Os 56 anos do golpe civil-militar de 1964 se completam neste 31 de março sob circunstâncias amargas. Pela primeira vez desde a redemocratização, o Brasil tem como presidente um confesso entusiasta Ditadura Militar (1964-1985) e de suas maiores crueldades. Além disso, em um país ameaçado pela pandemia do Covid 19/ Corona vírus, Jair Messias Bolsonaro não hesita em convocar os trabalhadores para a volta à rotina, contrariando o que têm feito todos os líderes mundiais e naturalizou a violência doméstica nos dias de confinamento. Ano passado, como era de se esperar, celebrou o Golpe nas mídias sociais, determinou a “comemoração” de 1964 nos quartéis e, como de praxe, teve a pachorra de minimizar os crimes cometidos pelo Estado no período, classificando-os como “probleminhas”.
Em relação ao vice-presidente (cargo claramente em evidência por motivos óbvios e recentíssimos) não nos iludamos: por mais que ultimamente Mourão tenha tentado se colocar como aparentemente mais moderado em comparação ao cabeça da chapa, ele não assume postura tão diferente em relação à nossa mais recente ditadura.
Nada mais pertinente, então, que reafirmemos (não só em 31 de março e 1º de abril) a importância do estudo, da memória e da discussão pública sobre esse período tão marcante na História brasileira. Curiosamente, se olharmos parte da produção cultural crítica ao regime da época, podemos encontrar alguns pontos de contato com diferentes estados de ânimo da oposição nos dias de hoje.
Neste ensaio, traço um paralelo histórico com esse cenário ambivalente. Diante da ditadura de 1964, dois diretores de cinema mobilizados contra o regime, Glauber Rocha e Cacá Diegues optaram, em duas de suas obras, por representar o governo autoritário sob prismas opostos: um pela lente do drama, outro pela da comédia.
Apesar de seus diretores serem associados ao mesmo movimento cinematográfico, o Cinema Novo, Terra em transe (Glauber Rocha, 1967) e Quando o carnaval chegar (Cacá Diegues, 1972) são filmes um tanto diferentes. Em gênero, número e grau e em estilo e enredo, também. A começar pelo fato de o primeiro filme ser um drama, rodado em branco e preto, e o segundo, uma comédia musical super colorida.
Ainda que ambos os diretores tenham sido militantes de esquerda e cineastas engajados na resistência à Ditadura, os dois filmes divergem no modo com que se opuseram a esse regime autoritário. Logo, proporcionam perspectivas bem distintas, embora igualmente interessantes, sobre o período.
A partir da análise fílmica das duas obras e de seus contextos históricos de produção, proponho aproximações e distanciamentos entre elas, no que tange às suas estéticas; às suas estruturas narrativas; e ao diagnóstico político que exprimem.
Terra em transe
No fictício país de Eldorado, ocorre um golpe de Estado liderado pelo senador conservador e oligárquico Porfírio Díaz (Paulo Autran) contra o governo de Felipe Vieira (José Lewgoy), que fora eleito com um programa político supostamente mais progressista e popular. Atônito, Paulo Martins (Jardel Filho), jornalista aliado de Vieira, inicia um flashback para rememorar a sua trajetória de militância nos quatro anos anteriores e como a situação política de Eldorado havia culminado na ruptura institucional.
O filme mostra que, inicialmente, Paulo era admirador e protegido de Díaz, a quem chama de seu “deus de juventude”. Concomitantemente à aproximação amorosa com Sara (Glauce Rocha), disciplinada militante comunista, Martins vai adotando posições políticas mais à esquerda e se sensibilizando com o sofrimento das classes populares.
A política e a poesia são demais para um homem só
Diante disso, os dois se mobilizam na campanha eleitoral de Vieira, político “populista” que promete melhorar as condições de vida dos camponeses pobres. Eleito governador, Vieira quebra muitas dessas promessas e permite a dura repressão policial contra camponeses, o que causa agudo desgosto em Paulo, que se entrega à orgia e à boemia. É o mesmo Paulo que declara, amargamente, que “a política e a poesia são demais para um homem só”: expressão pungente do dilema entre realpolitik e idealismo.
Mesmo assim, Martins se dedica à campanha presidencial de Vieira, contra a ameaça de Díaz (que também era candidato e havia se aliado à empresa estrangeira Explint), se eleger. Com esse propósito, Paulo faz um filme depreciando Díaz, o qual é transmitido na televisão, com o apoio de Júlio Fuentes (Paulo Gracindo), grande empresário nacional do setor de comunicações. Com a traição de Fuentes, que faz um acordo (ou seria um acordão?) com Díaz e com o temor de que Vieira se torne Presidente, a direita prepara o golpe de Estado anunciado no começo do filme.
Dilacerado, Paulo Martins sugere uma possibilidade de resistência armada, oferecendo um revólver a Vieira, que o recusa. Em reação, Martins se angustia e vai se atrofiando. Enquanto isso, Díaz é coroado, com toda a pompa e circunstância, novo chefe político de Eldorado.
Quando o carnaval chegar
Uma trupe de jovens cantores mambembes e seu empresário, Lourival (Hugo Carvana), percorrem o país em um ônibus à espera do carnaval, quando farão uma apresentação musical na festa de um rei. Nesse meio tempo, uma série de discussões internas entre os artistas, bem como tramas amorosas, constantemente ameaçam a iminente dissolução do grupo. Apavorado, Lourival sempre se incumbe de tentar reintegrar os membros dissidentes, no firme propósito de concretizar a homenagem ao monarca.
Algumas das possibilidades de rompimento são as saídas quase concretizadas de Cuíca (Antonio Pitanga), instrumentista e motorista do ônibus, que havia tido um caso com uma artista francesa que lhe prometera levá-lo a Paris; de Paulo (Chico Buarque), que tem um caso com Virgínia (Ana Maria Magalhães), uma jovem interiorana; e de Mimi (Nara leão), que, gostando de Paulo, sente ciúmes e fica melancólica.
A festa está onde a gente estiver
Todas essas desagregações acabam por ser afoitamente impedidas por Lourival. Porém, o plano da participação na “festa do rei” malogra. Em primeiro lugar, pela bagunça, pelas trapalhadas e pelas idas e vindas. Em segundo, e mais importante, pela pouca disposição dos cantores em se submeter aos desígnios do rei. Mais preocupados em amar e se divertir, anarquicamente declaram ao fim: “A festa está onde a gente estiver”.
Alegorias como crítica política
As duas obras usam e abusam de alegorias.
Em Terra em transe, Paulo Martins representa a intelectualidade de esquerda, que deu sustentação a governos que, como o de Vieira, ilustrariam o conceito político de “populismo” (considerando “populismo” não no sentido pejorativo de “demagogia” que o termo identifica no senso comum, mas como um conceito histórico referente a governos latino-americanos de meados do século XX).
Vieira poderia ser considerado um governante “populista”, na medida em que falaria em nome das classes populares (mesmo não sendo oriundo delas) e lhe concederia benefícios. Desde que, é claro, elas lhe concedessem pleno apoio e não procurassem se organizar politicamente de maneira autônoma. Além disso, Vieira é caracterizado como gaúcho, traço que o aproxima da linhagem política de Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, ícones maiores daquilo que a historiografia tradicional identifica como “populistas”. No mesmo sentido, o filme até propõe uma aproximação da figura de Vieira com a do famoso “populista” e Presidente argentino Juan Domingo Perón, numa cena em que o brasileiro lê um trecho de Martín Fierro, clássico da literatura platina.
Fuentes, com quem Vieira se alia, pode ser visto como uma alegoria da burguesia nacional, que ora apoiaria governos “populistas”, ora conservadores, como o de Díaz. Este, por sua vez, é uma alegoria da direita tradicional e oligárquica presente na América Latina, região simbolizada pelo país de Eldorado. “Porfírio Diaz”, inclusive, foi o nome de um militar e ditador mexicano que ficou no poder de 1884 até 1911. Assim, a personagem de Díaz é o símbolo das elites que patrocinaram o Golpe de 1964 que derrubou João Goulart.
Por seu turno, em Quando o carnaval chegar, o alvo da caricatura é outro, os diferentes tipos de artistas populares: Paulo (Chico Buarque), cantor popular e de grande sucesso amoroso com as mulheres; Mimi (Nara Leão), cantora mais intelectualizada (é mostrada frequentemente lendo livros), introvertida e de família aristocrática decadente; e Rosa (Maria Bethânia), artista interessada pelas religiosidades afrobrasileiras. Curiosamente, pode-se notar certa proximidade entre os perfis das personagens e os dos respectivos artistas que as interpretam.
Além deles, há Cuíca, que alegoriza o sambista negro de origem pobre, periférica e de menor status social; Lourival, pequeno empresário charlatão que precisa barganhar oportunidades com os mais poderosos; o “Anjo” (José Lewgoy), arquétipo do grande empresário autoritário e inescrupuloso, com íntima ligação com o poder político; e o “Rei” (alegoria do poder político e, dado o contexto, da ditadura), figura que, mesmo distante e invisível, sempre ameaça e coage.
Em que pesem suas diferenças, nos dois filmes as alegorias têm papel estratégico para criticar hierarquias sociais e políticas.
No de Glauber, é famosa a cena em que Martins cala a boca de um trabalhador em um comício, escancarando o pouco apreço que a intelectualidade, inclusive a de esquerda, teria pela expressão popular (quando esta “ousasse” divergir de determinadas propostas políticas).
No de Diegues, satiriza-se a exigência do empresário Lourival para que seja chamado pelo nome completo e não por “Seu Louro”. Ridiculariza-se também a aliança entre o empresariado e a Ditadura, quando o “Anjo” intimida Lourival para que o show para o rei dê certo, senão poderia ser usada “psicologia” contra o grupo de artistas. Menção cifrada que pode ser entendida como uma alusão à tortura ou à perseguição policial, já que gera grande preocupação em Lourival.
Glauber e o transe das esquerdas
Terra em transe tematiza o choque da intelectualidade de esquerda diante do Golpe Civil-Militar de 1964 e a brutal quebra de expectativa de uma transformação política progressista no país. Lançada em 1967, a obra sugere com intensidade a amargura, a dor e o desconcerto da esquerda frente ao recente golpe.
Trata-se de um momento em que a Ditadura já mostrara suas garras, com os Atos Institucionais do nº 1 ao nº 4. Entre as muitas medidas autoritárias desses atos, podemos citar: as cassações de congressistas e funcionários públicos; a perda de direitos políticos de cidadãos considerados como ameaçadores ao regime; a queda da Constituição de 1946; o fim do multipartidarismo e da autonomia do Legislativo perante o Executivo. Isso ajuda a entendermos o tom de transe que o filme atribui à saga de Paulo Martins.
Um filme desencantado e autocrítico
Já nas primeiras cenas do longa, nos deparamos com a exasperação de Paulo (bem simbolizada pelo movimento frenético da câmera) com o êxito do movimento golpista e sua incapacidade de articular um plano de resistência ao novo regime político. Sua saída, sem encontrar em Felipe Vieira o apoio para uma oposição armada, é fatal. A dimensão de crise e de tragédia (de onde se tira que o branco e preto são indispensáveis para o caráter carregado e tenso de Terra em transe) não pode ser mais evidente: as esperanças políticas do jovem Martins são arrematadas com um fim funesto.
Antes disso, contudo, a personagem passa por um grande desassossego, que motiva a evocação da sua trajetória de aliança com Vieira. Martins relembra o caráter oligárquico desse governante, suas promessas não cumpridas e a repressão policial que permitiu contra camponeses, entre outras passagens que também geram uma ampla decepção da personagem.
Trata-se de uma autocrítica que o filme propõe à esquerda acerca de sua adesão a um projeto político populista: não teria o apoio a um oligarca como Vieira sido estratégia equivocada para a efetiva transformação social? Não teria sido inadequado apostar na política como representação paternalista de um líder pretensamente popular, em vez de estimular a auto-organização política dos trabalhadores? Da mesma forma, a aliança com a burguesia nacional, representada pelo sorrateiro Júlio Fuentes, não teria sido um erro crasso? O golpe vem a coroar esse percurso da esquerda: trôpego e já em vias de esgotamento.
Cacá responde à repressão estética
Por outro lado, Quando o carnaval chegar, foi realizado em momento distinto do regime ditatorial, quando o impacto do Golpe de 1964 já estava assimilado pela esquerda. Em 1971, quando o filme foi lançado, a esquerda já havia buscado resistir à ditadura de diferentes formas. Por exemplo, por meio de protestos (como a Passeata dos Cem Mil, em 1968), da clandestinidade, do engajamento artístico, visto nas artes plásticas, na música, no cinema (como o próprio Terra em transe, lançado em plena ditadura, atesta) e na dramaturgia.
A oposição à ditadura pela via criativa e estética, no entanto, sofre um revés com o endurecimento da repressão e da censura por parte da ditadura a partir do Ato Institucional nº 5 (1968), que dará início aos chamados “anos de chumbo” do regime, sob os governos de Costa e Silva (1967-1969) e Médici (1969-1974). Sempre necessário recordar, o AI-5 permitia a dissolução do Congresso Nacional pelo Presidente, a perda de direitos políticos de qualquer cidadão, além de decretar o fim da garantia de habeas corpus para crimes políticos, o que avalizava o recrudescimento da repressão estatal.
O filme de Cacá Diegues se relaciona profundamente com esse cenário, sendo, portanto apenas aparentemente “despolitizado”. Em primeiro lugar, por conta do enredo. No filme, a recusa das personagens em participar do cortejo do rei assinala uma óbvia declaração de independência e liberdade artística, bem como uma rejeição à submissão ao poder político autoritário. O teor engajado dessa postura é reforçado pelo fato de que os atores que a encampam são três cantores de esquerda e artisticamente empenhados no enfrentamento da ditadura: Chico Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia. Dessa forma, a oposição que esses cantores firmaram contra o regime autoritário na realidade encontra ressonância em suas atuações na ficção.
Além disso, Quando o carnaval chegar também estava em sintonia com a necessidade de superação da censura imposta pela ditadura. Canções compostas por Chico Buarque para o próprio filme sofreram censura, como “Partido Alto”.
Carnaval, metáfora da liberdade
Nessa canção, a censura obrigou a retirada da expressão “brasileiro” no verso “na barriga da miséria, eu nasci brasileiro”, com claro teor de denúncia das mazelas nacionais. Chico Buarque optou por substituir o termo por “batuqueiro” e obteve a liberação da censura.
Entretanto, boa parte da trilha musical consegue enunciar de forma forte (ainda que também metafórica) a contestação à ditadura e à censura. Alguns versos da canção-título do longa, também obra de Buarque, expressam esse posicionamento:
Quem me vê sempre parado
Distante garante que eu não sei sambar…
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tô só vendo, sabendo,
Sentindo, escutando e não posso falar…
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar (…)
E quem me ofende, humilhando, pisando,
Pensando que eu vou aturar…
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me vê apanhando da vida,
Duvida que eu vá revidar…
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
O carnaval aparece como metáfora da redenção e da liberdade, representada pela possibilidade de sambar. Da superação das mais diversas opressões e dificuldades (ser humilhado, apanhar da vida etc.), as quais simbolizam a ditadura, é claro. Se a folia é por si a subversão da ordem, do cotidiano, dos costumes, também é das hierarquias políticas.
Antes de o carnaval chegar, não obstante, o eu-lírico reconhece sua situação de contenção e admite que está “se guardando”, em virtude de “não poder falar”, apontando para a censura política imposta pelo regime autoritário. Porém, o eu-lírico deixa claro que o artista não está de todo impotente: promete que irá revidar, quando contar com plena liberdade de expressão.
Ainda que o filme como um todo não tenha as cores melancólicas dessa música em particular, o tema do poder da arte e do artista é aludido por vários outros de seus elementos. Principalmente, por sua atmosfera generalizada de escárnio e deboche.
Naquele início da década de 1970, o oficialismo de fala empolada, sempre reverenciando entidades superiores (“o civismo”, “a segurança nacional”, “a moral e os bons costumes”, “o progresso”) era uma das mais difundidas faces da ditadura. Tinha como palco principal as inaugurações de grandes obras, como a Transamazônica e a Ponte Rio-Niterói e como pano de fundo o sentimento ufanista que os órgãos de Relações Públicas do Governo Federal e boa parte da imprensa procuravam fomentar.
Todo esse clima de solenidade e disciplina militares(cas) chocava-se com um caldo de cultura jovem fermentado nos anos 1960: feminismo, liberação sexual, Rock, experimentações psicotrópicas, esoterismo, contracultura, movimento hippie, movimento Black Power… um conjunto de transformações que impactou os modos de se vestir, de amar, de falar, de ouvir música, cujas consequências vemos ainda neste final da década de 2010.
Não é difícil imaginar como todas essas manifestações culturais incomodavam nossos generalíssimos. Ouvimos ecos dela no jornal humorístico O Pasquim (que reunia nomes como Ziraldo, Henfil e Millôr Fernandes), surgido em 1969 e que logo em seus primeiros anos já fez um sucesso estrondoso, chegando à impressionante tiragem de 200.000 exemplares. Seu inconfundível humor sacana (talvez tio-avô da atual zoeira dos memes das redes sociais) é meio-irmão da descontração geral de Quando o carnaval chegar. Nos dois casos o riso anda junto da transgressão, mesmo quando não associada a um engajamento político estrito e austero. Isso não seria repetir o oficialismo dos discursos do Regime Militar, só que pelo avesso? A União Soviética que nos diga…
O tema do poder da arte e do riso também aparece no começo de Quando o carnaval chegar, com uma homenagem à canção “Cantores do rádio”, ode ao rádio musical brasileiro e a Oscarito (1906-1970, um dos maiores atores cômicos brasileiros das décadas de 1930, 1940 e 1950, tendo feito famosa dobradinha com Grande Otelo, 1915-1993). Tanto as humorísticas “cine-chanchadas” como as músicas radiofônicas foram produções artísticas nacionais extremamente populares na primeira metade do século XX. Muito antes de Roberto Carlos, cantoras como Aracy de Almeida (1914-1988), Emilinha Borba (1923-2005) e Ângela Maria (1929-2018) e cantores como Francisco Alves (1898-1952), Nélson Gonçalves (1919-1998) e Orlando Silva (1915-1978, não à toa conhecido como o “cantor das multidões”) habitavam o imaginário popular e movimentavam uma pujante indústria musical.
O filme de Cacá Diegues, décadas depois, parece sugerir que assim como esses artistas, os trabalhos de Chico Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia, jovens cantores à época, também teriam essa popularidade. Isso se confirma pelo êxito comercial do filme Quando o carnaval chegar e do disco com sua trilha sonora. Essa ampla difusão favoreceria a disseminação das posições políticas de combate à ditadura, reforçando a tese do poder da arte.
Igualmente, na canção “Mambembe” (que significativamente, abre e fecha o filme) a mensagem de esperança é clara. A letra diz:
No palco, na praça, no circo, num banco de jardim
Correndo no escuro, pichado no muro
Você vai saber de mim
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte
Cantando
Por baixo da terra
Cantando
Na boca do povo
Cantando
(…) Dormindo na estrada, no nada, no nada
E esse mundo é todo meu
Cantar e sambar: resistir
Ou seja, mesmo com a precariedade e a transitoriedade da situação do eu-lírico de “Mambembe” (tal qual a esquerda nos “anos de chumbo”), ele cantará e se fará ouvir. Deposita-se, assim, a esperança na resistência artística contra o autoritarismo, a qual semeia os frutos que só se colherão quando a redemocratização (o “carnaval”) de fato, chegar.
Esse diagnóstico político é acentuadamente oposto ao de Terra em transe, no qual o clima sombrio e trágico redundam, no grand finale, em suicídio e silêncio, um beco sem saída. Em franco contraste, o final de Quando o carnaval chegar é alto astral: a continuidade do multicolorido ônibus (meio hippie e com grande sorriso desenhado em sua traseira) da trupe em movimento, ao alegre som de “Mambembe” e com acenos dos atores, propõe uma saída de resistência política, na cena final do filme de 1972.
Essa dissonância também implica uma considerável contraposição entre os tempos narrativos dos dois filmes.
No drama de Rocha, Paulo Martins, consternado, não consegue fruir o presente: se volta para o passado, numa rememoração tensa que ocupa quase a totalidade da duração do filme. Não há nenhum esboço de futuro.
Já na comédia de Diegues, pouco se trata do passado da comitiva dos artistas viajantes. Enfatiza-se o seu presente rocambolesco, cheio de aventuras. Presente que, mesmo quando pontuado com tristezas e impotência (diante dos mandos e desmandos do “Anjo”) sempre oferece alguma brecha de prazer, seja na música, seja na sátira, seja no amor. Por isso, esse presente permite o sonho com um futuro pleno e verdadeiramente livre, ainda que longínquo. É a ele que a turma de cantores parece se dirigir na última cena.
Em Quando o carnaval chegar, há espaço para o otimismo, mesmo que se reconheça e se (auto)ironize o estado mal ajambrado da esquerda (como a trupe, que no filme, sempre está a ponto de se desintegrar e sucumbir), que na década de 1970, estava fragmentada em diversos segmentos: a cristã, a sindical, a “festiva”, a artística, o Partido Comunista Brasileiro na clandestinidade, os grupos guerrilheiros etc.. Daí vem a possibilidade de se conjugar crítica social e política à música popular e à comédia, não se levando tão a sério. O que seria impensável para se abordar o cenário destroçado e aterrador que apresenta Terra em transe.
Contraste entre o peso e a esperança
Os filmes, ambos alegóricos, explicitam uma clara oposição à Ditadura de 1964 e reconhecem as dificuldades da esquerda frente ao regime, embora as duas obras sejam de gêneros diferentes, respondam a distintos momentos históricos e apresentem diagnósticos políticos divergentes.
Constroem, assim, memórias distintas (embora complementares) do regime ditatorial e dos posicionamentos da esquerda perante ele. Não é de graça que os filmes adotam tons, narrativas e estéticas contrastantes. Onde o longa de Glauber quer autocrítica e inquietação, o de Diegues é esperança, brecha e humor.
Que não nos falte nenhuma dessas coisas para os presentes dias e para os que vêm por aí.
Autor
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Mestrando em História na USP.