Clarice Lispector, que completaria 100 anos neste 10 de dezembro, foi missivista durante toda a vida. Reunidas em caprichado volume pela editora Rocco, suas cartas vão da literatura a temas comezinhos — e reverberam no Brasil de hoje
Antonio Callado dizia que Clarice Lispector — ela que completaria 100 anos neste 10 de dezembro — era, em essência, uma estrangeira. Não por ter nascido na Ucrânia, ou não apenas por isso. “Clarice era estrangeira na terra. Dava impressão de andar no mundo como quem desembarca de noitinha numa cidade desconhecida onde há uma greve geral de transportes. Mesmo quando estava contente ela própria, numa reunião qualquer, havia sempre, nela, um afastamento”, afirmou o colega escritor.
Ao me debruçar sobre a correspondência da autora, reunida pela Rocco em caprichado volume, as frases de Callado ressoam. As quase 300 cartas foram organizadas por décadas — dos anos 1940 a 1970 — e contam com notas da biógrafa Teresa Montero, que contextualizam, no tempo e no espaço, citações a personalidades e referências culturais. Com extenso material inédito, o livro resulta de longa pesquisa realizada pela jornalista Larissa Vaz, sob orientação de biógrafos e da família.

A escritora que se descortina nas correspondências não se resume à fiandeira dos densos territórios da alma, à hábil investigadora das zonas abstratas da sensibilidade. Para além de enigmas metafísicos, a Clarice missivista se aproxima das idiossincrasias do cotidiano. Nas cartas, ela trata de temas comezinhos, como a pintura de uma geladeira ou o dinheiro escasso.
E, claro, de literatura. O processo de criação e as inseguranças diante da crítica ocupam boa parte diálogo postal com alguns de seus pares, como Lúcio Cardoso, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga e Fernando Sabino. É uma riquíssima troca de impressões de leitura.
Sabino, por exemplo, elogia em determinada passagem a maturidade da amiga: “Você está escrevendo bem, com calma, estilo seguro, sem precipitação. Talvez porque agora já não esteja sofrendo muito; o que é preciso é sofrer “bem”, com discernimento, com classe, com serenidade de quem já é iniciado em sofrimento. Não para tirar dele uma compensação, mas um reflexo”.

Em outro momento, Clarice defende o título do romance O lustre ante reparo feito por Lúcio Cardoso, que argumentara: “Acho meio mansfieldiano e um tanto pobre para uma pessoa rica como você”. A reposta traz, mais que a refutação, uma espécie de modus operandi da escritora. “Nunca convenci você mesmo de que eu sou pobre; infelizmente, quanto mais pobre, com mais enfeites me enfeito”, conta ela.
Mas as assertivas podem ganhar novos sentidos quando situados em outra conjuntura. Talvez por isso, o diálogo entre Clarice e sua comadre, Maria Bonomi, tenha me chamado tanto a atenção em meio às centenas de cartas que compõem o livro. “A gente começa a viver de tal maneira que as palavras se tornam precárias para a vida. Para falar do que se está vivendo”, comenta Clarice.
Peguei emprestado. Diante da truculência e do barbarismo que têm dominado o país nos últimos tempos, o sentimento é mesmo de escassez.
Autor
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Escritor e jornalista. Autor, entre outros, dos livros "A lua na caixa d'água" (Malê), na"Rua de dentro" (Record), "Ferrugem" (Record), "Na dobra do dia" (Rocco), "A palavra ausente" (Rocco) e "Somos todos iguais nesta noite" (Rocco). Organizador de coletâneas como "O meu lugar" (com Luiz Antonio Simas, Mórula) e "Canções do Rio" (Casa da Palavra).
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