Wilson Moreira fazia canção ‘até de bula de remédio’
Este texto foi publicado em versão reduzida pelo Globo no dia 6 de setembro. A Caju publica agora o ensaio integral, inédito.
***
Fã dos duelos de pipa e dos balões que cruzavam o céu da Zona Oeste, o garoto Amendoim diariamente saía da Rua Mesquita para defender uns trocados na ponte de Realengo. O produto comercializado lhe rendera o primeiro apelido, assim como a vivência no bairro com feições ainda rurais viria a plasmar os desenhos melódicos do futuro compositor. Em 81 anos, Wilson Moreira criou pequenas maravilhas como “Meu apelo”, “Senhora liberdade” e “Deixa clarear” (as duas últimas, parcerias com Nei Lopes), iluminando a música brasileira e aqueles que o conheceram.
Nascido em 1936, Moreira foi entregador de marmita, guia de cegos, bombeiro hidráulico, carcereiro. A veia artística se manifestaria cedo. Ainda era adolescente quando começou a tocar tamborim na Unidos da Água Branca, escola mais tarde incorporada pela Mocidade Independente de Padre Miguel. Na Mocidade, tocou surdo e ajudou a fundar a Ala dos Compositores, tendo assinado dois sambas-enredo, em 1962 (“Brasil no campo cultural”) e 1963 (“As Minas Gerais”), ambos com Da Vila, Jurandir Cândido e Arsênio Isaías. Cinco anos depois, iria para a Portela.
A essa altura, Leny Andrade já havia gravado um samba de Moreira (“Antes assim”, em 1956). E a carreira — pavimentada pela participação no LP “Partido em 5”, um “pau-de-sebo” voltado ao subgênero do partido-alto —começava a ser pavimentada rumo ao primeiro compacto, de 1967.
O encontro com Nei Lopes, seu mais constante parceiro, aconteceu em 1974. O responsável foi o também compositor Délcio Carvalho. “Vou te apresentar um cara que bota música até em bula de remédio”, disse Délcio a Nei, talvez sem imaginar que ajudava a formar uma das mais poderosas duplas da canção brasileira.
Ao lado de Nei, Moreira compôs pérolas como “Gostoso veneno” e “Goiabada cascão”, e lançou um par de discos que hoje integra o rol dos clássicos: “A arte negra de Wilson Moreira e Nei Lopes” (1982) e “O partido muito alto de Wilson Moreira e Nei Lopes” (1985). Moreira e Nei estiveram juntos igualmente na fundação do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, capitaneada por Candeia. No Quilombo, Moreira e Nei emplacaram dois sambas-enredo: o seminal “Ao povo em forma de arte” (1978) e “Noventa anos de Abolição” (1979).
O primeiro LP – “Peso na balança”- nasceria apenas em 1986. Três anos depois, Moreira lançou “Okolofé”. A partir da música-título, homenagem a Grande Otelo, o álbum refletia a peculiar síntese feita pelo compositor, ao juntar samba-de-terreiro, jongo e partido-alto e uma faixa de viés rural, a auto-biográfica “Canção do Carrero”. Os calangos e curimbas que Moreira ouvia quando pequeno, entre os familiares oriundos do Vale do Paraíba, dialogam com o batuque do “samba de sambar”. Produzido para o mercado japonês, “Okolofé” só chegaria ao Brasil passada uma década, o que diz algo sobre como o mercado fonográfico do país trata os gênios do samba.
Entre os dois trabalhos, o artista sofreu um AVC. O acidente, embora o tenha imobilizado parcialmente, não interrompeu a carreira. Em 2002, com o disco “Entidades I”, vem outra série de grandes canções, como “Oloan” e “Jongueiro cumba” (esta, com Nei Lopes). O último álbum seria “Wilson Moreira + Baticum”, que evoca ritmos ancestrais da tradição afro-brasileira e temas do candomblé.
Moreira se preparava para lançar novo CD, “Tá com medo, tabaréu”, viabilizado após uma vaquinha virtual. Já não era chamado de Amendoim, e sim de Alicate, apelido que ganhou de Xangô da Mangueira pelo forte aperto de mão. Mas até a noite de quinta-feira, quando as complicações decorrentes de um câncer na próstata o fizeram sucumbir, manteve acesa a doçura do menino da Vila Vintém.
Autor
-
Escritor e jornalista. Autor, entre outros, dos livros "A lua na caixa d'água" (Malê, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Crônicas), "Rua de dentro" (Record), "Ferrugem" (Record), "Na dobra do dia" (Rocco), "A palavra ausente" (Rocco) e "Somos todos iguais nesta noite" (Rocco). Organizador de coletâneas como "O meu lugar" (com Luiz Antonio Simas, Mórula) e "Canções do Rio" (Casa da Palavra).
Relacionado
Escritor e jornalista. Autor, entre outros, dos livros "A lua na caixa d'água" (Malê, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Crônicas), "Rua de dentro" (Record), "Ferrugem" (Record), "Na dobra do dia" (Rocco), "A palavra ausente" (Rocco) e "Somos todos iguais nesta noite" (Rocco). Organizador de coletâneas como "O meu lugar" (com Luiz Antonio Simas, Mórula) e "Canções do Rio" (Casa da Palavra).