A positivação e apropriação daquilo que historicamente foi instrumento de dominação e subjugação têm sido utilizadas pelos chamados grupos identitários como estratégia de luta política. Talvez essa seja a grande questão de Torto arado (editora Todavia), de Itamar Vieira Junior: como se apropriar da terra, subverter sua condição de cativeiro e transformá-la em liberdade. Não há mais como ignorar o fato de que a cultura atravessa a política, impactando fundamentalmente o modo como o sensível, os espaços e o poder são partilhados e reconfigurados, para usarmos noções do filósofo Jacques Rancière. Torto arado age nesse sentido ao investigar a produção de memória e afeto a partir da terra, entremeando identidade e religiosidade em uma narrativa que não aparta o político do lírico, algo anunciado na passagem de Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, escolhida como epígrafe pelo autor (“A terra, o trigo, o pão, a mesa, a familia [a terra]; existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor trabalho, tempo”).

As três partes do livro são narradas por personagens cujas perspectivas sobre a terra são distintas. As irmãs Belonísia e Bibiana, mais suscetíveis e dependentes dos ciclos que alternam seca e abundância; e uma entidade do jarê que parece tudo ver, seja do alto de seus voos sobre a região onde se passa a narrativa, seja a alma de alguns, entre eles aqueles escolhidos para serem seus cavalos. Esse encontro, no qual material e espiritual agem um sobre o outro, desencadeia o drama que conduz a narrativa: a significação do território por meio da consciência de pertencimento e da identificação cultural – econômica, religiosa – com a terra.
Tal identificação emerge da sutura de memórias de sujeitos negros que se reconhecem, ao longo da narrativa, em torno de trajetórias e opressões em comum. Belonísia e Bibiana vivem na Fazenda Água Negra em regime de semiservidão, condição imposta aos seus antepassados que, uma vez libertos da escravidão, para lá migraram e continuaram presos às contingências de uma sociedade despreocupada com a justiça social e racial. Esse passado é materializado na presença insólita e trágica da faca da avó Donana, objeto misteriosamente envolto em um tecido manchado de sangue e guardado embaixo da cama da dona. Esse objeto é uma encruzilhada, ao mesmo tempo passado e futuro: tanto evoca memórias, desejos e injustiças associadas às condições raciais e de gênero da avó; como também traça o porvir das irmãs, constituído por relações solidárias, eventualmente perturbadas por desentendimentos relacionados à comunicação.
Lavoura de Raduan, sertão de Rosa
O vínculo dos personagens com a terra é paradoxal, uma vez que essa significa, ao mesmo tempo, o sustento e a fome, a abundância e a escassez, a liberdade e a clausura. Tal ambiguidade remete ao sertão canonizado por Guimarães Rosa, aquela fronteira que ao mesmo tempo é salvação e danação, atrai e repele, é homem e mulher. Em certos aspectos, Itamar dialoga com os topoi que inventaram determinado Nordeste por meio do chamado “romance de 30” e do nosso cinema. O suor descrito escorrendo pelos rostos e braços daqueles que trabalham cultivando a terra sob o sol evocam os planos fechados empregados pelo Cinema Novo, particularmente por Ruy Guerra em Os fuzis (1964). O respeito ao tempo é percebido no modo como a morte natural, assim como a lavoura interrompida ciclicamente pela estiagem e pela seca, são experimentadas, com silêncio e resignação:
“As mulheres mais próximas chegavam à cozinha, perguntavam se comadre Salu precisava de ajuda. Deixavam por ali um pacote de café pilado, outro de açúcar, as garrafas térmicas de suas casas, e levavam a bebida para servir na sala. Quanto mais a hora passava, chegava gente de cada vez mais longe. Vinham de automóvel, de cavalo, de carro de boi, a grande maioria a pé, com suas sombrinhas para se proteger do sol. ‘Esse sol ainda me come o juízo’, bradou dona Miúda enquanto entrava em nossa casa. ‘Bença, minha comadre, que Deus lhe conforte.’.”.

Cinema Novo e “romance de 30” próximos de uma história em que o tempo da morte é tão natural quanto o da seca e o da colheita
A religiosidade também é responsável pelo estreitamente dos laços afetivos com a terra. Zeca Chapéu Grande, pai das irmãs protagonistas, cavalo de Santa Bárbara-Iansã, comanda celebrações de jarê, religião de matriz africana e indígena característica da Chapada Diamantina, o que lhe fez ser reconhecido pela comunidade como uma espécie de líder espiritual. Tal liderança parece ser mais significativa do que aquela dos proprietários, quase anônimos, da Fazenda, os quais possuem a propriedade mas não a posse da terra.
A consciência dessa distinção entre propriedade e posse e o modo como são mobilizados memória e identidade pelos personagens consiste em um ponto de inflexão no livro, que o distancia dos topoi característicos do “romance de 30”. Não há silêncio e resignação diante da injustiça e da violência. Em Torto arado, a relação com a terra adquire outras conotações, nuances e ambiguidades. A dimensão social e coletiva é remodelada pelas singularidades, dramas, memórias e desejos de cada personagem, que passam a se perceber em perspectiva, enquanto atores da epopeia brasileira nutrida pela desigualdade e pelo racismo.
Severo, primo distante com quem Bibiana se casa, se engaja em atividades que visam a conscientização dos trabalhadores da Fazenda sobre seus direitos – à terra e trabalhistas – e tenta mobilizá-los e organizá-los sindicalmente. Expressões e valores tidos como positivos, como o perfil desejado para os moradores de Água Negra, gente que “não tenha medo de trabalho” – ideal semelhante ao neoliberal que motiva a uberização em nossos dias –, são desnudados pelos personagens, que passam a percebê-los enquanto retóricas de dominação. Presos a uma fatigante rotina de domingo a domingo, obrigados a darem parte de sua colheita ao dono da Fazenda, não possuem nenhuma contrapartida – sequer têm o direito de construir moradias permanentes de alvenaria –, a não ser a “bondade” paternalista do proprietário que permitiu o assentamento em suas terras.
A indagação de Zezé, irmão mais novo das protagonistas, soa como o de uma geração que, após ser sacudida pelas provocações de Severo, consegue interrogar sua própria condição: “Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto [proprietária das terras], que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão.”. A ação de Severo e o autorreconhecimento dos personagens enquanto negros e quilombolas transforma a relação com a terra e com o território.
Livro afinado com atual sequestro da memória

Torto arado pode ser compreendido como uma crítica à perspectiva filosófica ocidental que concebe a política na diferença entre, de um lado, o mugido e o barulho e, do outro, a palavra e a fala. Essa concepção logocêntrica é questionada por Itamar ao propor que a política pode se dar na ausência de uma língua que articule palavras de modo padrão. Ela também pode ser operada pelos silêncios, pelos gestos e pelos afetos, seja na cumplicidade entre mulheres vítimas de violência, nos mistérios da religião, ou na solidariedade entre pessoas que se reconhecem em torno de uma identidade historicamente subalternizada. Trata-se de um grande desafio literário, tratar de pautas políticas fundamentais, lidar com expectativas sobre representação e manter a opacidade e liberdade da imaginação artística
Finalmente, o romance de Itamar soa como um microssomo do país ao nos alertar sobre as recentes tentativas de sequestro de nossa história, do nosso vínculo com a terra e dos nossos direitos. Memória, identidade e História são cruciais, não para idealizarmos e desejarmos um retorno ao passado, mas para pensarmos sobre o presente e questionarmos discursos hegemônicos que insistem em nos inventar a partir de um patriotismo reacionário e autoritário, de perspectiva unicamente branca e judaico-cristã. Itamar sugere que a terra pode ser muitos, pode ser nós. Seria então a liberdade.
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IMAGEM EM DESTAQUE NO CABEÇALHO:
Foto de Giovanni Marronzini.
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Torto arado, de Itamar Vieira Junior. Editora Todavia, 264 págs. R$44.
Autor
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Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.
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Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.