Heritage (Nancy Shaver, 1986) é uma obra visual que poderia ser descrita da seguinte forma: uma folha de papel, cuidadosamente protegida por um vidro, dentro de uma moldura branca, onde pousa um determinado objeto. Se nos aproximarmos um pouco mais, é possível ler a seguinte frase no papel: “my father had beautiful hands” (“meu pai tinha mãos bonitas”). Por cima da moldura, fora dela, apoiada no canto superior direito, encontramos uma colher de metal corroída – colorida pela passagem do tempo. Podemos dizer que esse objeto está excluído, porém perto, em cena, sobre o quadro, destacado, deixado de fora (da moldura). Talvez porque um objeto como este, impregnado com o valor de uma herança, não caiba mesmo dentro do quadro, mas ainda assim pode pousar sobre ele, tocá-lo, sobrando enquanto um resíduo e, especialmente, sustentando a cena.
Roland Barthes (em O efeito de real) fez uma leitura de um texto de Gustave Flaubert, citando a descrição do poeta sobre uma determinada sala onde “um velho piano suportava, sob um barômetro, um monte piramidal de caixas”. Pela forma que Flaubert descreve a cena, teríamos o padrão burguês da personagem (a senhora Albain) no piano, a desordem nas caixas e, um elemento sem qualquer finalidade: o barômetro. Barthes diz que esse barômetro seria então um objeto “nem descabido, nem significativo, que não participa, portanto, à ordem do notável”. O barômetro de Flaubert não é citado em si, senão situado, o que nos leva a entender, que de alguma forma, enigmática diríamos, ele estrutura a cena e os demais objetos ao seu redor.
Se através da leitura de Barthes assumimos que este objeto organiza todos os demais que com ele compõem aquela sala descrita pelo poeta, foi através de um estudo de Jacques-Alain Miller que entendemos que tudo na cena faria sentido, exceto o barômetro. O que seria o mesmo que dizer que justamente por essa condição – fora do sentido, que ele só poderia aparecer situado, cercado por outros, jamais isolado. Contudo, uma vez situado, há qualquer coisa que fulguraria no arranjo da cena e que nos conduziria como leitores à transformação de um objeto qualquer e ‘sem finalidade’ em um objeto especial.
Se o piano estava ‘sob’ o barômetro e não o barômetro ‘sobre’ o piano, e se as caixas que o piano suportava são descritas depois do barômetro, ou melhor, depois da existência deste objeto no texto e portanto, na cena do mundo, diríamos que é porque o barômetro tem o poder de equilibrar tanto a cena quanto foi possível para o poeta, no seu esforço de transmissão, nos dizer daquela casa, daquela sala e da senhora Albain. Uma descrição, que coloca em evidência um objeto que nos punge, de uma forma tanto delicada quanto fatal, causando um certo estranhamento e uma especial agitação.
Nesta passagem entre a picada, como aquilo que punge, perturba e que, também com Barthes, reconhecemos como punctum, passando pela presença de um objeto, percebemos uma singular diferença: se o punctum corta a cena como uma flecha, ele assim o faz em sua condição invisível, por outro lado, esta mesma agitação apareceria através de um elemento reconhecível na imagem descrita, neste caso, o barômetro.o
Objeto da psicanálise: angústia e desejo
Jacques Lacan, em seu seminário sobre a angústia, ensinou que esse objeto seria o próprio objeto da psicanálise, e que este se apresenta sempre meio excluído da cena, como um resto de impossível nomeação. Esse “resíduo não imaginado do corpo”, diz Lacan, apareceria no lugar onde deveria haver um vazio. Nesse sentido, apenas um piano numa sala burguesa e ponto. Mas tem o barômetro, tem uma colher, tem qualquer coisa que brilha.
Retornamos então a Heritage, onde as ‘belas mãos’ do pai, embora não apareçam totalmente na cena são supostas e precipitadas a partir da combinação entre a leitura da frase e o reconhecimento da colher sobre a moldura. Supomos, como espectadores da obra, que existiria uma conexão não verbalizada entre o corpo do pai, que é apresentado no passado como saudade, e um objeto (a colher) que ostenta as marcas do tempo. Ainda que sensíveis à obra de Nancy Shaver, estamos convictos de que a colher sozinha não evoca o pai, assim como a letra impressa no papel, livre da composição com o objeto, também não o faz. Seria então, justamente, o arranjo entre esses dois objetos (letra e colher) que pode realizar a tarefa de trazer as ‘belas mãos’ para a cena sem, contudo, mostrá-las.
Esta força da presença, diríamos, como supomos que Lacan faria, são ‘as belas mãos’ do pai que aparecem como real, como objeto causa de desejo. E qual teria sido a herança deixada pelo pai, senão o próprio desejo como causa? Dito de uma forma mais direta, sabemos que as mãos estão ali enquanto objeto (naquela colher) e, por essa razão, comparecem com tanta força ao ponto de nos tocar.