Em memória de Paulinho Albuquerque
O disco de Wilson das Neves, Pra gente fazer mais um samba, já estava praticamente pronto, sambas e canções autorais do baterista que ajudou a inventar o samba em seu instrumento de origem americana, e a fixar uma forma brasileira de se tocar, executados basicamente por trio de samba jazz: piano, baixo e bateria. Faltava somente Claudio Jorge gravar os violões “de centro” – violões que muitas das vezes devem ser discretos, até mais para orientar o cantor do que para conduzir o ouvinte. Nos até hoje impressionantes discos do Tamba Trio dos anos 1960, Durval Ferreira – um violonista de centro que está para bossa nova como Cláudio Jorge para o samba “de raiz” – gravava sempre um violão de base para ajudar a orientar o trio Luiz Eça, Bebeto Castilho e Helcio Milito (às vezes substituído por Ohana) nos louquíssimos e dificílimos arranjos de Eça, e muitas vezes o ouvinte nem nota a presença do violão, escondido na mixagem, às vezes mesmo na gravação, sem canal ou microfone exclusivo disponível para ele. E é considerado normal que assim seja, mesmo com o deslumbramento que era o violão de Durval – assim como Cláudio Jorge, também um tremendo compositor, arranjador, produtor.
Pois Cláudio Jorge chegou ao estúdio, gravou direto os violões em quase todas as 13 faixas do álbum de Das Neves e, ao fazer isso, criou aquele bom problema para os produtores: a força daquele violão naqueles sambas obrigou-os a “abrir” o disco, redesenhar a mixagem e de certa maneira até o próprio conceito da obra, que de um disco de samba de piano, baixo e bateria, tornou-se um disco de samba de violão, piano, baixo e bateria, muitas vezes nesta ordem, o violão à frente da seção rítmica.
Essa historinha acontecida em 2010 revela o impacto que o violão de Cláudio Jorge causa entre os músicos e nos bastidores do meio musical brasileiro. Talvez também esteja aí uma das possíveis origens inconscientes de Samba jazz de raiz – Cláudio Jorge 70, o álbum que comemora os 70 anos do músico e que acaba de ganhar o Grammy de melhor disco de samba de 2020, consagrando-o definitivamente como artista: cantor, instrumentista (de violão e guitarra elétrica), compositor (de melodia e letra), arranjador, produtor e, em última instância, pensador da coisa estética – o próprio título, Samba jazz de raiz, a provocadora união conceitual de dois subgêneros do samba aparentemente antagônicos, o samba jazz aparentemente americanizado dos anos 60 e o samba de raiz aparentemente “autêntico”, popularizado a partir dos anos 1980 diante de uma possível descaracterização provocada pelo sucesso do pagode e suas contrafações, encerra em si toda uma reflexão sobre o próprio gênero.

Tal provocação estética fica ainda mais instigante ao se saber que a raiz da música de Cláudio Jorge seja justamente o samba jazz. Criado no subúrbio carioca do Cachambi, não distante do Méier e da Tijuca dos grandes bailes dançantes em clubes como Mackenzie (onde começou a tocar), América e Tijuca Tênis Clube, ele foi embalado pelo som dos músicos de samba jazz que acompanhavam a bossa nova e a moderna canção brasileira, faziam seus discos instrumentais e ganhavam um trocado nas festas vespertinas em clubes e nas noites das boates: gente como o saxofonista e arranjador J.T. Meirelles (também arranjador do primeiro Jorge Ben), o baixista Luizão Maia (da Brazuca de Antônio Adolfo e do conjunto mítico de Elis Regina), o pianista e band leader (da Abolição) Dom Salvador, os bateristas Edison Machado e Wilson das Neves, todos devidamente citados na música que dá título ao disco, Samba jazz de raiz, novo gênero definido talvez num verso: “o groove lá do jazz que o samba arredondou”, samba com procedimentos do jazz (ou vice- versa), ou de forma mais sutil: “Se liga nesse toque, o rótulo proclama/É linguagem africana, assim a história diz”.
Acontece que essa “raiz” no samba jazz teve que aos poucos ser quase abandonada justamente pelas demandas do mercado brasileiro. Ao perceber seu talento extraordinário para a execução do violão de centro, e especialmente pela excelência de sua mão direita nos ritmos brasileiros, sobretudo o samba, o mercado foi fazendo com que Cláudio Jorge pendurasse a guitarra elétrica e fosse se tornando o mais requisitado violonista de samba “de raiz” em estúdios e palcos do Brasil e do mundo. O violão e o samba tornaram-se seu ganha-pão.
A “raiz” do samba jazz, no entanto, nunca deixou de se pronunciar, já mesmo em seu estilo suingadíssimo e único de tocar samba de raiz, na riqueza de suas harmonias, na diversidade de sua música autoral, no ecletismo de seu estilo. O samba jazz, mesmo talvez em segundo plano, nunca deixou de estar lá em seus quase 50 anos de carreira profissional: na banda que acompanhava João Nogueira no início dos anos 1970, na qual começou tocando contrabaixo elétrico, já que o violonista era Guinga, e mesmo depois como violonista desse conjunto que revolucionou o samba “de raiz” ao incorporar baixo e bateria jazzísticos na cozinha rítmica, a adotar introduções e arranjos que muitas vezes lembravam os tais bailes de clube; nos discos e excursões que o levariam a todo o sertão, a Europa e Japão no grupo que acompanhava Sivuca, a música brasileira e nordestina tocada como jazz brasileiro; na pouco citada big band de música afro-brasileira Batacotô, com Teo Lima na bateria e Martnália no vocais; no seu primeiro disco como artista, de 1980 na Odeon, um disco de MPB (pela diversidade rítmica, além do samba), quase pop, no qual tocou mais guitarra que violão; em faixas de seu trabalho como compositor, entre tantos sambas às vezes aparecia um samba jazz, como o instrumental Samba para o Luizão Maia, com direitos a vocalizes de Leny Andrade no álbum Coisa de chefe, quase todo ele luxuosamente dedicado à sua produção “de raiz”. Na maior parte do tempo, no entanto, o samba é que era o prazer. E pagava as contas.
O samba jazz da raiz foi, no entanto, emergindo aos poucos. Como no disco de seu parceiro Wilson das Neves, citado no início deste texto. E na volta à guitarra elétrica, ao perceber que nas imensas excursões que faz com o conjunto de Martinho da Vila – do qual é violonista há mais de 20 anos – era mais fácil sonorizar em palcos às vezes precários a guitarra plugada do que o violão acústico, mesmo para tocar samba “de raiz”. A natural revisão de vida e carreira provocada por idades redondas como os 70 anos completaram o desejo de voltar à estética de sua juventude.

Samba jazz de raiz é o quarto disco solo de Cláudio Jorge. Além daquele primeiro disco “de MPB” e do Coisa de chefe (de 2000, também indicado ao Grammy naquele ano), uma homenagem ao samba considerado no meio como uma obra-prima, ele faria ainda Amigo de fé (2010), no qual incorpora de forma explícita a influência musical (e religiosa) do candomblé. Ao lado de outros artistas, faria discos importantíssimos, como Matrizes, com seu parceiro Luiz Carlos da Vila, uma viagem pelas origens da música negra brasileira; Ismael Silva: uma escola de samba, com o cantor Augusto Martins, que atualiza a obra de Ismael (a quem, aliás, acompanhou como violonista) para a linguagem do samba contemporâneo, e num duo virtuosístico com Carlinhos 7 Cordas acompanhou a cantora Dorina no CD O violão e o samba, um tratado sobre acompanhamento de violão de seis e de sete cordas.
Toda essa trajetória foi pontuada por outras não menos importantes linhas de trabalho de Cláudio Jorge e nas quais se percebe a centelha para o samba jazz de raiz. A própria parceria com Nei Lopes, por exemplo, central em seu trabalho de compositor, tem lá seu pezinho no baile: em músicas dançantes como Tia Eulália na xiba, na pesquisa de ritmos caribenhos como em Afrolatinô, nas harmonias tortas de Recordando seu Libório, em todo um musical que fizeram juntos para o teatro, Oh que delícia de negras, em cada detalhezinho sofisticado em música e letra de suas composições, mesmo em gêneros mais simples do samba como o partido alto – que desemboca no sofisticado desenho rítmico e harmônico presente na suingada Denise, um samba jazz de raiz aí típico, lançada no novo disco mas guardada por anos no baú, a espera do momento (e da maturidade estética) certo de ser gravada.
Como compositor, Cláudio Jorge foi mais gravado por cantores que de certa forma ressaltavam esse lado samba jazz, como os nossos maiores crooners, Emílio Santiago (sobretudo na sofisticada Sapato na janela) e Alcione. E também Jorge Aragão, ele próprio um sambista nascido nos bailes – basta ouvir o samba canção Fogo e mágoa e imaginá-lo embalado casais.
Mas é talvez como produtor de discos de samba que essa característica mais fique evidente. Discos de samba geralmente são “cheios”: muita percussão, muita orquestra, muito vocal. A tendência de Cláudio Jorge é no entanto o minimalismo, a valorização dos instrumentos, da harmonia para que melodia e letra estejam em primeiro plano. Mauro Diniz, outro elegante compositor, produtor e instrumentista de samba, originário da Portela, considera A luz do vencedor, o disco produzido por Cláudio Jorge com Luiz Carlos da Vila cantando a obra de Candeia, como um dos maiores discos da história do samba sob o ponto de vista da produção e da instrumentação. O disco autoral do mesmo Luiz Carlos da Vila, Benza, Deus, é outro clássico dessa linhagem digamos minimalista, de valorização da canção, proto-samba jazz de raiz – a introdução da faixa Pra conquistar teu coração, de Luiz Carlos e Wanderley Monteiro, com o cavaquinho fazendo desenhos melódicos inusitados, é um bom exemplo do que estamos tentando falar aqui, tanto que a originalidade desse arranjo fez com que ele fosse incorporado à própria música, e mesmo nas regravações em discos de samba “cheios”, como a de Beth Carvalho, a sutileza original foi mantida.
Mas a criação do conceito samba jazz de raiz talvez se deva ainda mais à longa parceria de Cláudio Jorge com Paulinho Albuquerque, seu sócio na gravadora Carioca Discos (especializada como no nome diz na música do Rio, sobretudo samba), produtor de discos de Guinga, Ivan Lins, Simone, Nei Lopes, Fátima Guedes entre tantos outros artistas, e curador desde o início do Free Jazz Festival: especialista em samba e jazz, pois. Foi no bom gosto de Paulinho produzindo samba – inclusive os seus Coisa de chefe e Amigo de fé – que Cláudio Jorge vislumbrou muito do tal conceito “samba jazz de raiz”, a gravação “ortodoxa” do samba, sem descaracterização do ritmo ou mesmo do gênero, mas uma liberdade maior para os instrumentistas e arranjadores, espaço para improvisos e solos. São muitos os exemplos de samba jazz de raiz avant la lettre nos discos de samba produzidos pelo Paulinho, mas pego como exemplo a gravação do cantor ortodoxo de samba Dunga de um partido alto de Nei Lopes, Mulher de paletó, todo conduzido por trio de piano, baixo e bateria, e grandes invenções rítmicas e harmônicas, no CD Sedução, em 1999. Ou, desta vez com a presença do próprio Cláudio Jorge, no CD Baiana da gema (2004), no qual Simone canta Ivan Lins e que a faixa-título é toda conduzida pelo trançado dos violões de Cláudio Jorge (de 6) e de Carlinhos 7 Cordas, cheios de suingue, consistência harmônica, espaços de improviso, já o groove lá do jazz arredondado pelo samba.
Foi depois de toda essa trajetória que, entre outros trabalhos, Cláudio Jorge começou a cozinhar em fogo baixo – demorou seis anos – este Samba jazz de raiz. Levado por power trio de samba jazz liderado por seu violão e sua guitarra, contrabaixo ora acústico (ou de pau) de Zé Luiz Maia, ora elétrico de Ivan Machado, e pelas baterias ora de Camilo Mariano e do próprio Wilson das Neves. Para ressaltar, e não negar, o aspecto jazzístico, pouquíssimos outros instrumentistas participaram das gravações, como os guitarristas Leonardo Amuedo (de jazz) e Roberto Frejat (de rock), os pianistas de pegada jazzística Itamar Assiere e Fernando Merlino, além de Ivan Lins num raro momento em que se permitiu solar e improvisar, e os percussionistas Marcelinho Moreira e Peninha. Por trás disso tudo, as composições de Cláudio Jorge e parceiros e seu violão consistente dão uma nova roupagem ao samba, originalíssima, sutil, mas sem descaracterização. A ponto de num momento alto do disco, a faixa Doce realidade, uma parceria com Wilson Moreira sobre a Escola de Samba Portela, a letra falar em “O som dos tambores abria pra mim/Portas, janelas de um mundo sem fim” e o que se ouve é o som do piano fazendo o chão da canção. Piano, é bom não esquecer, não deixa de ser instrumento batucado.

Samba Jazz de Raiz, o disco
Basta ouvir Samba jazz de raiz, a faixa que abre o quarto álbum exclusivamente autoral de Cláudio Jorge para entender tudo. A letra já seria em si uma apresentação do disco: “Vou pedir passagem para explicar meu samba/É tipo samba jazz mas ele tem raiz/Se liga nesse toque, o rótulo proclama/É linguagem africana, assim a história diz”. A letra explica a forma: “Vem com baixo de pau, mas suingue de bamba/É pura malandragem que me faz feliz/O samba é bom de se tocar, bom de improvisar…”. E o contexto histórico, além dos personagens: “Mas quando o samba encontra o jazz/Alguma coisa se refaz/Dá pra perceber no som/Tá lá no que tocou o J.T. Meirelles, no baixo do Luizão e no Dom Salvador/No Edison Machado, no Wilson das Neves/O groove lá do jazz que o samba arredondou”.
Está lá, trata-se de um disco autoral, de canções, mas inspirado no universo dos conjuntos instrumentais dos anos 1960, originários de bailes, estúdios e gafieiras, que misturavam samba e procedimentos do jazz, com possíveis arranjos e saxofones do Meirelles, o baixo do Luizão Maia, o piano e o conjunto do Dom Salvador, Edison Machado ou Wilson das Neves na bateria.
Mas, antes de tudo, “dá pra perceber no som”, na forma com que Cláudio Jorge apresenta sua composição metalinguística tanto na letra como no arranjo: um power trio de (samba) jazz formado por seu violão, o melhor violão do samba, seguro, suingado, elegante, “de baile” na mão direita mas cheio de invenções harmônicas na esquerda; o contrabaixo acústico (“de pau”) de Zé Luiz Maia, filho e herdeiro em estilo e suingue do citado Luizão Maia, e bateria do próprio Wilson das Neves, o lendário baterista do samba (e do samba jazz original), em uma das suas últimas gravações no instrumento que ajudou a abrasileirar. E, noblesse oblige, fiel a si mesmo e ao estilo que evoca e atualiza, Cláudio Jorge ainda apresenta logo na faixa de abertura um elegante e preciso solo de guitarra, comprovando mesmo que “o samba é bom de se tocar, bom de improvisar”.
Pronto. Está feita a apresentação, em forma de música, de Samba jazz de raiz, o disco de Cláudio Jorge, talvez seu trabalho mais rigorosamente conceitual, sem, contudo, perder jamais a delicadeza e a individualidade de cada canção, aliás, um lote de 13 canções inéditas e duas regravações.
Se no primeiro LP, lançado pelo Odeon em 1980, o jovem violonista flertava com o ecletismo da MPB então vigente que ia de uma nítida influência do Clube da Esquina (Dia da criação, por exemplo) a um samba de sucesso em parceria com João Nogueira (Pimenta no vatapá) e uma valsa (sim, uma valsa!) com Cartola (Fundo de quintal), na obra-prima Coisa de chefe (Carioca Discos, 2001) o já consagrado compositor apresenta um tratado sobre o samba, inclusive o samba jazz (no tema instrumental Samba pro Luizão Maia). E em Amigo de fé (Carioca Discos, 2010), disco sereno de sua maturidade artística, aborda a influência do candomblé, sua religião, no samba e na música brasileira em geral.
Em Samba jazz de raiz, e por favor com jogo de palavras, Cláudio Jorge radicaliza, vai mesmo à raiz do subgênero esquecido e muitas vezes mal compreendido – o próprio Vinicius de Moraes, sempre tão atento, dessa vez classificou-o como um “híbrido espúrio, nem samba nem jazz” – e à raiz da sua própria formação musical. Nascido no subúrbio carioca nos melhores dias, criado no Cachambi tão perto daquele Méier epicentro dos bailes de clubes nos anos 1950, 1960 e 1970, Cláudio Jorge foi embalado pelos conjuntos dançantes daquela época, justamente na fase em que aprendeu sozinho o instrumento no qual hoje é um mestre. Não por acaso, debutou no conjunto de seu futuro parceiro João Nogueira, também do Méier, que no início da década de 1970 inovou ao incluir baixo e bateria no acompanhamento do samba, herança direta dos bailes e do samba jazz na raiz. Sua relação com o samba jazz é assim tão íntima, que Claudio Jorge escolheu esse tipo de som e esse conceito para o disco que também comemora os seus 70 anos de idade.
Hoje, consagrado como cantor, compositor e violonista (do conjunto de Martinho da Vila e das gravações de samba que se prezem), e em sua carreira com passagens pelos conjuntos de Sivuca, de Luizão Maia e do Batacotô é possível ver no estilo de Cláudio Jorge traços inconfundíveis de samba jazz. Em Samba jazz de raiz isso fica evidente em cada detalhe. Como no naipe de saxofones que introduz e o sax barítono que pontua e sola na alucinante levada de Denise, samba sincopado de gafieira da irresistível dupla Cláudio Jorge & Nei Lopes, tudo a cargo do saxofonista e maestro Humberto Araújo, ele próprio um cultor do samba jazz contemporâneo à frente de sua Orquestra Criola.
E, a perceber em todas as outras participações do disco, Cláudio Jorge parece fazer uma espécie de seleção de músicos da atualidade que dialogam com o velho gênero, gente como o guitarrista uruguaio Leonardo Amuedo (solo em Vila Isabel), que foi anos da banda de Ivan Lins e hoje não por acaso está radicado nos Estados Unidos dedicado ao jazz, ou os pianistas Fernando Merlino (em Doce realidade), Itamar Assiére (em Vai ser bom ser sempre assim), velho companheiro do Batacotô e do grupo de Luizão Maia, ou o parceiro Ivan Lins num raro solo de piano em Você pra mim, eu sou pra você. Mesmo a participação de Kiko Horta no acordeom em Paixões imortais vai na linha dos contrapontos de inspiração jazzística de um Sivuca ou mesmo Dominguinhos.
Essa discreta sofisticação musical nos detalhes, em certo sentido também irmanados com o jazz, pode ser observada na participação de um Mauro Diniz cantando em Doce realidade, uma parceria com Wilson Moreira. É como se Cláudio Jorge sublinhasse a qualidade extraordinária da melodia de Wilson Moreira e a elegância vocal de Mauro Diniz (dono de um cavaquinho virtuose, além de notável e moderno arranjador e produtor), dois sambistas de origem popular, do universo das escolas de samba e de um nível musical geralmente não associado a essa origem.
Como que ampliando o conceito samba jazz, Cláudio Jorge mostra que na verdade se trata do diálogo do samba com outros gêneros musicais que vão cruzando seu caminho. Assim é a participação do roqueiro Roberto Frejat, guitarra e voz, no baião pop Central do Brasil, segunda regravação do disco, do primeiro LP de 1980, canção feita com seu primeiro parceiro, Ivan Wrigg.
Neste mesmo sentido do intercâmbio de linguagens, a cantora e compositora por excelência da MPB Fatima Guedes faz participação vocal em Você pra mim, eu sou pra você a faixa que encerra o disco como uma homenagem a um grande amigo de Cláudio Jorge, o falecido Paulinho Albuquerque, não somente produtor de Coisa de chefe e Amigo de fé e dos melhores discos do parceiro Ivan Lins e da própria Fatima Guedes, como uma das pessoas que mais o informou sobre jazz, cultor que era desse universo musical, um dos curadores do famoso Free Jazz Festival.
Ao revisitar sua carreira e o diálogo de sua música com linguagens variadas, Cláudio Jorge não poderia deixar de fora a sua experiência religiosa, na macumba-jazz Com a fé que Deus me deu, com a participação de músicos profissionais excepcionais como Luís Filipe de Lima (violão de sete cordas), Dirceu Leite (clarinete), Victor Neto (flauta), Walter d’Ávila (guitarra) mas também, nos atabaques, um pai de santo, Cacau d’Ávila.
Os gêneros dançantes latinos, do bolero ao cha-cha-chá, que tanto influenciaram o jazz e a moderna música brasileira, estão presentes no beguine O peso de um não, que conta com outra participação importante, o percussionista Peninha no bongô, ele assim como Frejat da banda de rock Barão Vermelho, numa de suas últimas gravações antes da morte precoce.
Mas na verdade, um disco de samba jazz de raiz não seria nada sem a cozinha que faz a cama para o violão de Cláudio Jorge suingar como nunca: Camilo Mariano na bateria emulando o jeito de Das Neves e Edison Machado, aquela pegada leve porém firme, precisa, e revezando-se nos baixos acústico e elétrico, Zé Luiz Maia e Ivan Machado, seu colega no conjunto de Martinho da Vila, ex-Batacotô, igualmente uma lenda do suingue carioca em seu instrumento.
E menos ainda sem a qualidade das canções, parcerias antigas como Vila Isabel, com o falecido Manduka e lançada apenas num velho compacto; a primeira com Paulo César Pinheiro (a valsa Paixões imortais) até parcerias recentes como a com Wanderson Martins, mestre do cavaquinho da banda de Martinho da Vila, autor da melodia da sofisticada canção Vai ser bom ser sempre assim e, no mais improvável dos diálogos, o “roqueiro” pernambucano Lula Queiroga, autor da letra do samba clássico Maneira de dizer.
Quando autor de letra e música, caso por exemplo de Coração lan house, Cláudio Jorge busca, como na estrutura musical, um novo vocabulário para o samba em eras virtuais.
Mas a canção que talvez melhor simbolize o disco Samba jazz de raiz seja Curiosidades, uma parceria com o próprio Wilson das Neves, o imenso baterista do samba jazz que se transformou, ele próprio, num tremendo cantor e principalmente compositor. (Aqui cabe um parêntese, em grande parte da sua vida de compositor, foi a Cláudio Jorge que Das Neves recorria para harmonizar as melodias que criava, transformando-o num ouvinte privilegiado de suas composições, resultando daí várias parcerias dos dois).
Como na música-título, Curiosidades tem Wilson das Neves na bateria, Zé Luiz Maia (e o espírito de Luizão) no baixo acústico, e Cláudio Jorge segurando o suingue no violão e o solo na guitarra. E um recado do Das Neves para a posteridade num áudio vazado lá no finalzinho: “Vamos ouvir, né?”. Puro samba jazz. De raiz.
Autor
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Hugo Sukman é jornalista, escritor, roteirista e crítico de música. É o curador da nova sede do Museu da Imagem e do Som e autor de livros sobre música popular, como "Martinho da Vila - Discobiografia e “Histórias paralelas - 50 anos de música brasileira”, além de peças de teatro sobre a obra de Vinícius de Moraes, Sidney Miller e Nara Leão
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Hugo Sukman é jornalista, escritor, roteirista e crítico de música. É o curador da nova sede do Museu da Imagem e do Som e autor de livros sobre música popular, como "Martinho da Vila - Discobiografia e “Histórias paralelas - 50 anos de música brasileira”, além de peças de teatro sobre a obra de Vinícius de Moraes, Sidney Miller e Nara Leão