Diante de uma sociedade que impõe a heteronormatividade-branco-cristã como a lei universal, é possível afirmar que qualquer corpo, imagem ou comportamento que fuja desses padrões será considerado desviante, estranho. Ou, como o cristianismo reproduz, um pecador, um semelhante ao diabo; Satã.
Na minha infância em Ananindeua, no Pará, muitos se dirigiam a mim com apelidos homofóbicos. Faziam do bullying uma maneira de reprimir aquilo que não consideravam “padrão”, reproduzindo a visão opressora de uma sociedade que não permite que crianças gays, negras e afeminadas possam exercer sua liberdade. Alguns termos com que me cobriam eu só pude compreender com o tempo; dentre eles, o apelido de Madame Satã.
Na pré-adolescência, quando gradativamente fui perdendo o medo causado pela culpa de minha criação cristã, comecei a mergulhar sem auto-julgamentos nas referências LGBTQI+ que me fascinavam. Lembro que, aos 12 anos, vi uma revista com uma fotografia do filme Madame Satã (2002), protagonizado por Lázaro Ramos e dirigido por Karim Aïnouz. Como bom amante dos desfiles das escolas de samba que já era, me conectei com a imagem daquele corpo negro todo purpurinado, usando batom, gargalhando e extremamente sensual.
Uma identidade ‘para muitas de nós, bichas pretas’
João Francisco dos Santos (1900-1976), o Madame Satã, entrou no imaginário brasileiro e na minha vida, tornando-se um mito, sendo revivido como um apelido para muitas de nós, bichas pretas. Sua infância foi marcada pela escravidão em uma fazenda na cidade de Glória de Goitá, um município no interior de Pernambuco, de onde fugiria para conseguir sua liberdade. Já adulto, tendo como cenário o bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, construiu sua história, entre relatos boêmios, a luta contra a pobreza, o racismo e a homofobia.
Em uma de suas inúmeras prisões, recusou-se a dizer seu verdadeiro nome. O delegado, sabendo da sua fama, lhe batizou com o apelido retirado de um filme hollywoodiano, Madam Satan (1930), que tinha, entre suas imagens, a atriz Kay Johnson com um lindo figurino de diaba, para uma cena de baile de máscaras. Foi dessa icônica imagem que nasceu o nome que tornaria imortal.

Transformista para alguns, “malandro” e temido para outros, Satã desconstruiu a imagem do gay delicado e indefeso. Afinal, para a branquitude, o negro não pode ser sinônimo de delicadeza e nem de sensibilidade. Ele se impôs contra as violências estruturais do sistema colonial-escravocrata: lutou, revidou e não se calou.
Madame Satã é um conceito
O múltiplo artista participou de uma das gravações para o coro de Pelo telefone (1916; ouça clicando aqui) com um traje de morcego dourado, característico das festas populares de sua cidade. Também foi reconhecido por sua vitória no concurso de fantasias do bloco Caçadores de Veados, inserindo-se na cena do samba e da folia cariocas. Além disso, realizou icônicas performances, como grande exemplo as que realizou com a alcunha de Mulata do Balacochê¹ durante suas apresentações em palcos e teatros da praça Tiradentes.
Neste mês de junho, em que se comemora a luta e a visibilidade LGBTQI+ ², para mim é impossível não pensar sobre gênero a partir de um olhar interseccional sobre as opressões. Além de enfrentarem a LGBTQ-fobia, pessoas lésbicas, gays, travestis e transsexuais negras também enfrentam o racismo e a invisibilização de seus conhecimentos, práticas e narrativas.
Madame Satã tornou-se um conceito, uma referência para pessoas dissidentes afro-brasileiras assim como a ativista e artista trans-negra Marsha P. Johnson (1945-1992) nos Estados Unidos. Satã vai da Lapa às ruas do Brooklyn, em Nova York, a partir da intervenção urbana de um trabalho chamado “UóHol” que realizei durante uma residência artística no verão de 2019, no ano de comemoração dos 50 anos da revolta de Stonewall.

O trocadilho entre a o nome de um dos mais importantes artistas da Pop Art Andy Warhol e a gíria brasileira “Uó”, utilizada entre pessoas LGBTQI+ para alguma ação ou atitude ruim, tosca ou negativa dá origem a um painel de ícones negras brasileiras em uma muro no Brooklyn: Jorge Lafond, Márcia Pantera, Madame Satã e Leona Vingativa – diversas gerações de artistas que fazem parte de minha memória e formação artística.
Satã, Joãosinho e Lafond: pecado original de Adão e Eva
Coração de serpente não se engana
Fez Adão provar maçã
E Eva comer a bananaBeija-Flor, 1985.
“Segundo o tema, Eva teria sido a primeira Garota de Ipanema e Adão, o primeiro malandro da Lapa. O casal deveria viver entre a divina trindade: o Pão de Açúcar, o Corcovado e a Pedra da Gávea, mas, descoberto o pecado, foram expulsos do paraíso Arcos da Lapa afora, indo parar em Sodoma e Gomorra, cidades caracterizadas pela Praça Tiradentes em um dos grandes carros da escola. Nesse mundo louco carnavalizado pela Beija-Flor, os Tenentes do Diabo lutaram contra assírios e babilônios, enquanto o Rio de Janeiro transformou-se numa grande Torre de Babel, representada no desfile por uma enorme alegoria. Colorida e rica, a Beija-Flor encantou o público com seus carros alegóricos e suas fantasias. Desde o paradisíaco abre-alas – onde Adão e Eva eram tentados por Madame Satã – até o final do desfile.” Marcelo Guireli

A figura de Madame Satã foi tão marcante para a cidade do Rio de Janeiro que espalhou-se pelos diferentes espaços de arte da cidade, fazendo-se bastante presente no mundo carnavalesco das escolas de samba. A reincidência com que Satã aparece como personagem dos desfiles comprova sua força e importância como ícone/imagem e como partrimônio simbólico – para a cidade e para sua maior manifestação cultural.
Como não amar a narrativa pitoresca, lúdica e carnavalizada de Joãosinho Trinta?
Dando início a uma parceria de muitos carnavais entre Joãosinho Trinta e Jorge Lafond (1952-2003), o enredo da Beija-Flor de 1985 trouxe Lafond como uma Madame Satã que seduzia Adão e Eva, vividos por Paulo Cézar Grande e Márcia Porte. O “pecado original” se dava em uma Lapa alegórica, entre prazeres e pecados, eternizando uma das aparições mais marcantes de Satã em desfiles das escolas de samba cariocas. Lafond viria também a fazer história na televisão e na cena drag, com sua inesquecível personagem Vera-Verão do programa A praça é nossa. Entre os muitos estereótipos problemáticos e clichês racistas que a personagem reproduzia, havia muito do imaginário brigão, insubordinado e desejado de Madame Satã.

Onde está? Diz aí
Carlota Joaquina veio descobrir
Na busca o bonde da Lapa Madame Satã
Pequena notável requebra até de manhãAcadêmicos do Salgueiro, 2011.
Um lugar para corpos dissidentes na folia
Em 1990, Madame Satã foi tema do enredo da escola de samba Lins Imperial, em enredo de Sérgio Faria, outro grande momento de homenagem à rainha da Lapa. Reapareceu quatro anos depois, em 1994, no carnaval do Acadêmicos do Salgueiro, com o enredo Rio de lá pra cá. Cristiano Morato usou a fantasia de destaque.
O Salgueiro é uma escola que tem por característica reincidente a exaltação do Rio de Janeiro em seus enredos. Em 2011, apresentou O Rio no cinema. Na homenagem a vários filmes que tiveram a cidade como cenário, houve uma ala coreografada em homenagem a Madame Satã e à malandragem da Lapa.
Em uma apresentação carregada de erotismo e sensualidade, o bailarino e coreógrafo Carlinhos do Salgueiro impressionou a Sapucaí com seu porte físico e sua atuação performática, firmando o lugar político das bichas pretas nos desfiles das escolas de samba no início da segunda década dos anos 2000. Mostrou ainda o legado de pioneirismo e a imortalidade de Madame Satã para os corpos dissidentes do carnaval.

Em 2015, a Portela falou em seu desfile de um Rio de Janeiro surrealista. Entre delírios inspirados em Salvador Dalí, recriou os personagens que compõem o imaginário da cidade. O quinto carro alegórico, em homenagem à Lapa, trouxe uma grande escultura de Madame Satã.

Com o enredo Tata Londirá: o canto do caboclo no Quilombo de Caxias, em 2020 a Grande Rio homenageou Joãozinho da Gomeia (1914-1971), um dos pais de santo mais importantes do Brasil. Homossexual, transformista, bailarino e presença certa em vários desfiles de escola de samba, o polêmico “Rei do Candomblé” quebrou muitos paradigmas e abriu caminhos para a expressão de corpos afro-LGBTQI+ no carnaval.
O tripé Pavão dourado, trazia o setor de Joãozinho e das suas “montações” como Cleópatra, Virgínia Lane, entre outras personagens. Não podia faltar o axé de Madame Satã, incorporada ao desfile pela performance do ator Átila Bee. Narrativas que se encontram e resistências que se perpetuam.

Narrativas do desfile como resistência ao extermínio de jovens negros
A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, cerca de 63 por dia segundo a ONU. Somos ainda o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Logo, não é cabível normalizar os abismos raciais e sociais que se perpetuam na educação e nos diversos campos do conhecimento é necessário entendê-los e enfrentá-los. Enquanto a realidade das pessoas negras e LGBTQI+ for existir em menores números nas universidades e em maiores número nas prisões, não teremos democracia e nem revisão histórica.
As escolas de samba representam um importante núcleo urbano de resistência e de acesso aos saberes corporais e linguísticos da ancestralidade afro-brasileira. Porém, ainda precisam descolonizar as práticas de suas estruturas de poder que dão continuidade ao projeto do colonialismo. As mesmas amarras que não permitem que ainda hoje travestis, transexuais, mulheres e bichas pretas possam estar afrente de um projeto de direção artística como carnavalescas ou presidentes das agremiações.
As discussões e as aparições levantadas por Madame Satã continuam sendo muito atuais e urgentes para as pautas e debates sobre gênero, raça e diversidade no carnaval. A presença do corpo negro sempre será política, não como objeto temático e sim como sujeito de sua própria vivência, consciente do seu lugar de fala para uma prática crítica contra símbolos racistas como o black face e contra tentativas epistêmicas de apagamento.
Obrigade, Madame Satã, por me acompanhar e por me fazer entender que sua herança hoje é um estandarte que todes nós carregamos em nossas re-existências poéticas e políticas.
¹Mulata do Balacochê foi uma criação originária da grande paixão de Madame Satã por Josephine Baker (1906-1975), grande cantora e dançarina das décadas de 1930 e 1940, que é considerada a primeira grande estrela negra das artes cênicas. Paixão e referência que compartilho.
²28 de Junho é considerado o dia do orgulho LGBTQI+, data que lembra o dia em que lésbicas, gays, travestis e transexuais revoltaram-se contra as opressões policiais no bar Stonewall Inn, em 1969, na cidade de Nova York.
A foto em destaque no cabeçalho mostra Carlinhos Salgueiro como Madame Satã, no desfile da Acadêmicos do Salgueiro em 2011.
Autor
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Nasceu em Belém do Pará, 1992. Vive e trabalha entre Rio de Janeiro e São Paulo. Graduou-se em Licenciatura e Bacharelado no curso de Artes Visuais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). É drag queen e ativista LGBTQI+. Atua de forma transdisciplinar com vivências entre moda, escolas de samba e arte contemporânea. Seus trabalhos investigam questões sobre gênero, sexualidade, afrofuturismo, descolonização e interseccionalidades. Já foi carnavalesco de escolas de samba em Belém. Desde 2013, tem pesquisas e práticas voltadas para vivências com as escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro. Atualmente é destaque da escola de samba Grande Rio.
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Nasceu em Belém do Pará, 1992. Vive e trabalha entre Rio de Janeiro e São Paulo. Graduou-se em Licenciatura e Bacharelado no curso de Artes Visuais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). É drag queen e ativista LGBTQI+. Atua de forma transdisciplinar com vivências entre moda, escolas de samba e arte contemporânea. Seus trabalhos investigam questões sobre gênero, sexualidade, afrofuturismo, descolonização e interseccionalidades. Já foi carnavalesco de escolas de samba em Belém. Desde 2013, tem pesquisas e práticas voltadas para vivências com as escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro. Atualmente é destaque da escola de samba Grande Rio.