Conheça a NaPupila, coletiva curatorial que ajuda a reescrever história das artistas mulheres na mais popular das enciclopédias virtuais
Não é preciso muito esforço para constatar a disparidade de gênero ao pesquisarmos por artistas mulheres brasileiras na Wikipédia, e compararmos mesmo que superficialmente sua presença on line com a presença de seus pares homens, isso nos revela um grande problema. O mesmo acontece em praticamente todos os países do mundo. Uma pesquisa recente realizada pela Fundação Wikimedia aferem que apenas 10% dos editores da plataforma enciclopédica se identificam como mulheres, e a presença de editores trans e pessoas não binárias é praticamente nula. Como um espelho de identidade, essa baixa frequência acaba refletindo os conteúdos produzidos sobre artistas e mulheres proeminentes em outras atividades. Ana Emília Lobo, Julia Baker e Michaela Blanc vêm trabalhando para reverter este quadro no que diz respeito aos conteúdos brasileiros.
As três estão juntas desde 2018 na coletiva curatorial NaPupila, que, desde os primeiros momentos de sua existência, vem promovendo uma série de atividades (de exposições a organização de encontros) que procuram dar visibilidade a mulheres artistas e discutir a disparidade de gênero numa das mais acessadas bibliotecas virtuais do mundo a Wikipédia.
A coletiva, – termo que usam no feminino para marcar que se trata de uma iniciativa de mulheres – foi semeada a partir do encontro das três no curso de Capacitação de Mediadores do Parque Lage em 2011, ministrado por Cristina de Padula Cattán e Tânia Queiroz. Juntas as três participaram como mediadoras da exposição do coletivo Rojo, um grupo espanhol que trabalhava multi-linguagens e performance.
Elas se encontrariam novamente numa oficina no Parque Lage e nesse momento teriam a ideia de construir um site colaborativo que fosse focado em conteúdo. Deveria ser um site rizomático, mas esbarrando em problemas técnicos o projeto foi deixado de lado, e cada uma focou no que poderia trazer. Do compartilhamento de interesses e pesquisas nasceu a NaPupila.
Mediei uma live do NaPupila no Instagram da Revista Caju em 30/03 e esta iniciativa marcou o início de uma parceria entre as curadoras associadas cajuínas – eu, Bruna Araújo e Daniela Name, esta última também editora da revista – com a coletiva. A partir de nosso encontro e debate para pensar a ausência de verbetes sobre mulheres na Wikipédia, assumimos o compromisso, na Caju, de realizar a pesquisa que vai contribuir com dois verbetes criados no evento do último dia 31, já no ar em versão inicial – Thereza Simões, (clique aqui) e Celeida Tostes (clique aqui) – e na ampliação do texto ainda muito elementar sobre Wanda Pimentel.
Pensando curadoria em rede
A NaPupila é uma proposta que pensa a curadoria em rede. Tanto internamente como externamente com parcerias institucionais e no cuidado no diálogo com os artistas. Reunir diferentes pesquisas individuais em uma única iniciativa foi um dos desafios desse fazer junto, que já resultou em alguns projetos. A proposta da curadoria em rede veio após elas observarem que os curadores em geral trocam muito menos entre si do que os artistas.
“Muitas vezes é esperado uma determinada postura do curador, o artista já deposita suas expectativas, mas para nós é interessante fazer junto. Quando criamos o NaPupila queríamos trocas horizontais, fossem elas entre nós, entre os nossos colaboradores e entre os artistas que estávamos pesquisando . Com isso pensamos em criar redes, fluxos de ideias.”
A rede foi sendo formada pelas parcerias ao longo do caminho. A partir do contato com artistas e instituições. Sempre com o diálogo aberto, seja para a sugestão de temáticas, questões conceituais, até a disposição das obras no espaço expositivo. Tudo é negociado. É uma forma de experienciar a curadoria de forma mais horizontal e tirar o curador do lugar de autoridade absoluta.
O primeiro projeto juntas teve início no final de 2018 no espaço AliNaAlice. Desse convite veio primeiro projeto curatorial O Atlante: quando o ser torna-se mar, 2019. Uma mostra coletiva que falava sobre fluxos, tendo a água como fio condutor. Participaram: Liquida Ação, Alexandre Vogler, André Anastácio, Gabriela Noujaim, Maria Sabato e Bob N.

Na exposição, a matéria água foi pensada por diversas poéticas em suas camadas estéticas, políticas e sociais. Enquanto María Sabato falava sobre o sagrado feminino através da água. André Anastácio apresentou o resultado da coleta de água, produzida em diferentes partes da cidade, de praias ao Museu do Amanhã. Cada uma apresentando cor e densidades diferentes devido a poluição ou limpidez.
Outra ação resultou na segunda exposição da NaPupila. Foi a partir do o edital Coletivos Urbanos, um projeto do professor Gabriel Schvarsberg que envolveu o curso de arquitetura da Universidade Santa Úrsula e a coletiva para a criação de um mobiliário urbano. O local escolhido para a atividade foi a praça do Morro da Conceição que fica na Rua Jogo da Bola. A intenção era que o Mobiliário fosse utilizado tanto na praça como nas ações do espaço A MESA. A ação se desdobrou na Experiência nº24 Área irrestrita.
O projeto A MESA fica no morro da Conceição, um dos morros do quadrilátero que formou a cidade junto aos morros do Castelo, São Bento e Santo Antônio na região central da cidade do Rio de Janeiro. Essa é uma região com importante carga histórica, envolta por muitas disputas territoriais, desde a criação do Porto Maravilha e a voraz especulação imobiliária que se deu na região.
Área irrestrita tratou sobre territórios em diferentes camadas pensando o corpo e o espaço físico como meios de expressão de desejos. Cada artista trabalhou sua ideia de território e de tomada do espaço. Denilson Baniwa a partir de seu trabalho questionou a quem pertence o perímetro urbano e relembrou o Rio de Janeiro como Terra indígena. Já a artista brasileira/norte americana Chantal Feitosa apresentou um trabalho sobre as fronteiras da linguagem e as expressões racistas que permanecem no cotidiano.

Também participaram da coletiva Maya Inbar, “Videotongues” um projeto coletivo de Ali Hussein Al-adawy, Daniel Santiso, Kristian Byskov, Lorran Dias, Margarita del Carmen, Max Willa Morais e Prerna Bishnoy. Davi Benaion, CK Martinelli, Marie Carangi.
Atentas a movimentos internacionais: Arte+Feminismo e 5 Mulheres Artistas
“O fato de sermos três mulheres também levanta a questão de gênero nos nossos trabalhos. Quem são os diretores de museus? Quem são os curadores e artistas citados como referência na arte brasileira e na História da Arte?” .
Desde o ano passado a coletiva vem promovendo nas redes sociais a campanha 5 Mulheres Artistas. A proposta é uma iniciativa do National Museum of Women in the Arts, de Washington D.C., e é muito simples. “Usando a hashtag #5WomenArtists, a campanha destaca a vida e o trabalho de mulheres artistas, históricas e contemporâneas.” A coletiva fez a seguinte pergunta nas redes sociais no mês de março: Você pode indicar 5 artistas mulheres? As artistas citadas foram incluídas numa lista na página da NaPupila com informações curadas pela coletiva. Até o momento a lista já possui mais de 300 nomes entre artistas brasileiras e estrangeiras.
A partir de um contato com a fundação Art+Feminism em 2019 a coletiva passou a promover Edit-a-thons, também no mês de março, em virtude das comemorações do mês (de luta) das mulheres. Os edit-a-thons são maratonas de edição (editatonas) de verbetes na Wikipédia, uma das cinco enciclopédias virtuais mais acessadas do mundo. Em que foi observado que existe uma grande lacuna a ser preenchida tanto na quantidade de editoras colaboradoras da plataforma, quanto no número de verbetes sobre mulheres artistas. Um trecho do manual do projeto Art+Feminism diz o seguinte:
Arte+Feminismo é uma iniciativa global que pretende suprir a lacuna de temas ligados a gênero na Wikipédia, aperfeiçoando o conteúdo sobre mulheres cis e trans, pessoas de gênero não-binário, artes e o feminismo. Uma pesquisa de 2011 da Fundação Wikimedia revelou que menos de 10% de seus colaboradores se identificam como mulheres; uma pesquisa mais recente aponta para um percentual global de 16% e de 22% nos Estados Unidos. Os dados relativos aos editores trans e de gênero não-binário é basicamente inexistente.

O Arte+Feminismo surgiu como uma iniciativa para tentar diminuir a desigualdade de gênero na Wikipédia. A edit-a-thon deste ano de 2020, contou com mais de 30 mulheres envolvidas na criação e edição de verbetes de mulheres artistas. Os já citados verbetes sobre Celeida Tostes e Thereza Simões foram criados durante o evento. Essa é uma iniciativa que não visa apenas a inclusão de verbetes de artistas visuais, mas de mulheres de todas as áreas de atuação.
“Muitas vezes as informações que encontramos na internet estão incompletas, principalmente quando buscamos sobre artistas mulheres. O propósito é fazer uma curadoria dessas informações”
A intenção não é fazer um verbete totalmente completo logo de início, mas dar a entrada ou atualizar verbetes existentes com novas informações ou correções, mantendo sempre um padrão neutro de edição, banindo comentários e desejos pessoais para que o verbete possa ser avaliado positivamente pelos editores da Wiki.
Sobre como foi pensada a estrutura do evento físico deste ano elas contam:
“Contaríamos com cuidadoras de crianças para que as mães pudessem participar do evento. Essa é uma das questões que levantamos. O acesso e participação das mulheres mães nos meios de arte. A forma como a sociedade é estruturada é completamente cruel com as mulheres. No meio acadêmico, por exemplo, se você é mãe, por mais que seu parceiro seja participativo você inevitavelmente vai ficar um tempo sem produzir . Mas o sistema não vai entender isso.
Fizemos essa segunda edição em parceria com o Parque Lage. O Intuito era criar um ponto de partida com uma lista de alunas e professoras que passaram pela instituição. Lá foi feito um levantamento na biblioteca para saber quantas mulheres escreveram os livros da instituição e o número foi ínfimo em relação a quantidade de homens.”

Inicialmente o evento deste ano organizado pelo NaPupila aconteceria no Parque Lage, mas devido a pandemia do novo coronavírus o evento foi inteiramente on-line. Enquanto o Parque Lage contribuiu com levantamento de nomes de suas alunas e professoras a partir da curadora da Biblioteca | Centro de Documentação e Pesquisa da EAV, Tanja Baudoin, juntos das bibliotecárias Juliana Machado e Rubia Luiza da Silva, o Instituto Moreira Salles colaborou dando assistência as participantes do projeto. Vale ressaltar que o IMS também promove edit-a-thons em São Paulo desde 2019. O evento ainda contou com o suporte técnico de Érica Azzellini e Giovanna Fontenelle do Wiki Movimento Brasil.
No levantamento feito pelo Parque Lage dos mais de 90 nomes levantados entre professoras, diretoras e alunas em que constam mulheres importantes para a arte contemporânea brasileira como Celeida Tostes, Lygia Pape, Lia do Rio, Beatriz Milhazes, Rosangela Rennó entre outras, apenas 23 possuem entrada na Wikipédia.
É importante dizer que outras “editatonas” foram realizadas no Rio de Janeiro, como a iniciativa promovida por Steffania Paola e Natália Quinderé na exposição {|} XANADONA {|} evento em que as artistas Aleta Valente, Anitta Boa Vida e Caroline Valansi foram convidadas a ocupar os dois primeiros andares da galeria A Gentil Carioca entre os meses de abril e maio de 2016. “A proposta consistiu em desdobrar suas pesquisas, que partem dos femininos e tocam os feminismos”. A exposição contou com conversas, ateliê, grupo de estudos, filmes, performances, oficinas, música e um edit-a-thon.
Algumas questões que o projeto do NaPupila nos instiga a pensar, além da inclusão de verbetes de artistas mulheres na Wikipédia é em como pensar o uso e a importância dos dados em relação a gênero dentro do ensino da História da Arte do Renascimento ao Contemporâneo e nas coleções de museus . Também em relação às pesquisas realizadas por mulheres ou sobre elas, visto que a invisibilização é uma realidade em diferentes áreas de atuação e é ainda mais gritante quando pensamos em mulheres negras e indígenas. Essas pequenas ações somadas a outras iniciativas são portas que se abrem para que pouco a pouco o cenário atual seja mudado e assim a forma como produzimos a História da Arte também seja repensada.
“Pensando no contexto do Brasil o que nós estamos fazendo com a nossa História da Arte? Precisamos resgatar essas artistas e pesquisas sobre elas. Precisamos pensar em revisões historiográficas que pensem a partir de um feminismo de cruzamentos trazendo o feminismo negro e indígena. Existem muitos campos que podem ser abertos com essas investigações.”
Fica a reflexão: que História da Arte brasileira queremos fazer?

Autor
-
Curadora associada da Caju. Especializada em projetos curatoriais ligados à mediação educativa.
Relacionado
Curadora associada da Caju. Especializada em projetos curatoriais ligados à mediação educativa.