Era só ligar para o Tantinho.
Em qualquer texto sobre samba ou Carnaval, havendo dúvida sobre a história da Estação Primeira de Mangueira, os jornalistas ouvíamos a dica: era só ligar para o Tantinho. Funcionário da Funarte entre 1987 e 1996, ano de sua aposentadoria, o compositor, nascido Devani Ferreira, aprimorou sua vocação para pesquisa e preservação da memória na rotina do Centro de Conservação e Preservação Fotográfica da instituição.
Envolvida em uma pesquisa sobre samba para um filme, eu estava com o site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional aberto quando soube da morte do Tantinho no domingo à noite. Lembrei na hora da primeira entrevista que fiz com ele, em 2005, na quadra da Mangueira, e da última vez que o vi, em dezembro último, numa roda de partido alto com Marquinhos China na quadra do Fala meu louro, no Santo Cristo. Partideiro, compositor, cantor, pesquisador e tido como a “enciclopédia” da Estação Primeira, Devani Ferreira tinha 73 anos quando cantou pra subir na noite de Páscoa. Como se faltassem más notícias nessa época virulenta.
No site da Hemeroteca, que é um parque de diversões para qualquer pesquisador, digitei “Tantinho + Mangueira” para tentar entender como o griô mangueirense foi retratado nos jornais ao longo da sua trajetória. É um exercício interessante notar como os jornais podem ignorar solenemente um artista por mais de uma década e, subitamente, cair aos seus pés. O contrário também acontece: como jornais cravam apostas em alguns nomes e nunca mais lembram deles. Ou como alguns compositores só têm seus nomes estampados quando morrem.
Com Tantinho aconteceu algo curioso: apesar de muito presente nas agendas de shows da cidade – no início dos anos 2000 não havia um mês em que não tivesse apresentações marcadas em salões da Zona Norte e Zona Sul – quando teve seus próprios discos lançados recebeu apenas duas críticas. Uma de Tárik de Souza e outra de João Pimentel, jornalistas de mil antenas. Em mais de 60 anos dedicados à música brasileira, Tantinho não apareceria mais de que algumas vezes nos jornais, raramente falando.
“Pobre”, “confuso”, “poesia que não acrescenta”: as primeiras críticas
A primeira vez que apareceu nos jornais foi no Jornal dos Sports, em 9 de novembro de 1976, na véspera da escolha de samba do Carnaval da Mangueira – Tantinho e Jajá concorriam com o samba “Panapanã, o segredo do amor” sobre uma lenda indígena que falava sobre o romance da lua com o sol, que teve como fruto uma revoada de borboletas. Entre novembro e dezembro, seu nome pipocou nas colunas de carnaval. A imprensa torcia o nariz para o enredo, algumas colunas diziam que a Mangueira “ainda insistia em lendas indígenas”, outras chamavam de “confuso”, outros duvidavam que alguém criasse versos com essa história. A primeira foto estampada num jornal saiu na capa do periódico A luta democrática (anexo), ” Mangueira já tem samba”, essa notícia que aquiesce os meses de novembro – mas foi encimada por uma manchete horripilante, “Matou a tiros o pai e o filho”, crime ocorrido na Barra da Tijuca.
O 1976 foi o ano em que o Leon Hirszman filmou Partido alto, curta-metragem (disponível na íntegra no YouTube, veja acima) em que Tantinho aparece cantando e dançando. Imagino aquela carinha dele lendo os comentários dos jornais…
Pois Tantinho e Jajá ganharam a disputa na Mangueira.
Era lindo o ente alado
em rodopio multicor
era Rudá em pleno reinado
mostrando que a força da vida
é o amor.
Renato Sérgio, da revista Manchete, adorou o samba. Rubem Confete não gostou, e escreveu sobre ele na coluna que assinava sobre música popular na Tribuna da Imprensa: “Panapanã resultou num samba tradicional à altura da história mangueirense. Tantinho e Jajá exploraram uma melodia falsa, mas de grande efeito. A poesia não acrescenta coisa alguma, apenas descreve o tema” (4/1/77). Lena Frias disse no Jornal do Brasil que era um “samba pobre”, mas que apesar disso, o público cantou “com o maior entusiasmo” (23/2/77). Na coluna Samba e outras coisas, do jornal A luta democrática, Meu Sinhô dizia, no entanto, que o samba tinha tido “grande vulto” entre o público.
Classismo e racismo: nas escolas e nos clubes
Houve uma coluna curiosa do jornalista Waldinar Randulpho no mesmo jornal em que ele citou Tantinho, reclamando que tinha ido a um ensaio da Mangueira e achou um absurdo os sambistas fazerem intervalo na roda para lanchar (!!!). “Onde já se viu a Estação Primeira, durante um animado ensaio, interromper o pagode, por volta das três da matina, para que os ritmistas façam seu recreio? (…) Por que a Mangueira resolveu inovar negativamente? Seus ritmistas sempre fizeram lanche sem interromper o pagode”, juro que esse senhor escreveu exatamente assim, como se os músicos estivessem ali apenas para entretê-lo.
Poucos dias antes daquele carnaval de 77, Tantinho ligou para o jornalista José Inácio Werneck para reclamar do presidente do Fluminense, Francisco Horta. Na sede do clube, em Laranjeiras, aconteciam alguns ensaios da Mangueira. Segundo a coluna, Tantinho não frequentava esses ensaios – pois na única vez em que foi viu que os negros entravam lá “por um beco, como clandestinos” (11/2/77). E assim as entrelinhas dos jornais iam desenhando quem era Tantinho e como eram as relações sociais no seu entorno.
Em 1987, numa daquelas entrevistas coletivas do Pasquim com Albino Pinheiro, Jaguar e Sergio Cabral, o sabatinado foi Nelson Sargento. Questionado sobre o legado do samba na Mangueira, sobre quem sucederia Xangô nos pagodes, por exemplo, contou que havia um partideiro em Mangueira que era, segundo ele, “excelente improvisador”: Tantinho. O primeiro elogio rasgado vinha na imprensa independente.
Em 1999, o Jornal do Commercio celebrava o lançamento do CD Velha Guarda da Mangueira e Convidados, que já incluía Tantinho, de 52 anos, entre os baluartes – apesar de um dos requisitos para integrar a Velha Guarda era ter 60. Com esse lançamento, o nome de Tantinho começa a frequentar os roteiros de programação dos jornais, com diversos shows pela cidade. Por vezes acompanhado de Xangô, noutras com Marquinho China ou Monarco.
Tárik de Souza foi o primeiro a chamar Tantinho de “enciclopédia do samba” na sua coluna Supersônicas, no Jornal do Brasil, em 2001, e também o único a ouvir seu primeiro disco publicamente, em uma resenha generosa: ” Voz bem timbrada com um vibrato decrescente que lhe serve de marca registrada, Tantinho revolve com perícia os sambas obscuros da Mangueira (16/07/2006).
Tantinho lançou seu primeiro álbum solo no ano anterior: Tantinho, memória em verde e rosa. Com direção de Paulão 7 cordas, foi um dos mais indicados no Prêmio Rival Petrobrás de Música e por fim premiado. Nas reportagens sobre o disco, reforçava sua preocupação com o sumiço do partido alto na Mangueira e nas escolas em geral. Contou que teve de sair da Mangueira por ter recebido ameaças de morte – não aceitava ordens de conduta de quem vinha de fora para mandar no morro.
João Pimentel arrancou dele histórias saborosas para uma reportagem publicada n’O Globo em 13/07/2005, como a que explicava sua entrada precoce na bateria da Mangueira, aos 6 anos. A mãe, da ala das baianas, não tinha com quem quem deixá-lo durante os ensaios. E a solução foi dar ao moleque um tamborim, feito à sua medida pelo diretor da Ala da Bateria. Dali, começou a compor aos 11 e a se aproximar do canto de Jamelão, tornando-se um dos poucos jovens nos quais o intérprete confiava o microfone nos ensaios.
‘Passava tinta em pintinho para vender mais caro na feira’
Foi mais ou menos nessa época que eu, recém-formada, fui à quadra da Mangueira entrevistá-lo. A matéria era a minha primeira dominical no Jornal do Brasil, onde fui trabalhar no mesmo dia em que me formei, e a pauta era sobre memórias de antigos malandros. Conversei com Monarco, Guilherme de Brito e Tantinho, que me contou as suas lembranças: “Comecei cedo na malandragem. Roubava gato para virar pele de tamborim, passava tinto em pintinho para vender mais caro na feira. Nos desfiles, ainda moleque, ficava escondido embaixo da saia das baianas para fugir do Juizado de Menores”, contou-me ele, lembrando que Cartola não gostava de meninos correndo pelo morro sem camisa e sem calçado. “Corri muito para não levar bronca dele. Mas aprendi que malandro tem que andar bem vestido. E tem que respeitar mulher. No meu tempo cabrocha não deixava ser chamada de cachorra não”,

A primeira e única vez em que Tantinho estampou seu rosto numa capa de jornal seria em 2006, pelas mãos do repórter e crítico Bernardo Araújo, d’O Globo. “O historiador informal da Mangueira” era o título, e o gancho era o lançamento do disco Tantinho, memórias em verde e rosa. Na reportagem, ficava evidente como Tantinho era um pesquisador obsessivo, que para o disco conseguiu garimpar 180 sambas desconhecidos compostos em Mangueira: “Minha mãe era lavadeira (…) elas lavavam roupas cantando os sambas da época, que eu decorava”. Além da memória, Tantinho fazia reuniões com os mais velhos para lembrar músicas, vasculhou o Museu da Imagem e do Som e anotações antigas. Achou até uma desconhecida de Cartola (19/7/2006).
Três anos depois, lançou seu segundo disco: Tantinho canta Padeirinho da Mangueira. Com ele, ganhou o Prêmio da Música Brasileira no ano seguinte, mas a láurea e o disco dessa vez passaram quase despercebidos – o disco recebeu apenas uma crítica, também de João Pimentel, que elogiou o trabalho de resgate da curadoria de Tantinho. Por sorte, àquela altura a internet já permitia que o show fosse disponibilizado na íntegra, no YouTube, onde está até hoje.
Nos anos seguintes, se apareceu só um tantinho nos jornais, apareceu um tantão na internet, em diversos depoimentos, apresentações, entrevistas que hoje nos encantam e ajudam a desenhar o personagem fundamental que foi para a história da canção popular brasileira. Agora, é só ligar no Tantinho. E torcer para que sua memória seja tão bem cuidada quanto ele cuidava da memória da Mangueira.
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Autor
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Jornalista e doutoranda do programa de Estudos da Literatura da Universidade Federal Fluminense, é uma das autoras da coletânea de crônicas "O meu lugar" (Mórula) e de "Vem pro Bola, meu bem", livro que reuniu histórias do centenário do Cordão do Bola Preta.
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Jornalista e doutoranda do programa de Estudos da Literatura da Universidade Federal Fluminense, é uma das autoras da coletânea de crônicas "O meu lugar" (Mórula) e de "Vem pro Bola, meu bem", livro que reuniu histórias do centenário do Cordão do Bola Preta.