Os contos ||| Lygia Fagundes Telles
Companhia das Letras, 752 páginas.
Esta é a seleção mais completa de contos da maior escritora brasileira viva, sobretudo de uma das maiores contistas que o país já produziu. Lygia ficou célebre por romances como As horas nuas e As meninas, mas sempre brilhou ainda mais forte nas histórias curtas. A edição caprichada da Companhia das Letras, a mais completa lançada até hoje, tem capa dura e reúne, além dos contos presentes nos principais títulos da autora no gênero, como O último baile verde e a A noite escura e mais eu, além de histórias publicadas de modo esparso e hoje fora de catálogo. “Essas pequenas obras-primas, de tão fremente inquietação íntima e que exalam um desespero tão profundo, ganham a clássica serenidade das formas de arte definitivas”, escreveu Paulo Rónai a respeito dos contos de Lygia.
Trecho do conto Objetos:
Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso… Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, vazio. É o peso de papel sem papel, o cinzeiro sem cinza, o anjo sem anjo, fico aquela adaga ali fora do peito. Para que serve uma adaga fora do peito?
Afiadas ||| Michelle Dean
Todavia, 416 páginas, tradução de Bernardo Ajzenberg.
Michelle Dean, jornalista e crítica em revistas como a New Republic e a New Yorker, conta um pouco da história literária e ensaística dos Estados Unidos no século 20 por meio de alentados perfis de escritoras e pensadoras como Dorothy Parker, Hannah Arendt, Susan Sontag e Norah Ephron, abrindo mão dos tradicionais narradores masculinos (Hemingway, Roth, Fitzgerald) para esquadrinhar a gênese da literatura moderna e contemporânea do país. O título original em inglês – Sharp – brinca com o duplo sentido da palavra que, além de “afiada”, também quer dizer “esperta”, “perspicaz”, “inteligente”.
Caixa América ||| Philip Roth
Companhia das Letras, 1.416 páginas (contabilizando os dois volumes), tradução de Paulo Henriques Britto e Rubens Figueiredo.
Edição especial que reúne em apenas dois volumes quatro importantes romances de Philip Roth, um dos principais nomes da literatura norte-americana do século 20. Falecido recentemente, o autor escreveu prolificamente sobre as diversas facetas da identidade norte-americana. O box da Companhia reúne os romances Pastoral americana, Casei com um comunista, A marca humana e Complô contra a América. Roth foi o narrador das ilusões perdidas. No magnífico Pastoral americana, o empresário judeu Seymor Levov exemplifica isso de maneira magistral: empresário que trabalhou duro para construir seu patrimônio, ele encontra dificuldades imensas para manter seu patrimônio ético com as novas gerações de sua família. Em Casei com um comunista, o autor constrói um retrato dos EUA do macarthismo e da Guerra Fria através de Ira Ringold, um ator de rádio que é comunista radical e sobrepõe a proteção de suas convicções sociais à preservação de sua vida íntima e doméstica. A marca humana eleva aos níveis mais altos o estilo corrosivo e desbocado de Roth, que faz uma crítica ainda mais direta à hiprocrisia dos supostos valores morais norte-americanos. A trama mistura racismo, assédio e vaidade a partir dos escândalos acadêmicos e da morte de Coleman Sick, reitor de importante universidade, e o narrador da história dentro da história, Nathan Zuckerman, é um alterego de Roth (e não deixa de ser irônico que um escritor tão ácido tenha escolhido para o seu alterego o sobrenome Zuckerman, corruptela de Zuckermann – “homem de açúcar” em alemão). O último livro da caixa é Complô contra a América, romance atípico do autor, com atmosfera que lembra a hipervigilância de Orwell, tenta imaginar o que teria acontecido se Charles Lindbergh, aviador antissemita pró-Hitler, tivesse vencido as eleições presidenciais de 1940. Uma introdução à obra e uma síntese do poder narrativo de um dos maiores escritores contemporâneos do Ocidente.
Clara Nunes, Guerreira ||| Giovanna Dealtry
Cobogó, 104 páginas.
Parte da coleção O livro do disco, que se debruça sobre grandes álbuns da história música, o ensaio de Giovanna Dealtry sobre Guerreira mergulha no disco que traz o enraizamento da grande transformação ocorrida na carreira de Clara Nunes: a transformação da cantora de boleros na intérprete de sambas e sambas de roda ligados aos orixás do candomblé e de umbanda e aos pontos de terreiro. Produzido por Paulo César Pinheiro, o álbum tem a faixa-título que é uma espécie de autorretrato de Clara (“Eu sambo a noite inteira/ Até amanhã de manhã/ Sou a mineira guerreira/ Filha de Ogum com Iansã”). Dealtry também destaca as canções ligadas a compositores da Portela, escola do coração de Clara, caso de Candeia e Casquinha (Outro recado) e Aniceto da Portela (Quem me ouvir cantar). A autora lembra ainda que Guerreira traz a gravação antológica de O bem e o mal, do mangueirense Nelson Cavaquinho.
Só para maiores de cem anos ||| Nicanor Parra
Editora 34, 288 páginas, bilíngue, tradução de Joana Barossi e Cide Piquet.
É a primeira vez que o chileno Nicanor Parra (1914-2018), um dos maiores poetas latino-americanos em todos os tempos, é publicado no Brasil, e isso já seria motivo para celebração. Mas a Editora 34 oferece ao leitor uma antologia com 75 poemas de alguns de seus principais livros, cotejando a versão para o português com o texto original, o que permite ao leitor a percepção da musicalidade dos versos originais. Festa completa.
Ironias do tempo ||| Luis Fernando Verissimo
Objetiva, 208 páginas.
Verissimo talvez seja a última fronteira de um humanismo à brasileira, de uma geração de cronistas que se debruça sobre o cotidiano com ironia e crítica, mas sem jamais prescindir da empatia e da compaixão. Nesta seleção de textos sobre o tempo, as maiores qualidades do escritor, mestre do texto curto, ficam ainda mais evidentes. Aos 82 anos, Verissimo escreve a maior parte do tempo em um escritório na casa onde nasceu, em Porto Alegre, e consegue conciliar esta voz extremamente fiel à sua origem e filiação literária com um grau de universalidade que poucos cronistas conseguiram atingir.
Um homem sem qualidades ||| Robert Musil
Nova Fronteira, 1.248 páginas.
Este romance dividido em três partes, que Musil deixou inacabado, é ambientado na Viena das vésperas da Primeira Guerra. Ulrich, o protagonista, volta para a capital do Império Austro-Húngaro depois de viajar pelo mundo e, ao conviver com os mais diversos tipos de sua sociedade, apresenta ao leitor, de modo não-linear, os maiores problemas de uma Europa em colapso depois da exaustão causada pela corrida imperialista e as “conquistas” de novas fronteiras nas colônias da África, da Ásia e da América. Musil escreveu O homem sem qualidades entre 1930 e 1942, ano de sua morte. Apesar de se debruçar sobre a Primeira Guerra, este já é um romance que capta a atmosfera de intolerância e o belicismo da Alemanha hitletista, e mais tarde, durante os últimos escritos, da violência e dos extermínios do nazismo durante a Segunda Guerra. Há um grande lapso entre o livro de estreia do autor, O jovem Torless (1906) e esta que é a sua segunda obra de ficção. Se Torless é um típico romance de formação, que apresenta um protagonista construindo o que ele pode ser, Um homem sem qualidade é uma espécie de romance de “aformação”, de esgarçamento da forma e de aniquilamento das esperanças e ilusões. A narrativa esparsa e fragmentada desta quase-trilogia fez de Musil um dos grandes narradores da prosa moderna europeia, que tem em Kafka, Woolf e Joyce os três pontos mais altos.
Jorge Amado, uma biografia ||| Josélia Aguiar
Todavia, 640 páginas.
A jornalista e crítica literária Josélia Aguiar, curadora das duas últimas belíssimas edições da Flip, realizou uma pesquisa longa e detalhada sobre o baiano Jorge Amado, seu conterrâneo. A biografia aborda aspectos da vida e da obra de um dos escritores mais populares do século 20, traduzido para dezenas de idiomas. Um dos pontos importantes do desenvolvimento do livro de Josélia é mostrar o estigma que Amado sempre sofreu por levar à literatura os tipos do povo. Para a autora, as pechas de “militante” e de “sociólogo” que frequentemente estiveram presentes nas restrições às obras do escritor têm a ver com sua tentativa de subverter narradores e protagonistas, entregando seus livros a personagens como os meninos de rua de Capitães de areia, a prostitituta Teresa Batista, o capoeirista e candomblecista Pedro Archanjo de Tendas dos milagres e as mulheres libertárias Gabriela e Tieta, entre muitos outros. A biógrafa defende que, com isso, Amado tirou o romance brasileiro dos ambientes restritos à elite intelectual e branca.
Poemas ||| T.S.Eliot
Companhia das Letras, 432 páginas, organização e tradução de Caetano W. Galindo.
Reunião dos poemas, em nova tradução, de T. S. Eliot, nome fundamental do modernismo literário. A obra poética abarca os livros publicados entre 1917 e 1939. O poeta inglês, vencedor do Prêmio Nobel, marcou o século 20 com seus versos notadamente rítmicos e sonoros. A organização, tradução e o posfácio ficam a cargo de Caetano W. Galindo.
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Jornalista, mineiro, rato de biblioteca.