A seção Memória do Carnaval passa a publicar periodicamente textos dos colaboradores cajuínos que recuperem imagens da história dos desfiles, sejam elas parte da narrativa oficial dos cortejos ou integrantes de seus “mundos paralelos”. Este é o caso do vídeo sobre a apuração de 1989, que Frederico Pellachin, pesquisador da história da televisão, analisa afetuosamente no texto a seguir.
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Em quarentena a gente fica igual pinto no lixo escavando pérolas televisivas no YouTube, esse museu surpreendente do audiovisual planetário. Para mim, nem tudo acabou na Quarta-Feira: quero ser despertado dessa quaresma apocalíptica assistindo aos vídeos de carnavais antigos e procurando entender o nosso porvir através desses exercícios do rever.
Comentei com uma amiga que me visitava semanas atrás sobre a minha paixão pelas escolas de samba do Rio de Janeiro e mostrei a ela um desses pertences que acumulo no meu gabinete de curiosidades particular: o suplemento de carnaval do jornal O Globo de 5 de fevereiro de 1989, comprado pelo meu pai, que sempre batia cartão no jornaleiro local para garantir o periódico de domingo que seu filho tanto prezava em devorar.
Vídeo mostra a apuração ainda no Maracanãzinho
Neste caderno especial sobre a folia, havia uma tabelinha em branco com todos os quesitos do julgamento do desfile das escolas do Grupo Especial, um mimo para o leitor que acompanharia a apuração na Quarta-Feira de Cinzas, e teria onde anotar todas as notas. É claro que a tabelinha não está mais em branco: foi preenchida minuciosamente por mim, então com 12 anos e torcedor fanático da Beija-Flor. A escola de Nilópolis faria história naquele ano com o enredo Ratos e urubus, larguem a minha fantasia, desenvolvido por Joãosinho Trinta, mas que terminou em 2º lugar, derrotado pelo carnaval chapa-branca da Imperatriz Leopoldinense, que trouxe um enredo em homenagem ao centenário da República.
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O vídeo que escolhi para compartilhar neste primeiro texto de uma série especial sobre Memória do Carnaval na Revista Caju é um preâmbulo da apuração de 1989, quando o evento ainda acontecia no Maracanãzinho. Reúne uma equipe apaixonada por carnaval e que fazia uma cobertura exemplar para a finada TV Manchete, emissora que voltava ao front dos desfiles na Sapucaí após um ano fora da parada em função de uma rasteira que a TV Globo dera em 1988, quando assumiu o monopólio das transmissões de forma controversa.
Nessa joia da nossa televisão ao vivo, entre explicações didáticas sobre o regulamento da apuração, repórteres (todas mulheres) conversavam com as torcidas nas arquibancadas, com alguns carnavalescos, como o futuro campeão com a Imperatriz, Max Lopes, que desdenha da inovação no carnaval, defendendo a manutenção do imaginário colonial e os personagens da história oficial: “Enredo tem que ser histórico”, diz ele à repórter Martha Corrêa. “O tema da escola de samba deve ser histórico brasileiro ou homenagear um personagem da história do carnaval. A gente tá agora mudando muito, mas continuo na minha”.

O vídeo também reúne personagens emblemáticos do carnaval (como Piná, da Beija-Flor, que anunciou sua despedida como destaque da escola) e dos bastidores da festa (os tais “patronos”, os contraventores Anísio Abraão David, Carlinhos Maracanã, Miro Garcia e Luizinho Drummond; sem contar no polêmico presidente da LIESA, o ex-torturador da ditadura militar brasileira, Capitão Guimarães), além de figuras ilustres do samba, como o mestre Jamelão, intérprete da Mangueira. Ele tem a sua entrevista interrompida pelo âncora Paulo Stein no momento em que o carro-forte com as notas dos julgadores entra no ginásio, evento que ganha até mesmo um crédito na tela: “Carro-forte dos envelopes”.

A partir daí, a transmissão ganha uma brisa de Cidade Alerta: rola um frenesi maluco pra cobrir todo o aparato de segurança em torno da “chegada dos malotes”. Ao fim, o locutor Jorge Perlingeiro toma a palavra a fim de colocar ordem no pardieiro e dar início à sua icônica leitura das notas.
Vim a descobrir que o ex-prefeito Eduardo Paes assinou um decreto em 2015 considerando a expressão “Dez, Nota Dez”, inventada por Carlos Imperial, como um dos principais e mais tradicionais “monumentos linguísticos” do carnaval carioca, incluindo-a no chamado “Cadastro do modo de falar carioca”.
Atenção ao minuto 24:38, quando Jamelão dá uma fitada enigmática para a câmera. Ouro puro.
Autor
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Radialista, produtor cultural e pesquisador de música, teledramaturgia e carnaval carioca.
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