Pesquisando a retomada de museus e exposições na baixa da onda de Covid na Europa, me deparei com uma exposição que me chamou a atenção. O Van Gogh Museum de Amsterdam criou uma “experiência” da trajetória de vida do pintor por através de uma exposição interativa na capital lusitana: o Meet Van Gogh Lisbon (veja o site clicando aqui).
Imaginei que fosse uma daquelas exposições cheias de projeção e cenografia, mas que produz uma experiência educativa para os menos inseridos na arte e sua historia. Na verdade, o nome da exposição não me chamou a atenção de imediato, e sim os quadros da exposição.

Foi construído um pavilhão de lona todo amarelo com autorretratos do pintor bem à beira do Rio Tejo, na altura de Belém (entre o MAAT e a Coleção Berardo). É realmente chamativo. Todos que passavam pela marginal viam este pavilhão. E, lá, o percurso resfriado pelo ar-condicionado era acompanhado de marcações no chão para distanciamento social e um áudio-guia que mudava a partir de um sensor de presença. A exposição era composta por muitos vídeos e os relatos nos áudio-guias eram leituras das cartas entre os irmãos Vincent e Theo. A equipe cinematográfica recriou uma situação de café parisiense do século XIX, mesas de desenho do artista; uma encenação entre a briga de Van Gogh e seu então hóspede Gauguin e até uma obra de mapeamento corporal, que possibilitava ver pinceladas ao estilo do pintor a partir de movimentos do corpo. Até então, tudo era como eu imaginava – uma exposição cenográfica com muita tecnologia e com material didático, voltada para um público amplo.
As pinturas realmente não eram o foco da exposição, e sim a história do artista. Mas os organizadores expuseram uma obra de cada período, inclusive uma do icônico motivo de girassol. Não foi o fato de ter suas obras-primas que me chamou a atenção, mas quando notei a foto da legenda tudo mudou:
“Reprodução 3D do quadro de Vincent van Gogh Girassoís (1889)
Certificada, edição limitada de 260 peças
Tamanho: 95 x 73 cm
Original: óleo sobre tela
As Edições museu Van Gogh tornam a obra de Vincent van Gogh ainda mais acessível. As obras-primas do pintor foram agora reproduzidas por meio da técnica 3D única (Revelografia).
As pinceladas grossas em impasto recorrentes em Van Gogh podem ser literalmente sentidas, criando uma dimensão completamente nova.
A coleção oferece àqueles que admiram Vincent van Gogh, a oportunidade única de sentirem, de perto o mundo do pintor, de partilharem e desfrutarem da sua genialidade e de se envolverem activamente no legado deste artista sempre fascinante.
Um contributo relevante e exclusivo para o legado de Vincent van Gogh.”
Não entendi como seria possível, mas em paralelo pensei que isso já não deveria me chocar desde que a impressão 3D foi inventada. Entrei no site do Museu Van Gogh para esclarecer todas as minhas dúvidas. Como de fato é o processo? Como é produzida a cor em impressão 3D para igualar a original? Qual é a diferença da tinta óleo do quadro original e a impressão? A moldura também é impressa em 3D? Seria o preço realmente acessível? Será que agora eu finalmente posso ter um Van Gogh? Será que eu quero um Van Gogh impresso e não feito em suas mãos? E a pergunta que sempre chegamos a perguntar, o que isso quer dizer para a arte?

Matriz em relevo das pinceladas é base para réplicas minuciosas
Em parceria com a Fujifilm, o museu fez escaneamentos das telas, tanto da cor quanto da textura (fora da moldura, fora do chassi) de nove telas de Van Gogh. Esse escaneamento produziria uma matriz de relevo das pinceladas, que seriam impressas em 3D ainda sem cor. Em seguida, a impressão de cor seria feita em cima do relevo. O truque e cuidado do museu é de encaixar os dois perfeitamente, na base do milímetro correto. 260 cópias de tamanho original foram feitas de cada uma dessas obras. As molduras são feitas de madeira, replicando as originais. É impressionante.
O preço também. Na minha humilde vida de curadora de arte, achei que seria possível adquirir uma das peças, achando que o preço cairia ao norte de um bom pôster. Ponderei se seria de fato interessante ter um “van Gogh” ou se eu estava mais interessada em adquirir este processo. Mas ao abrir o site do museu, me espantei mais ainda: €21.175,00 (R$135-140mil, atualmente). Eu não errei em assumir que estaria ao norte, mas nunca imaginei um valor tão alto.
Gerir uma galeria de arte me faz entender o valor de doações, e múltiplos que possam trazer grandes retribuições ao espaço institucional (sem fins lucrativos). Patronos e membros de conselhos pagam muito caro para se associar a nomes como MoMA, Tate, Guggenheim e inclusive Van Gogh – valores mais altos que das reproduções em pauta. Considerando o valor real da obra de van Gogh, esses 21 mil euros são uma pechincha. Se o museu resolvesse vender qualquer um desses quadros, em leilão ou venda direta, o valor sairia na casa de 8 a 9 dígitos sem dúvida. Mas, não deixa de ser uma reprodução (de alta qualidade) de 260 exemplares autenticada pelo museu (não pelo autor, e não em tinta à oleo). A pessoa que está disposta a comprar uma obra por este valor está disposta a comprar uma reprodução? Mesmo que entenda que esse valor reverte positivamente para o museu?
Boa oportunidade para discutirmos o valor simbólico das obras
Mesmo que valores monetários sejam eliminados da nossa consideração, e comecemos a tratar por valor simbólico, qual vale mais? A reprodução não autenticada de um outro artista que mimetiza a técnica do pintor utilizando o mesmo material que ele, ou a obra autenticada pela instituição que reproduz exatamente os traços do autor mas em impressão em relevo? Ambos tratam o quadro da maneira mais objetiva possível dentro de seu escopo técnico, visando eliminar subjetividade autoral da reprodução mantendo apenas a subjetividade da original. A questão da validade se encaixa por fim à qual é mais “van Gogh”? A interpretação seja em revelografia ou tinta à oleo, por mais perfeita que seja, não se passa de uma tradução: há sempre material à perder em qualquer uma das situações. Não é o autor pintando, nem produzida em seu tempo, e não sofreu os impactos climáticos que a original sofreu com o passar dos anos. A cópia é como uma curva exponencial em relação ao x. Ela pode chegar muito próxima à encostar no x (perfeição) mas nunca chega lá.
Outra questão é se as reproduções quase-verídicas e autenticadas diminuem o valor original da obra, ou até mesmo da instituição. Por exemplo, se o Louvre resolvesse replicar sua coleção e remontar o acervo (parte, ou completo) em 1, 2 ou 100 países, qual seria o valor da ida ao museu parisiense e do seu acervo?

Há alguns anos, o próprio museu francês avaliou a Monalisa quando a França passava por sérias dívidas econômicas, e considerou essa como uma das soluções ao problema. A obra foi estimada em pouco mais de 2 bilhões de euros. Apesar de não concordar com os valores abissais que obras de arte tem recebido, principalmente nestes últimos anos, concordei em parte com esse valor. Tratar de valor financeiro da Monalisa é tratar de muito mais do que apenas uma obra de arte. É a maior atração turística do mundo, e o ingresso mais vendido do Louvre é o que permite ver apenas a Monalisa (imagina se adicionar todas as modalidades de ingresso). Essa obra é uma das fontes de renda da França.
Mas, fora a Monalisa, e alguns outros poucos exemplos, o mesmo não acontece com as demais obras de arte, ainda mais quando se é considerado que muitas não param em museus e sim coleções particulares que nunca sairão de casas ou até mesmo de caixas em depósitos livres de imposto. Se cópias pudessem por fim dar uma amenizada na bolha do mercado de arte, eu veria isso como uma atitude positiva. E mais: possivelmente seria até uma forma de museus monetizarem a partir do não-deslocamento. O valor do ingresso para visita da coleção de um possível Louvre no Brasil poderia compensar na visão de ampliação do público. 200 milhões (ou uma parcela grande) de brasileiros que não tem a possibilidade da viagem à Paris em tempos pré ou pós pandêmicos teria maior chance de visitar a coleção e ver a Monalisa. Seria uma chance de trazer para perto obras históricas ao grande público, aumentar a acessibilidade ao conhecimento da arte e diminuir valores e trâmites de viagens de obras (o pesadelo dos museólogos e conservadores de obras). Tudo isso, enquanto se horizontaliza o valor de acesso à obra.
Nem todos podem viajar à Europa para ver originais
Seria a única forma de viabilizar a “vinda” de obras como a Monalisa ao Brasil, ou Las Meninas, Menina com Brinco de Pérolas, Les Demoiselles D’Avignon – essas e outras obras são proibidas por seus museus de viajar para outras instituições por conta da fragilidade e (principalmente) valor delas. Além de poder tê-las aqui, estas já não precisariam mais ser declaradas na alfândega com seus valores exorbitantes, museólogos não precisariam mais escoltar obras, e seguros medonhos já não seriam mais necessários. E o que estou a mencionar não é nada de novo. Usamos copias expositivas o tempo todo que trazem imensa verossimilhança, para que não destruam obras mais frágeis (Os Parangolés por exemplo, ou até mesmo os “dinossauros” de museus de história natural).
Só tive a oportunidade de ver ao vivo alguns dos trabalhos que estudei na faculdade. Mas já tive uma vantagem imensa de ter estudado na Europa e ter tido a possibilidade de viajar para países vizinhos. A maioria das obras que estudei foi a partir de slides, livros e pesquisas na internet. Escrevi minha tese de mestrado sobre obras que não vi em escala real nem o traço do autor de perto. O mundo atual, globalizado e conectado, já me permitiu isso: visualizar uma imensidão de conteúdo e material que eu jamais seria capaz de acessar em outros tempos e até mesmo em outras condições financeiras. As faculdades de Belas Artes da Europa do século 17, 18 e 19 utilizaram muitos moldes de esculturas famosas para ensinar pintores e escultores aspirantes.
Paris tem um museu inteiro dedicado a moldes de esculturas e fachadas arquitetônicas. Sem duvida, é um espaço de muito valor aos estudiosos e publico que não podem se locomover aos originais e precisam revisitar o material. Ter essas reproduções em outros locais do mundo seria possibilitar mais uma vez a aproximação da técnica do pintor a partir do relevo original escaneado. Seria possível ver em 3D as rachaduras e onde a tinta vem com mais espessura, feitio impossível de se fazer na fotografia/projeção/pesquisa no google (geralmente em escala diferente do original).

A pandemia muito nos permitiu no universo digital, facilitando visitas virtuais e gratuitas à exposições. Viagens foram impossibilitadas, e mesmo depois que a curva abaixe no Brasil e museus começarem a reabrir, a possibilidade de viajar ainda está muito longe da realidade dos poucos que podem arcar com as despesas e dos muitos que não podem.
A verdade é que para amantes, historiadores, conservadores, colecionadores, artistas e outras pessoas envolvidas no mundo da arte, a original é a que vale. Sua aura se mantém independente de copias, pelo menos é o que eu acredito. É possível ainda que o valor da obra não abaixe por causa das reproduções. A aquisição de reproduções para coleções particulares, no meu ver, seria positivo para saciar o desejo inconcebível de ter um Van Gogh, mas não sugiro (nem vejo grande abertura para) que este objeto seja tratado com uma obra, e sim um excelente pôster: uma imagem de afeto da experiência real. Arte tem um poder muito profundo de comoção e descartar a compra de memorabilia que emulam o original é extremamente válida. Contudo, valorizei as imensas possibilidades para a educação e ao acesso à arte que essas reproduções podem trazer. Será essa a técnica que finalmente vai fazer da arte um pouco mais acessível? Difícil dizer em um ambiente tão controlado por membros que apenas fingem gostar da noção de acessibilidade, mas espero que sim.
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Agradeço ao Lucas Albuquerque pela rica troca durante a escrita desse texto.