Autor do “Ensaboa, mãe”, samba-hit campeão da Viradouro, entre outros quatro que disputaram o Carnaval do Grupo Especial deste ano, o historiador Claudio Russo tem uma trajetória intrigante. Sem ser músico, o funcionário público emplaca sambas-enredo na Sapucaí há 30 anos, já foi campeão seis vezes e – atenção, intérpretes! – tem uma gaveta recheada de canções inéditas. Contando com os carnavais de São Paulo, Brasília e Argentina, são mais de 100 músicas que embalaram agremiações. A Revista Caju conversou com Claudio sobre sua vitória; sobre a boa safra de sambas de 2020; sobre a resistência que o verso-chiclete sofreu no início dentro da própria Viradouro; e sobre os erros inacreditáveis que os jurados ainda cometem na avaliação.
Você já disse que um enredo maduro facilita muito a composição do samba, e que suas melodias por vezes começam em sonhos, já que não é músico…Como surgiu o samba-enredo da Viradouro?
CLAUDIO RUSSO: Os compositores recebem a sinopse do samba-enredo, levam para casa, ou baixam no celular, e depois marcam um dia para começar o trabalho. Há, esse primeiro encontro, um pontapé inicial. Esse samba-enredo deu muito trabalho pra gente. A gente estava fazendo o samba num estilo, mais melódico, mais dolente, porque a história das Ganhadeiras de Itapuã é uma história de luta e a gente quis fazer um samba completo. Só que quando fomos levar aos carnavalescos para tirar dúvidas, eles disseram que não queriam um samba dolente, um samba de lamento. Queriam um samba de fortalecimento daquela luta, daquelas mulheres, escravas de ganho, que pegavam parte de cada coisa que vendiam e iam juntando para comprar suas alforrias, e depois dos seus maridos e dos seus filhos. Um samba de resistência, até certo ponto alegre, porque todos os dias quando as ganhadeiras acabavam de vender seus ganhos, peixes, quitutes, frutas, elas faziam uma roda de samba. Na Bahia era chamado de “samba de mar aberto”. Porque ali perto da Lagoa do Abaeté, onde elas ficavam, ficava o mar aberto. Então a gente teve que fazer outro samba, faltando dois dias para gravar e três para entregar. Nós acabamos de fazer às quatro da manhã do dia da gravação, que começava às nove da manhã. A gente achou que não daria tempo, a gente pensou em desistir. Mas como desistir se as Ganhadeiras de Itapuã nos ensinaram a resistir?
Qual foi o pulo do gato no “Ensaboa, mãe”, verso que levantou a Sapucaí?
RUSSO: Quando eu peguei a sinopse e comecei a ler, esse verso foi a primeira coisa que eu fiz. Eu tinha muita certeza de que aquilo ali era algo diferente. Por não ser músico, eu também não tenho ordem para começar a música. Às vezes começo do refrão, às vezes da cabeça do samba… Mas eu fiz o “ensaboa” sem nem saber em qual lugar do samba ia ficar. Eu tinha certeza que ia dar certo. Esse verso sofreu muita resistência. As pessoas achavam muito simples. Há uma dificuldade para entender que o que é simples pode ser muito bom. E o que é simples não é necessariamente pobre. E de onde eu tirei esse verso? Do samba de roda da Bahia. Do partido alto. Eu lembrava do “Moinho da Bahia queimou/ Queimou, deixa queimar…”. O samba baiano é assim, repete frases curtas, que têm muita melodia e vão ficando no subconsciente da gente. E tem dois parceiros que foram muito importantes nessa resistência do verso: Paulo César Feital, que é um mestre, e Diego Nicolau, também fundamental. Quando eles ouviram, disseram: pode mexer em tudo, menos no “ensaboa”. No ensaboa não pode mexer. E fomos pra disputa. Tinha gente na disputa que fazia graça, virou até meme…. E foi o “ensaboa” que fez o povo todo cantar o samba na Sapucaí.
Você conseguiu a proeza de ficar em primeiro lugar no Grupo Especial, com o samba ganhador da Viradouro, e ser rebaixado no Grupo A, com a Acadêmicos da Rocinha, o que mostra que não há mesmo uma fórmula.
RUSSO: O samba-enredo é só um quesito. Ele tem muita importância, pode arrastar outros quesitos, mas eu não posso achar que foi o meu samba sozinho que fez a Viradouro ser campeã como sei que não foi meu samba sozinho que levou a Rocinha ao rebaixamento. Nós fazemos o melhor.
Quais são os seus fundamentos como compositor?
RUSSO: Eu busco o que é bonito. É buscar o belo. Tanto em letra quanto em melodia. Existe uma controvérsia atualmente, no meio do samba-enredo, que é dar valor demais à letra. Eu acho que uma letra fundamentada no enredo é imprescindível. Mas uma melodia que leva um povo inteiro a cantar, três mil pessoas cantando, uma arquibancada toda, ah, isso tem muito valor. Tanto que quando um jurado julga, é de 0 a 5 para letra e de 0 a 5 para melodia. E foi isso que aconteceu com o samba da Viradouro: um samba bem amarrado no enredo, com letra muito bonita, mas com melodia espetacular. Foi a melodia que levou esse samba.
Qual a particularidade de compor um samba-enredo?
RUSSO: O compositor de samba-enredo é muito diferente de tudo que existe no Brasil. Ele compõe um resumo de uma história já criada. Então eu preciso que esse meu resumo seja feito em cima de uma história bonita, de uma história grandiosa, madura. Eu até brinco com amigos em debates: eu duvido que alguém me dê um samba antológico que nasceu de um enredo menor. Pode ser que exista, mas eu não conheço. De uma história fraca não nasce um samba antológico. Pode nascer um samba agradável, no máximo.
De todas as justificativas que jurados já deram para seus sambas, quais foram as que você não concorda de jeito nenhum?
RUSSO: Olha, eu a cada ano fico esperando as justificativas para ver o que eu errei, o que eu posso aprender, melhorar, mas cada ano está mais complicado. De um tempo para cá, alguns jurados, não sei de onde eles tiraram isso, têm punido muito samba-enredo que acaba com a mesma terminação, com a mesma rima. Geralmente é rima em -ar ou em -ão. Mas só que essa regra só funciona para determinadas escolas. Quer ver? Ano passado teve uma escola grandiosa, campeoníssima, que tinha 18 versos terminados com -ar ou -á. (A reportagem conferiu um a um os sambas da safra de 2019 e chegou à conclusão que o entrevistado referia-se discretamente à Portela). E essa escola não foi penalizada. Então eu tenho que ter equilíbrio e saber se o que eles estão julgando tem importância ou não para não me guiar pela orientação dos jurados.
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Conte uma injustiça com um samba seu.
RUSSO: Tem uma história muito curiosa que aconteceu em 1994, quando eu assinei o samba na Portela (relembre o samba no vídeo acima). Eu precisava do 10 na última nota para a escola vir no desfile das Campeãs. Era uma disputa acirrada com a Tradição, que é dissidência da Portela. E o samba tomou um 9,9. Empatamos com a Tradição e no desempate ela foi pro desfile das Campeãs. O engraçado vem aqui: o verso era “o axé vem de Luanda/ Sacode a negritude a cidade”. A justificativa do jurado pra tirar 1 décimo foi: “Retiro um décimo porque Aruanda nada a tem a ver com África, Brasil ou origem do samba. Aruanda se remete à Umbanda e aos candomblés de caboclo”. Ele nem se deu ao luxo de olhar a letra do samba e ver que era Luanda, não Aruanda. Olha como é cruel a coisa.
Qual samba mais o surpreendeu na safra de 2020? Por quê?
RUSSO: O samba da Grande Rio e o da Mocidade. Sao sambas que nasceram de grandes enredos. Um do Joãozinho da Gomeia e outro da Elza Soares. A história de vida dela é um enredo e tanto. Os compositores tiveram subsídio no enredo pra fazer dois sambas sensacionais.
Como você avalia a safra de 2020?
RUSSO: Acho que essa é uma das melhores dos últimos dez anos. A gente vinha, há alguns anos, tendo grandes sambas, como da Mangueira, do ano passado, o da Tuiuti de 2018 (que é de Claudio Russo e parceiros como Moacyr Luz, relembre no vídeo a seguir). O da Beija Flor e o da Mocidade de 2018 também. Mas o resto da safra nao seguia de perto. E o que aconteceu esse ano? Dos 13 você ouve bem todos, não tem nehum “pula-faixa”. Eu acho até que por conta disso a nota deveria ser melhor para cada samba, mais altas. Se você tem um equilíbrio para cima, a safra tem que ser melhor julgada. Não pode ser julgada como antes.
Qual sua percepção sobre a tendência mais crítica dos sambas de uns três anos para cá? De contestação política mais explícita? É urgência real ou é mais estratégia?
RUSSO: Eu acho que é uma urgência. Só que da urgência nasceu a estratégia de determinadas escolas. Tem sempre aquele que acha assim: se está dando certo, eu vou por aqui. Mas mais importante do que ser estratégia ou urgência, é que estão sendo trazidos novos personagens para o diálogo. Estão sendo trazidas novas maneiras de se enxergar as escolas de samba, o enredo e o samba-enredo. Só um porém: é preciso entender que quem não faz desse jeito crítico também tem sua qualidade e seu valor. E alguns críticos não estão percebendo isso. Eles até falam: “enredo chapa branca”. Se a história for bonita e bem contada, tem que ser avaliada como tal. Se não a gente fica girando num círculo vicioso de intolerância.
Quais outros gêneros você compõe?
RUSSO: Compositor que é compositor compõe sempre, não tem isso de só compor samba-enredo. Eu até hoje não tive a sorte de ser gravado. Eu sou funcionário público, vou me aposentar em breve, e vou poder ter tempo de divulgar melhor meus sambas. Até porque acho que o “ensaboa” vai me ajudar. São 30 anos compondo samba-enredo e foi das poucas vezes que vi a Sapucaí vir abaixo como veio. Foi vibrante. Um refrão-chiclete. Na sexta-feira uma rede de TV estava no Galeão entrevistando turistas. A repórter perguntou a um americano o que ele esperava do Carnaval no Rio. E ele respondeu: “Ó mãe, ensaboa, mãe, ensaboa. Pra depois quarar”. É engraçado. Foi um verso muito combatido. E pegou.
Como alguém pode começar a compor samba-enredo? A paródia é um bom caminho?
RUSSO: Compor é dom. A pessoa pode melhorar esse dom. Pode trabalhar isso aprendendo um instrumento, cavaquinho, violão. Agora ensinar… É quase impossível. Eu de fato comecei fazendo paródia. Na escola, no intervalo, sempre fazia paródia com professor, com algum amigo engraçado, e todo mundo gostava. Quando entrei no samba-enredo, fazia a letra, e assim fui trabalhando esse dom. Esse ano eu fiz 30 anos de Sapucaí, 30 anos compondo. Sendo historiador formado, a pesquisa também é muito importante. A pesquisa traz novos personagens, elementos, novas palavras. Tenho sempre o dicionário do Câmara Cascudo aqui comigo, o dicionário de rimas e o de sinônimos, que ajuda bastante.
Quantas sambas você já emplacou nos carnavais que participa?
RUSSO: Mais de 100. Juntando Sapucaí, Uruguai, Sao Paulo, Rio Grande do Sul, Argentina, Brasília… Mas já perdi quatro vezes mais do que ganhei. Na Sapucaí foram os títulos da Beija Flor em 2004, 2007 (relembre o samba no vídeo a seguir) e 2008; da Inocentes de Belford Roxo em 2008 e 2012; e esse agora, da Viradouro. Ensaboa, mãe!
Autor
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Jornalista e doutoranda do programa de Estudos da Literatura da Universidade Federal Fluminense, é uma das autoras da coletânea de crônicas "O meu lugar" (Mórula) e de "Vem pro Bola, meu bem", livro que reuniu histórias do centenário do Cordão do Bola Preta.
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Jornalista e doutoranda do programa de Estudos da Literatura da Universidade Federal Fluminense, é uma das autoras da coletânea de crônicas "O meu lugar" (Mórula) e de "Vem pro Bola, meu bem", livro que reuniu histórias do centenário do Cordão do Bola Preta.