Na Europa medieval, nos tempos de pestes e grande pobreza, trupes teatrais viajavam em suas carroças levando um pouco de arte e cultura ao povo miserável e aos nobres que se dignavam a recebê-los em seus castelos. No sábado passado, 28 de março de 2020, grandes pianistas de nossa época fizeram uma viagem virtual levando sua arte a todos que quisessem assistir ao vivo uma apresentação inusitada, de várias partes do mundo cada um tocou de sua casa ou de lugares vazios um repertório escolhido por eles mesmos. Essa transmissão aconteceu por causa do dia mundial do piano, o Piano Day é um evento que existe para unir todos que apreciam o instrumento e este ano teve um significado especial, pois nesses dias de quarentena diversos pianistas tem gravado peças de sua escolha para compartilhar através das redes sociais e canais de divulgação. Uma das transmissões, a livestream global da gravadora Deutsche Grammophon, contou com a participação de várias estrelas de primeira grandeza do universo pianístico.
Logo no início Maria João Pires, falando de sua casa, pediu uma reflexão sobre o que está acontecendo como algo que devemos aceitar e pensar sobre o que poderemos fazer melhor no futuro, por nós mesmos, pelo planeta e pelos outros. Como não poderia deixar de ser, tocou Beethoven, talvez o compositor mais ligado aos ideais humanistas de justiça e fé na humanidade. A peça escolhida foi a sonata Patética numa interpretação emocionada e emocionante.
Na sequência quase todos os pianistas fizeram seus votos de que tenhamos força nesse momento difícil, se solidarizaram com os doentes e com os profissionais que estão na linha de frente no combate à pandemia e se apresentaram tocando peças escolhidas especialmente para a transmissão. Foi uma live bem eclética juntando nomes da nova geração como Kit Armstrong e Víkingur Ólafsson a pesos pesados como Rudolf Buchbinder e Evgeny Kissin. Uma grata surpresa foi o compositor holandês Joep Beving que tocou obras de sua autoria, incluindo uma composição recente feita há poucos dias, sintomaticamente intitulada “Solitude”. Também tivemos uma homenagem ao Brasil pelo pianista Simon Ghraichy que iniciou sua apresentação interpretando a “Festa no Sertão” de Villa Lobos. Foi tocante assistir a todos unidos num mesmo propósito de dividir sua arte com quem está em isolamento por causa da pandemia. Para quem ainda não está acreditando na gravidade da situação, fica a informação que todos os eventos de música clássica foram cancelados, uma indústria cultural que movimenta milhões no mundo todo. Sejamos conscientes, tomando as precauções para minimizar os danos dessa pandemia e que em breve nossos ídolos estejam de volta aos palcos nos encantando com sua arte.
Como foi uma apresentação ao vivo o link já expirou, mas fiz uma seleção do meu coração com alguns momentos desses grandes artistas para vocês.
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IMAGEM DO CABEÇALHO: Renata Borgatti, au piano (1920), óleo sobre tela de Romaine Brooks, acervo do Smithsonian American Art Museum, EUA.
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Artista visual, pianista e colunista de música clássica da #RevistaCaju.