Chegar a Marfa não é fácil. A viagem de carro partindo de Houston atravessa centenas de quilômetros por uma estrada reta e plana, aparentemente sem fim. Ao olhar pela janela, tudo que se vê é uma paisagem enfadonha e monocromática estendendo-se até onde a vista alcança. À medida que a viagem avança, o simples ato de ver outras pessoas e veículos vai se tornando quase uma raridade. Em determinado momento você percebe que a última árvore que viu ficou para trás há horas. Nesse trajeto, a única motivação possível é o destino: uma cidade com menos de dois mil habitantes localizada no cruzamento do nada com o lugar nenhum, mas que atrai anualmente milhares de amantes da arte do mundo inteiro.
![Paisagem do oeste do Texas a caminho de Marfa. Foto: Ulisses Castro](https://i0.wp.com/revistacaju.com.br/wp-content/uploads/2020/07/01.jpg?resize=1299%2C867)
Foto de Ulisses Castro
Quando Donald Judd decidiu se estabelecer em Marfa no início dos anos 1970, ele buscava espaço e baixa densidade populacional, um lugar onde pudesse desenvolver seu trabalho com tranquilidade e constância. Vindo de uma Nova York turbulenta, cidade na qual ele havia se graduado em Filosofia e em História da Arte anos antes, Judd já tinha alcançado certo
![Donald Judd em seu ateliê em Marfa. Foto do "The Dallas Morning News"](https://i0.wp.com/revistacaju.com.br/wp-content/uploads/2020/09/DONALD-JUDD-213x300.jpg?resize=213%2C300)
respeito como artista e crítico de arte. Desde 1968, ocupava um prédio de cinco andares em Manhattan, utilizando-o simultaneamente como residência e ateliê de arte. Foi justamente ali que Judd começou a desenvolver a ideia de uma exposição permanente para sua obra, um lugar onde ele pudesse demonstrar como seu trabalho deveria ser exposto, com um caráter quase didático. Contudo, lidando com peças tridimensionais de escala considerável, ele sabia que precisaria de mais espaço para isso.
Em 1971, depois de diversas viagens de carro pelo Texas, Arizona e Novo México em busca do lugar ideal, Judd decide alugar uma casa em Marfa e começa a se estabelecer na cidade, ainda entre idas e vindas de Nova York. A mudança definitiva acontece em 1974, quando Judd compra antigas instalações militares desativadas no centro da cidade, composta por dois galpões e um prédio de escritórios. Os galpões foram convertidos em espaços multifuncionais, com biblioteca, área de exposição permanente, studio de arte e áreas de descanso. Já o prédio de escritórios foi transformado em residência, para onde Judd se muda com seus dois filhos. O conjunto passa a ser conhecido como The Block por ocupar um quarteirão inteiro e, assim como em Nova York, reúne moradia e trabalho em um mesmo lugar. Agora, no entanto, o artista havia superado o problema da falta de espaço.
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Ao longo dos anos 70 e 80, Donald Judd continua a comprar imóveis em Marfa. Em um antigo banco desativado na avenida principal da cidade, ele monta seu studio de arquitetura. Adquire também o prédio da frente, no qual estabelece o escritório de arquitetura. Na rua transversal ele compra uma antiga barbearia e a casa dos fundos, ampliando o espaço de exposição permanente, dessa vez dedicado às suas pinturas do início da carreira. Mais à frente, ele adquire um mercado desativado e o transforma em uma espécie de laboratório, onde armazena, cataloga e pesquisa todo tipo de material que possa ser usado em seu trabalho.
Instalações de Dan Flavin e John Chamberlain
Paralelamente, e em parceria com a Dia Art Foundation de Nova York, Judd compra outra instalação militar desativada nos arredores de Marfa e funda, em 1978, a Chinati Foundation. Ali, ele consegue ampliar sua exposição permanente e convida os amigos e artistas Dan Flavin e John Chamberlain para participarem do projeto. Judd ocupa os dois hangares com cem caixas de alumínio fundido, todas com as mesmas dimensões, porém com configurações internas únicas.
Na área externa, instala dezenas de caixas de concreto, também com dimensões idênticas, mas com aberturas e layout exclusivos. Já a obra de Dan Flavin ocupa os antigos dormitórios com planta em forma de U. O artista dialoga com a arquitetura dos seis prédios usando luz e cor através das lâmpadas fluorescentes tubulares, seu principal material de trabalho. Já para Chamberlain, foi cedido o espaço de uma antiga fábrica de lã no centro da cidade, onde instalou 22 esculturas.
![Dan Flavin, untitled (Marfa project), 1996. Na coleção permanente da Chinati Foundation, obra do artista dialoga com a arquitetura. Foto de Douglas Tuck. © 2020 Stephen Flavin / Artists Rights Society (ARS), Nova York.](https://i0.wp.com/revistacaju.com.br/wp-content/uploads/2020/09/DAN-FLAVIN-chinati-foundation.jpg?resize=448%2C672)
Posteriormente, Judd convida outros artistas para expor permanentemente na Chinati Foundation: Ingólfur Arnarsson, Roni Horn, Ilya Kabakov, Richard Long, Claes Oldenburg e Coosje van Bruggen. A convite da própria instituição, completam a coleção os trabalhos de Carl Andre (1995), John Wesley (2004) e Robert Irwin (2016).
Depois da morte de Donald Judd, em 1994, em decorrência de um câncer, seus filhos optaram por deixar intactos todos os espaços usados pelo artista para fins pessoais ou de trabalho – o ateliê de arquitetura, o laboratório de materiais, o The Block e a antiga barbearia. Fundaram então uma segunda instituição, a Judd Foundation, que é responsável por esses imóveis, todos eles abertos à visitação. Assim, Marfa ganhou um segundo ponto de interesse para a arte.
Em cada um desses lugares é possível perceber como o artista era meticuloso com relação ao espaço. A forma como os objetos pessoais e de trabalho são organizados sobre as mesas, ou como os móveis ocupam os ambientes, e até como os utensílios de cozinha são armazenados – tudo faz sentido, tudo é claro. Judd tinha uma maneira própria de ordenar e pensar o espaço. Ao visitar esses locais, torna-se evidente o motivo da preocupação do artista com relação às exposições permanentes com caráter didático: sua obra guarda uma relação ética com o espaço que a contém.
![Ballroom, uma das galerias estabelecidas em Marfa. Foto de Ulisses Castro.](https://i0.wp.com/revistacaju.com.br/wp-content/uploads/2020/07/03-1024x683.jpg?resize=1024%2C683)
Judd inaugurou o apelo artístico de Marfa. Sabendo aproveitar esse gatilho, a cidade acabou tornando-se um polo de arte contemporânea nos EUA. O lugar possui uma quantidade incrível de galerias. Uma delas é a Ballroom, que realiza exposições importantes e chega a influenciar o cenário da arte visual estadunidense. Foi lá que, entre novembro de 2019 e abril de 2020, a artista mineira Solange Pessoa apresentou sua impactante e comentada individual Longilonge. Um dos marcos da galeria foi o comissionamento da dupla Elmgreen & Dragset para o site-specific Prada Marfa (2005). Assim como a Ballroom, outras galerias realizam trabalho sério na cidade e merecem a visita.
!["Prada Marfa", 2005, obra permanente da dupla Elmgreen & Dragset. Foto: Ulisses Castro](https://i0.wp.com/revistacaju.com.br/wp-content/uploads/2020/07/06-1024x683.jpg?resize=1024%2C683)
É estranho estar em uma cidade tão pequena e isolada, mas com uma cena artística tão vibrante. A sensação é de que algo não se encaixa. E talvez seja justamente esse sentimento que faça de Marfa um lugar tão peculiar. Mas a visita precisa esperar. Apesar do isolamento geográfico poder sugerir algum tipo de segurança em relação à pandemia do Covid-19, as atrações de Marfa encontram-se fechadas por tempo indeterminado. Isso inclui a Chinati Foundation, a Judd Foundation e as diversas galerias de arte presentes na cidade. Muito embora o Condado de Presídio, região administrativa na qual Marfa se encontra, ainda não tenha registrado nenhum caso da doença segundo dados oficiais do governo estadunidense, a cidade se antecipou preventivamente. Marfa está mais isolada que nunca.
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