam ao cansaço e não sustentam uma postura ativa? Seriam imagens que exemplificam a recusa ao tempo produtivo do trabalho e a entrega ao prazer da sombra nos territórios tropicais por onde Verger passou? Ou ainda, por outra perspectiva, não seria essa série também um espelho da precariedade, da pobreza e da ausência de moradia para certos estratos da população abatidos pela crescente industrialização do mundo? Que relações raciais podemos estabelecer a partir dessas fotografias? Por que no caso das fotografias produzidas no Brasil foram registrados quase que exclusivamente corpos negros?
As respostas variam de acordo com as imagens, mas o fato de que é possível fazer tantas perguntas é diretamente proporcional à sua potência. Os tons de preto e branco constantes na fotografia de Verger criam uma ambiência em que o trabalho é contemplado como uma atividade permeada de melancolia e distante de qualquer discurso edificante. Trabalhar cansa, e uma rotina instaurada por esse valor capitalista e moderno, segundo seu olhar, não parece fazer sentido.
Em um momento histórico em que estamos cada vez mais conectados e trabalhamos muitas vezes sem perceber por vinte e quatro horas e sete dias na semana, a série Dorminhocos contribui com as discussões contemporâneas a respeito da superaceleração já naturalizada tanto no Brasil, quanto no mundo – sem falar das reformas trabalhistas em discussão que podem mudar os direitos em torno da noção de tempo de trabalho e aposentadoria.
Do mesmo modo que essas fotografias de Pierre Verger nos trazem diversas reflexões sociais, também parecem um convite a esse ato presente em todos os seres vivos: o descanso. Olhá-las em conjunto gera uma ambiência onírica que parece nos dizer que perante o excesso, o sono e a recusa à verbalização seguem a ser uma postura instintiva e política. Entreguemo-nos ao seu olhar afiado e ao silêncio.
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A seguir, uma galeria de imagens presentes na exposição. A imagem de destaque no alto do texto foi clicada por Pierre Verger em São Luís, Maranhão, em 1948.
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Autor
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Crítico e pesquisador de arte, curador do Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Niterói-RJ. Professor do Colégio Pedro II. Doutor em Crítica e História da Arte (Uerj).
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Crítico e pesquisador de arte, curador do Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Niterói-RJ. Professor do Colégio Pedro II. Doutor em Crítica e História da Arte (Uerj).