O olho nas ruas e espaços culturais do Rio e de São Paulo, sempre clicando e filmando cenas e eventos com rara sensibilidade para as redes sociais da revista.
A Estação Primeira de Mangueira – uma das instituições mais importantes da cultura brasileira – faz 92 anos. Há quase 55, Hélio Oiticica tentou apresentar seu Parangolé P8 ou Parangolé Mangueira nos salões do Museu de Arte Moderna, durante a abertura da histórica exposição Opinião 65. A diretoria do MAM da época, que organizava aberturas com homens brancos de terno e gravata e moças não menos brancas com seus vestidos toilette, barrou os ritmistas e passistas negros da escola de samba, e eles se apresentaram, ao lado de HO, nos pilotis da instituição e em seus arredores, no Aterro. Repensar este episódio é cada vez mais urgente e importante, sobretudo no momento em que o protagonismo negro para ser uma lufada de esperança para as feridas de uma nação doente (clique aqui para ler texto de Sabrina Fidalgo na coluna Quadro negro, de Dodô Azevedo).
Ritmistas e passistas da Mangueira na área externa do MAM durante a abertura de “Opinião 65”: barrados no interior do museu. Foto do Instituto HO
Oiticica havia chegado à Mangueira em 1963, a convite de Amilcar de Castro. O escultor, amigo bem mais velho, havia sido convidado para conceber o carro abre-alas do carnaval seguinte da escola, que buscava elementos de vanguarda para se fortalecer e enfrentar o Salgueiro, agremiação que havia se tornado uma papa-títulos depois da chegada revolucionária de Fernando Pamplona e seus enredos. Pamplona introduziu o protagonismo negro e periférico na narrativa dos enredos e, de certa forma, não deixa de ser um motor e uma raiz para o estandarte Seja marginal seja herói (1968), que HO conceberia anos mais tarde.
‘Na Mangueira, Apolo virou Dionísio’
Em 2000, em uma das últimas conversas que tive com Lygia Pape (caramba, lá se vão 20 anos!), ela recordou o encontro decisivo com a Mangueira na vida de seu grande amigo. A chegada na escola e, na sequência, o cotidiano nas festas e outros eventos do morro, coincide com a morte do pai de HO, o fotógrafo experimental e pesquisador do Museu Nacional José Oiticica Filho (1906-1964). Ainda menino, Oiticica auxiliava o pai nas fichas catalográficas do museu, atividade que marcaria para sempre o perfil metódico com que registrou e arquivou a própria obra. Mas foi na escola de samba mais popular do Brasil que estes fundamentos se transformaram em alicerces reais para uma nova abordagem da arte: “Na Mangueira, Apolo se transformou em Dionísio. Hélio entendeu a dimensão da vivência e vislumbrou o corpo e a dança como possibilidades para a arte, para o mundo como museu”, lembrou Lygia.
Hélio Oiticica como passista da Mangueira em 1966, no desfile sobre o compositor Villa Lobos
Em entrevista para a próxima edição da revista Concinnitas, da Uerj, que entra no ar em breve, o artista Leandro Vieira, carnavalesco da Mangueira, definiu seu próprio trabalho como “Bandeira pra vestir no carnaval”. Fico pensando no parangolés e nos estandartes de HO como esta “bandeira pra vestir” ou “pintura pra dançar” – estandartes que vêm das escolas, vêm do samba e do corpo negro que resiste se transformando em canto e percussão. Lembro ainda quantas vezes a visualidade e outros patrimônios do carnaval alimentaram o circuito de arte (moderna, contemporânea) e seus criadores com matéria viva. Nomes reconhecidos e chancelados pelo circuito – de Tarsila a J. Carlos, de Djanira a Beatriz Milhazes, de HO a Ernesto Neto – têm na folia parte de suas vísceras, de suas motivações mais profundas.
Apesar disso, e de projetos-exceção como a brilhante ORio de samba: resistência e invenção (lembre aqui), que esteve em cartaz no Museu de Arte do Rio, o carnaval segue encontrando as portas fechadas no seu reconhecimento como atividade artística e como fonte produtora de imagens plásticas. O racismo e a aversão ao popular explicam boa parte desse problema. É preciso entender Décio Pignatari – “Arte é aquilo que não”. É preciso reconhecer a Mangueira como bandeira desfraldada a sinalizar essa interdição.
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A imagem do cabeçalho mostra Nininha Xoxoba, integrante da Mangueira, em 1965, com o Parangolé P8. Daremos o crédito se o autor for identificado.
A imagem do Opinião 65 que publicamos no corpo do texto pertence ao Instituto HO. A imagem de Hélio Oiticica no desfile da Mangueira em 1966, em homenagem a Villa Lobos, é de autor desconhecido. Daremos o crédito se for identificado.
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