A turma de jovens carnavalescos formada grandes contadores de histórias – Leandro Vieira, Leonardo Bora & Gabriel Haddad e Jack Vasconcelos – revalorizou o quesito enredo como matriz de seus desfiles e vem promovendo uma grande transformação estética e conceitual no carnaval carioca.
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Esta geração de narradores age como os mestres da tradição oral com origem nas muitas nações indígenas e identidades africanas que irrigam nossa cultura popular. Griôs. Primos-irmãos, em nosso território, da personagem Sherazade, de As mil e uma noites, eles apostam na narrativa bem construída como uma forma de sobrevivência e conquista de mais uma aurora, mais uma passagem da escola da qual assinam a direção artística.
Tem dado certo: o que muitos apontam como uma “volta da política” na Sapucaí talvez não passe de uma conexão profunda do interesse destes criadores pelo discurso. Isso porque toda arte, em qualquer tempo ou circunstância, sempre será política, mesmo quando insiste em parecer que não é.
Pensando então na história recente dos desfiles, mesmo quando as questões taxadas de políticas não apareceram fortemente nos enredos, caso das décadas passadas – que poderíamos chamar de “Ciclo Paulo Barros” – escolher não abordá-las, optando por enfatizar a visualidade e o espetáculo, era uma forma bastante clara de fazer política, de abafar a voz, a sonoridade e os corpos que compõem uma escola de samba em detrimento da estética. O que parece ocorrer agora é algo mais complexo que uma simples “volta da política”: é o momento em que os discursos estão, mais do que acima, no ventre da plástica.
Para estes carnavalescos, estar no mundo é deixar-se impressionar por ele e mergulhar nas histórias que ele pode contar. Nada mais natural, portanto, que as questões agudas de um momento de crise, como este que temos atravessado de 2014 para cá, acabem impregnando as escolhas temáticas, assim como o destaque para as formas de resistência e enfrentamento desses obstáculos (“A esperança brilha mais na escuridão”, diz o samba da Mangueira).
Fantasias e alegorias são irrigadas pelas características do discurso, que se cruzam com as assinaturas pessoais do artista-criador responsável por aquele barracão. Todos os outros fios que tecem a teia de acontecimentos de um desfile, com destaque especial para samba-enredo. Não me parece acaso, portanto, termos uma safra bastante expressiva de bons sambas-enredo nos últimos 10 anos, com uma sequência especialíssima em 2018 (Paraíso do Tuiuti, enredo de Jack Vasconcelos sobre trabalho e escravidão), 2019 (Mangueira, enredo de Leandro Vieira sobre as histórias à margem da História) e 2020 (novamente Mangueira/Vieira, enredo sobre Jesus, e o estupendo samba da Grande Rio para o enredo de Bora e Haddad sobre Joãosinho da Gomeia, seguidos por outros dois sambas que passaram muito bem na Avenida – o da Viradouro, campeã com Ferreira e Zanon, e da Mocidade, terceiro lugar com as propostas de Vasconcelos).
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“Tudo nasce no enredo, não temos o interesse de fazer carnaval sem ter o que contar”, me disse Leonardo Bora na visita que fiz ao barracão da Grande Rio na semana anterior ao carnaval. “A Mangueira tinha tanto o que falar que falou antes do carnaval, falou durante o carnaval e segue ainda falando depois do carnaval. Isso para mim é importante: ter o que falar e continuar falando”, declarou Leandro Vieira à repórter Fernanda Rouvenat, da Rede Globo, durante a passagem da Mangueira no Desfile das Campeãs deste ano.
Como uma escola de samba pode “continuar falando”?
De três formas principais: através de um samba-enredo de qualidade, que por isso continuará a ser cantado anos a fio depois das Cinzas; com um desfile capaz de gerar imagens que sobrevivam ao término da apresentação, e continuem circulando, comovendo, incomodando e gerando debate; por fim, mas não menos importante, uma escola segue “falando” se consegue apontar para uma espécie de conversa interna, que cita os fundamentos audiovisuais e discursivos do cortejo, muitas vezes transgredindo-os.
Com ênfases muito distintas, Jack Vasconcelos, Leandro Vieira e a dupla Haddad e Bora têm sido pródigos em promover os três tipos de reverberação. Algumas de suas criações “continuam falando”. Tento explicar como e por quê a seguir, traçando breves perfis de cada um destes núcleos criadores.
Jack Vasconcelos: de mãos dadas com o absurdo
Jack Vasconcelos, de 42 anos, estreou no então Grupo B em 2004, conquistando o 3o lugar com um desfile pela Império da Tijuca. O período mais marcante de sua trajetória foram os anos em que trabalhou para a Paraíso do Tuiuti, entre 2016 e 2019. Campeão da Série A no ano de estreia, ele amargou um 12o lugar do Especial no ano seguinte, por conta de acidentes (com várias vítimas, uma delas fatal) no desfile Carnavaleidoscópio Tropifágico. Naquele ano, outros problemas graves aconteceram em um carro da Unidos da Tijuca, e para proteger a Tijuca, a Liesa optou por preservar ambas as agremiações do rebaixamento. A concepção de Vasconcelos não teve nenhuma responsabilidade pela tragédia e, apesar de ter sido um um ano com resultado desastroso, olhar retrospectivamente para o desfile de 2017 é fundamental para entender a contribuição que este artista tem dado ao carnaval carioca.
O carnavalesco define as respostas plásticas que deu ao enredo sobre a Tropicália como um “caosnaval”. Embasado por uma pesquisa profunda, cheia de desdobramentos, o cortejo da Tuiuti percorria tanto as origens do tropicalismo – com a inevitável menção ao Modernismo brasileiro, à Macunaíma e a obras de Tarsila do Amaral – mas chegava a reverberações atuais do movimento que tem em Hélio Oiticica, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Torquato Neto suas principais referências. A alegoria desgovernada, por exemplo, trazia elementos que citavam a obra da pintora Beatriz Milhazes, clara herdeira do tropicalismo e de todos os seus desdobramentos para o passado (Carmen Miranda, Anita, Tarsila, o Barroco mineiro) e para o futuro (op art, Bridget Rilley). Mais do que fazer um enredo “correto”, desenvolvido ponto a ponto, Vasconcelos mostrava que seu desfile, além de um relato audiovisual como resultado dos conteúdos pesquisados, tinha um desejo de fala, de afirmação de algo.
Fui entender de modo mais profundo o que pode ser este “algo” apenas há pouco, durante o desfile sobre a cantora Elza Soares assinado por ele na Mocidade Independente de Padre Miguel.
Na Tropicália, Vasconcelos optou pelo uso de uma paleta explosiva, acalorada e flúor, e fantasias e alegorias propositalmente construídas com a sobreposição de cores opostas e complementares (vermelhos e verdes, sobretudo laranjas/gemas e azuis), o que gera um misto de atração e desconforto no espectador. Na ala Televisão, cachos de bananas explodiam das costas dos componentes, como pendentes no esplendor; na Urubus com girassóis, o componente vestia um boneco de urubu, cuja atmosfera soturna era “quebrada” pela natureza solar das flores. Tudo parecia estar banhado por uma atmosfera de sonho e pesadelo, já que este é um artista constantemente de mãos dadas do absurdo – e que tira partido desse absurdo onírico e nonsense para comunicar pautas culturais e sociais da máxima importância.
Ainda em 2017, a alegoria Favela canibal acertava no centro do alvo destas características: a favela se transformava numa espécie de “Pequena loja dos horrores”, uma estufa de plantas carnívoras que engoliam muito das referências artísticas que haviam passado aos olhos do público naquele desfile. Na boca central, jazia, sendo digerido, o Abaporu de Tarsila do Amaral.
Vejo grande relação entre este carro e dois dos que o carnavalesco apresentou este ano no desfile da Mocidade – o abre alas do Planeta Fome, com os pratos vazios e a referência à apresentação de Elza no programa de Ary Barroso, e a alegoria final, Você tem fome de quê?, que trazia a cantora e várias bocas abertas, capturadas da identidade visual dos Rolling Stones. Neste desfecho, a insinuação de que a obra e a história da homenageada poderiam seguir nos alimentando. Embora o conjunto alegórico deste ano tenha sido menos feliz do que o de desfiles anteriores – creio ser exagerada a performance excepcional da Mocidade em alegorias, e despropositada sua avaliação superior a da Portela e da Mangueira -, ele reafirma a identidade de seu criador. Na espinha dorsal do que Vasconcelos deseja “continuar falando” está o entendimento do carnaval como um delicioso delírio antropófago, que afirma a cultura nascida nas periferias – a favela, Elza – como grande canibal, como grande fonte de digestão, transformação e alimento.
Em 2018, o enredo sobre a permanência da escravidão nos dias de hoje parecia não ser um chão propício para o nonsense do carnavalesco. E, de fato, nos primeiros segmentos do desfile o que se viu, ao menos em uma leitura superficial, foi uma abordagem mais linear e histórica. Um segundo olhar, no entanto, pode talvez compreender que a boca devoradora e faminta presente na Tropicália e no desfile de Elza também estava presente, de forma sutil – e por isso ainda mais arrebatadora – na comissão de frente daquele ano, com os componentes caracterizados como escravos sendo engolidos, em fila indiana, pela grande senzala, para delas saírem transformados como a figura mágica e ancestral dos pretos velhos. Esta transformação virava o jogo narrativo, já que as entidades faziam com o feitor que maltratava seus irmãos negros cair de joelhos, arrependido.
A insinuação de uma boca também aparecia como metáfora em fantasias como Camélias do Leblon, com o corpo dos componentes brotando de uma flor como pétalas viradas para cima, e não para baixo, formando a saia, como era de se esperar. Nos últimos segmentos do desfile, o absurdo/monstruoso aparecia em fantasias como Guerreiros da CLT, em que braços tentáculos mostravam a multiplicação de tarefas de quem tem carteira assinada. Na fantasia dos Manifestoches, o pato inflado pela Fiesp na Avenida Paulista, durante as manifestações pelo golpe a Dilma Roussef em 2016, ornava o corpo dos componentes, palhaços paneleiros manipulados pelas cordões remexidos pelas mãos de alguém que veste terno. A ala dos Manifestoches seguia até a base e a composição da última alegoria, na qual o navio negreiro do início do desfile retornava transmutado em uma tumba neoliberal, de onde saíam gigantes mãos manipuladoras. No alto dela, Léo Morais, coordenador dos ateliês da Tuiuti, vinha como destaque. A fantasia Vampiro neoliberal incluía uma faixa presidencial, em clara alusão ao presidente Michel Temer, um dos artífices do golpe contra Dilma. Ela seria suprimida pela diretoria da escola, a pedido da Liesa, do Desfile das Campeãs, o que não impediu que o vampirão se transformasse na imagem mais forte daquele carnaval, e também na mais compartilhada nas redes sociais, expandindo as discussões propostas pelo desfile tanto em termos espaciais/geográficos (com enorme repercussão em outros países) quanto cronológicos (afinal, estamos aqui, pensando no vampiro, até hoje). A Tuiuti “continuou falando”.
Muitos que olham para os desfiles de Jack Vasconcelos podem se fazer a pergunta: “Mas isso é bonito?”. A resposta precisa ser, necessariamente, complexa. A beleza, no sentido clássico ou do sublime de Kant, não é o que está em jogo aqui. O samba de Moacyr Luz para o desfile da Tuiuti falava de uma “lua atordoada” que “assistiu fogos no céu” depois que a Lei Áurea foi assinada. E é disso que estamos falando: de atordoamento, forma muito poderosa de mobilização, e não de uma beleza harmônica. No vampiro criado pelo carnavalesco há fios que posso puxar para os outros dois núcleos que quero abordar neste texto: a noção de “aparição”, com tudo o que ela tem de assombro e alumbramento, presente nos desfiles de Leonardo Bora e Gabriel Haddad desde a Acadêmicos da Cubango, e a insistência na criação de imagens sobreviventes, a maior das inúmeras contribuições que Leandro Vieira tem dado ao carnaval carioca. Caminho para elas, então.
Leonardo Bora, Gabriel Haddad e o bordado da aparição
“É Pedra Preta”. Logo no primeiro verso, o samba da Grande Rio convocava o caboclo Pedra Preta, entidade do pai de santo Joãozinho da Gomeia, para abrir a passagem da escola de Caxias na Sapucaí, realizando aquele que se transformaria no melhor desfile de 2020. O carnaval criado por Leonardo Bora e Gabriel Haddad acabou vice-campeão pela loteria que permeia o regulamento da Liesa, mas a “aparição” de Pedra Preta, materializada logo na comissão de frente criada por Helio e Beth Bejani, é uma das sínteses possíveis da trajetória desta dupla de artistas que tem transformado o enredo em uma espécie de etnografia, sem abrir mão, no entanto, da noção de que o carnaval deve necessariamente ser uma sucessão de alumbramentos. Se na comissão de frente tínhamos Pedra Preta “aparecendo” nas águas e entre as iabás – com as saias se transformando em palhoças e reforçando que o corpo é a casa; a casa é o corpo – no abre-alas tínhamos um apanhado das enormes contribuições conceituais e estéticas que Bora e Haddad têm dado ao nosso carnaval.
Neste primeiro carro, o artista Rafael B Queer, colaborador constante dos carnavalescos, aparecia como destaque à frente da alegoria como Poeira no redemunho, uma fantasia feita à mão de fios e crochês vermelhos, aludindo ao diabo no redemunho que encontra Riobaldo (ou que Riobaldo procura, talvez isso não importe) durante sua odisseia existencial em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. A circularidade do “redemunho” permeava toda a alegoria dedicada a Exu – mensageiro em movimento -, que não tinha um corpo sólido aparente. Tanto as três máscaras africanas circundadas por cobras corais, na parte da frente, quanto as outras máscaras geledés das laterais pareciam estar flutuando, como se fossem elas também “aparições” em um plano cheio de vazios. No lugar de uma caixa, uma escada ou de um triângulo invertido, estruturas mais comuns nas alegorias, o que se via era uma plataforma iluminada em vermelho como um terreiro em brasa, no qual esculturas, esplendores e um “queijo” central giratório buscavam comunicar, através de círculos e elipses em movimento, um ciclo de infinitos nas idas e voltas de Exu entre os planos.
Exu já havia aberto o desfile sobre o artista Arthur Bispo do Rosário, O rei que bordou o mundo, que Bora e Haddad realizaram na Cubango em 2018. Naquela comissão de frente, inspirada nas obras Capa de Exu e Panela de carvão de Bispo, o bailado de transformação através das capas foi, entre muitas outras coisas, uma homenagem ao legado de Rosa Magalhães, tema da pesquisa acadêmica de Bora e de um excelente livro lançado pelo artista (A antropofagia de Rosa Magalhães, da editora Carnavalize). O legado de Rosa é importantíssimo para entender esta nova geração de narradores. Discípula de Fernando Pamplona, o responsável por conectar a narrativa dos desfiles à identidade negra das escolas de samba, Rosa foi aluna e professora da Escola de Belas Artes e é, como o livro de Bora aponta, a grande antropófaga da história de nosso carnaval, a mãe-aranha tecedora e subversiva das histórias. Não seria exagero dizer que toda a nova geração de narradores – a dupla da Grande Rio, Leandro Vieira, Jack Vasconcelos e criadores mais jovens e também muito potentes, como Jorge Silveira – nasceram do ventre desta mestra. (Aliás, é preciso dizer que este ano, criando o desfile da Estácio de Sá, Rosa realizou, com muito menos recursos, um carnaval muito superior ao de Paulo Barros da Unidos da Tijuca. As notas dadas a ela em enredo, alegorias e fantasias são quase uma afronta).
O desfile que Bora e Haddad criaram este ano aprofunda este caminho narrador e de herdeiro da antropofagia, mas também a singularidade com que os artistas tratam essa herança. Eles têm conjugado a extrema preocupação com a profundidade do enredo – nos dois últimos anos, com a participação importantíssima do antropólogo Vinicius Natal na pesquisa – com uma atenção absoluta ao lugar que a escola precisa ocupar na história que estão contando. Se em 2019 o belíssimo Igbá Cubango retratou a comunidade de Niterói através da relação com os ex-votos, este ano a opção por Joãozinho da Gomeia extrapola o interesse que o personagem já desperta – o de um pai de santo negro, gay, envolvido com a cultura e com os próprios ritos do carnaval -, para esmiuçar uma biografia que se confunde com a história do município de Duque de Caxias e aponta para dolorosas lacunas históricas – a população de Caxias já quis que sua cidade fosse renomeada como Zumbi de Palmares e, nos tempos da Gomeia, foi uma espécie de pouso para os “terreiros migrantes” que vinham da Bahia para o Rio de Janeiro, fugindo da perseguição religiosa.
Outras características que se adensaram e ganharam visibilidade este ano foram o protagonismo dado ao trabalho artesanal, com a mãe de Leonardo Bora, a artesã Ana Maria Gadens Bora, assumindo uma bancada no barracão que produziu mais de 900 metros de trabalho em crochê. Tendo a achar, embora precise pensar um pouco mais sobre o assunto, que a ideia do artesanal enfatiza, no processo, tanto o movimento tendendo ao infinito que volta e meia aparece nas alegorias de Bora e Haddad – citei neste texto o carro de Exu deste ano, poderia pensar no carro do tabuleiro do desfile sobre Bispo, em que elementos redondos eram girados nas laterais, revelando ora espirais, ora retículas coloridas – quanto a diversidade que permeia suas fantasias. Nos desfiles da dupla, não apenas vemos alas compostas por muitos figurinos distintos (neste ano, a fantasia do armazém, inspirada na obra de Carybé) quanto uma sucessão de alas com o mesmo motivo ou personagem sofrendo variações (no ano de Bispo, a sequência com vários tipos de anjos). É como se cada desfile fosse, de fato, um bordado, não apenas pela noção de um fluxo contínuo, ponto a ponto, como pela certeza de que esse fluxo será sempre transformado pela materialidade e a diversidade dos corpos.
Outro ponto importante que aproxima Bora e Haddad de Rosa, mas recebe, nos desfiles da dupla, uma lufada de frescor é a ideia de citação/apropriação. Nas “aparições” da Grande Rio este ano vimos citações a obra de inúmeros artistas plásticos (além de Carybé, Sonia Gomes, Abdias do Nascimento, Henrique Oliveira, Rubem Valentim, Andy Warhol e o próprio Rafael B Queer, entre outros) e outros criadores (falei de Guimarães Rosa, poderia ter citado ainda Jorge Amado e a grande homenagem a Fernando Pamplona no carro de Joãozinho no carnaval). Tudo o que esta dupla tem feito pelo carnaval já seria extremamente importante, mas a sofisticação com que Bora e Haddad manejam as artes visuais, provocando um trânsito e uma equivalência entre o museu e o sambódromo, pode vir a nos ajudar muito a pensar politicamente sobre as interdições que ainda existem entre estes dois mundos. Um artista visual é um artista visual, onde quer que esteja. Um artista visual que trabalha no carnaval pode falar com muito mais gente do que aquele que circula em museus e galerias. Não faz sentido, então, haver distinção e categorização entre os meios. Pensemos nisso.
Leandro Vieira e a sobrevivência das imagens
Há sempre muito a dizer sobre as contribuições de Leandro Vieira para o carnaval do Rio, mas, se o assunto é enredo – tanto os elementos para criá-lo quanto os elementos que ele cria – nada é mais importante do que pensar no legado que os desfiles assinados pelo artista têm deixado em termos de imagem. Desde a estreia de Vieira na Mangueira, em 2016, com um mergulho nas relações de Maria Bethânia com a religiosidade e a cultura ancestral do Recôncavo Baiano, cada passagem da verde-e-rosa no Sambódromo tem sido a reafirmação de que o carnaval não foi feito terminar na Quarta Feira de Cinzas, muito pelo contrário: maior manifestação artística e cultural deste país, a festa precisa reverberar depois de seu fim, com as imagens e os outros conteúdos poéticos gerados por uma escola de samba vivendo um processo de ressurreição contínuo a cada vez que são revistos.
Hoje com 36 anos, Vieira tinha apenas 31 e um único desfile no currículo, pela Caprichosos de Pilares na Série A, quando chegou à Mangueira em 2015, como o “novato” que assinaria o carnaval seguinte da mais popular das escolas cariocas. Mas foi justamente isso – o fato de a Mangueira ser o mais vistoso diamante de nossa cultura popular – o que assegurou um casamento perfeito entre a identidade da escola e os interesses plásticos e conceituais de seu novo diretor artístico.
Desde este começo até o desfile sobre Jesus em 2020, Vieira não tem optado exatamente, como grassa o senso comum, por “enredos políticos”. Como venho insistindo em todos os textos sobre carnaval, toda arte é política – sempre será. Quanto mais profundo for o mergulho de um artista nos fundamentos da linguagem onde ele está se exercitando, mais evidente ficará o caráter mobilizador da arte e, portanto, mais política ela parecerá ser – porque é política mesmo quando não quer ser.
Da Bethânia de 2016 ao Jesus de 2020, percebo um caminho bastante coerente, que tem na cultura popular o seu maior foco de interesse. Vieira é um narrador do Brasil – e parte do seu êxito tem sido desfiar seus enredos a partir das vozes, dos rostos e das histórias que compõem a Estação Primeira de Mangueira. A escola e sua identidade têm sido o filtro e o fiel para a condução das narrativas – e é por isso que tem dado certo. No último ensaio da Mangueira este ano, pouco antes do carnaval, era fácil atestar este jogo de espelhos com a comunidade prestando atenção aos corpos dos componentes. No momento em que cantavam os primeiros versos de Manu da Cuíca para o samba – “Eu sou a Estação Primeira de Nazaré/ Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher/ Moleque pilintra do Buraco Quente/ Meu nome é Jesus da Gente” – invariavelmente batiam no peito ou levantavam os braços no “Eu sou”, assumindo a identidade da “Estação Primeira de Nazaré”. A performance se repetia, com variantes, em “Meu nome é Jesus da Gente”, com direito a braços estendidos, como na cruz, e rodopios. Já no desfile do ano passado, foi comovente ver parte da escola, sobretudo as mulheres, “errando” o verso, também de Manu, que dizia: “Brasil, o teu nome é Dandara”. Muitas – muitas mesmo – batiam no peito e cantavam “Brasil, o meu nome é Dandara”. O samba encarnado no corpo da escola, o enredo desfilado como carne. Um enredo vivenciado nos corpos, o que só é possível porque foi capaz de gerar uma sinopse que nutriu o samba-enredo, que por sua vez devolveu ao carnavalesco novas imagens para que construísse seu conjunto plástico.
Neste ponto, o conjunto plástico, já temos em curso na história da folia a construção de uma assinatura singular. Ano a ano, a Mangueira repete certas escolhas estéticas que fazem com que os elementos visuais do desfile, sobretudo fantasias, sejam identificáveis como “um Leandro Vieira”. Alguns desses elementos sofrem variações a partir do enredo – evidenciando-o mais uma vez como uma grande fonte que irriga todo o desfile. Um exemplo importante, no carnaval deste ano, foi a mescla entre as estrelinhas de acetato nos esplendores, uma das marcas do carnavalesco, com caules cheios de espinhos, numa clara alusão à Paixão de Cristo. Há outras opções recorrentes, como o esplendor em formato de meia-lua, as sobreposições de estampas e tecidos de fibras muito distintas. Uma marca visual que me parece apontar para uma síntese de um pensamento de Vieira é o uso da costura aparente, a construção das roupas como uma espécie de mosaico de retalhos, muitos deles com a presença de imagens – como se cada figurino fosse uma narrativa sendo formada por muitos pedaços, vindos de tempos e matérias-primas distintas. E não é desses retalhos que fazemos as histórias?
Mais do que “marcas visuais”, o que tem sido uma contribuição decisiva deste criador é a criação de imagens feitas para durar. A cada desfile, temos pelo menos uma grande âncora, uma alegoria, fantasia ou adereço que serve como vetor daquilo que a Mangueira quer “continuar falando” mesmo depois do carnaval.
Logo em 2016, a pedra atirada em uma criança iniciada no candomblé (relembre o caso clicando aqui) motivou Vieira a transformar Squel, porta-bandeira da verde-e-rosa, em uma filha de santo. Com os braços pintados e uma touca cobrindo os cabelos para simular a cabeça raspada – idêntica à da menina apedrejada – Squel girou para fazer rolar a imagem que se transformaria em vetor de tudo o que um desfile sobre Maria Bethânia poderia querer dizer.
Em 2017, foi a vez de um carro sincretizando Jesus ao orixá Oxalá ser o catalisador da intolerância, transformando o carnaval naquilo que ele deveria ser continuamente: o palco das discussões e das disputas contemporâneas. Censurada pela Igreja Católica do Desfile das Campeãs, a alegoria parece ter ressurgido no enredo da Mangueira deste ano, na fantasia de Jesus Oxalá trajada pelas baianas. Para mim é bastante comovente pensar no corpo sincrético e africano de Cristo ressurgido no colo das guardiãs do axé, das grandes mães do carnaval. As baianas como pietás da nossa Zona Norte.
Em 2018, o conjunto plástico e cromático criado pelo carnavalesco foi mais impactante do que uma imagem gerada, embora seja impossível esquecer do prefeito Marcelo Crivella transformado como o “Judas” a ser malhado, no topo de uma das alegorias. Já o desfile do ano passado ainda está acontecendo, com escolas de todo o Brasil reaprendendo seus currículos de História graças às personagens recuperadas por Vieira no enredo sobre as narrativas marginais que poderiam “ninar gente grande”. Mas foi a bandeira de um outro Brasil, pintada nas cores da Mangueira e com “Negros, pobres e índios” no lugar da “Ordem e progresso” que se transformou num misto de consolo e de plataforma utópica para muitos dos que assistiram àquele desfile.
Criticado em algumas justificativas do júri e também por parte do meio de carnaval pelo que se entendeu como uma “estética de passeata” no desfile de 2019, Vieira apostou este ano numa base narrativa híbrida para dar sustentação ao seu enredo sobre Jesus Cristo. Se na comissão de frente Jesus usava jeans, fazia selfie e era achacado pela polícia com seus brothers da favela, nas três alegorias seguintes, a subversão proposta pelo enredo era uma espécie de camada sobreposta ao imaginário clássico sobre Jesus. Faces negras, femininas, indígenas e LGBTQI+ do Cristo recobriam a manjedoura e a chegada de burrico a Jerusalém, enquanto o carro sobre o templo não tinha qualquer intervenção “contemporânea”, digamos assim.
Essa dualidade nas alegorias (acompanhada nos segmentos correspondentes por fantasias “bíblicas”, ligadas a uma narrativa reconhecível de Jesus), não chegou a prejudicar enredo – premiado com justiça com cinco notas 10 – mas pode ter contribuído para uma espécie de curto-circuito cognitivo por parte do público. Afinal, o que a Mangueira pretendia mostrar? Um Jesus atualizado, “moleque pilintra do Buraco Quente”, ou o Jesus já fundamentado pela Bíblia, com variações? Esta dúvida, somada à ausência de um final de ressurreição e compaixão mais explosivos, podem contribuído para uma apresentação menos calorosa da Mangueira. A melodia do samba, uma concentração bastante caótica e o peso inevitável – e necessário!!!! – do próprio tema podem ter colaborado nesta conta.
A opção pelo “Jesus da gente”, atravessado e martirizado pelas dores de hoje, foi retomada por Vieira nos segmentos finais do desfile, a partir do carro sobre a Paixão. Não por acaso, estão localizadas aí as duas imagens que, isoladamente, serão as mais importantes que este carnaval vai gerar: o gigantesco corpo negro crucificado e também cravejado de balas e a aparição – caracterização e performance – da rainha de bateria Evelyn Bastos como o corpo de Jesus martirizado pelo feminicídio.
Estas não são imagens quaisquer, e por elas tendo a achar que a descalibragem de alegorias e fantasias no desfile da Mangueira este ano é digna de nota, mas está longe de ser fundamental. O que é urgente mesmo é termos imagens que vão sobreviver por conseguirem fazer um salto elástico de tempos, acessando dados muito importantes do nosso passado colonial e escravocrata – sulcado na nossa memória – e ao mesmo tempo bagunçando-o a ponto de roçar o futuro.
Estas não são imagens quaisquer, e sim daquelas que geram atração no mesmo nível de repulsa. E esta repulsa procura abrigos em argumentos camuflados, do tipo “Rainha de bateria tem que sambar” (Onde está escrita esta “regra”? O corpo inerte não é também uma forma de dança, do mesmo modo que o silêncio é uma fala?) ou “O desfile da Mangueira é conservador, porque Cristo é uma herança europeia”. Sobre esta última frase, digo primeiro que precisamos melhor no entendimento do que é o Brasil de hoje, e também o carnaval de hoje. Vivemos em um país açodado por correntes mistificadoras totalitárias, que usam o nome de Jesus para incitar o ódio e assegurar o poder político – cada vez mais institucionalizado. Vivemos em uma cidade em que baianas e mestre-salas abandonam seus postos nos desfiles porque virou pecado sambar.
O que pode ser mais urgente, então, do que disputar a narrativa sobre Cristo numa festa que tem em suas entranhas uma favela pentecostal? O que pode ser mais contundente do que pensar em Evelyn como Claudia, arrastada pelo camburão da polícia, ou todas as mulheres negras espancadas e mortas por seus companheiros, pais e namorados nos morros como o da Mangueira? O que pode ser mais esperançoso do que chorar pelo Jesus menino platinado, crucificado cheio de tiros por “ter cara de bandido” e vê-lo ressuscitar nas vielas da Mangueira – ou da Maré, da Babilônia, da Providência, do Jacaré, do Alemão – para brincar o carnaval? Sei lá, não sei, não.
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O olho nas ruas e espaços culturais do Rio e de São Paulo, sempre clicando e filmando cenas e eventos com rara sensibilidade para as redes sociais da revista.
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