“Eu vou
Atrás do trio elétrico vou
Dançar ao negro toque do agogô
Curtindo minha baianidade nagô”
Evandro Rodrigues, Baianidade nagô
Durante a pandemia, o cinema, via streaming, tem nos proporcionado pequenos prazeres que tornam o isolamento social um pouco suportável. E talvez, entre essas fugazes alegrias, as mais intensas tenham sido produzidas pelo encontro do cinema com a música brasileira, que tem belos exemplos no filme AmarElo – Tudo é pra ontem (dirigido por Fred Ouro Preto), que apresenta os bastidores de um show do rapper Emicida no Theatro Municipal de São Paulo, e em outro documentário, sobre o qual desejo me aprofundar neste texto, chamado Axé – Canto do povo de um lugar, do diretor Chico Kertész (trailer abaixo), filme de 2017 incorporado em 2020 ao catálogo da Netflix.
A riqueza do axé está no fato de ser mais do que um movimento musical. É também um movimento performático, de afirmação de identidades, baianidades, africanidades, liberdades e ocupação lúdica dos espaços públicos. O filme, sobre a história do movimento que nasceu na Bahia e contagiou todo o Brasil no final do século XX. Com sua chegada à Netflix, o documentário alcançou grande projeção e foi celebrado nas redes socais por amantes do axé e do carnaval, sobretudo pelas gerações cresceram entre as décadas de 1980 e 1990, que puderam se conectar a memórias de tempos mais felizes e festivos, quando nem sonhávamos que um dia uma pandemia nos impediria de pular o carnaval nas ruas. Com imagens de arquivo e inúmeros depoimentos de artistas e produtores musicais, o filme alimentou o sentimento de nostalgia dos carnavais de rua, dos prazeres, delírios, lirismos, trios elétricos e aglomerações ao som de Luiz Caldas, Sarajane, Margareth Menezes, Daniela Mercury, Olodum, Timbalada, Banda Eva, Chiclete com Banana, É o Tchan e tantos outros nomes que deram forma, ou melhor, formas diversas a um ritmo musical que tem o calor da rua como seu lugar por excelência. Afinal, o axé foi uma das formas de intervenção urbana mais relevantes da virada do século.
“O gueto, a rua, a fé
Eu vou andando a pé pela cidade bonita
O toque do afoxé e a força de onde vem
Ninguém explica, ela é bonita”
Tote Gira e Daniela Mercury, O canto da cidade

Eclosão do movimento coincide com a redemocratização
A explosão do axé ocorreu nos anos 1980, momento de redemocratização do Brasil após uma longa e violenta ditadura militar, que atuou contra as expressões de subjetividades e em desfavor da produção de espaços efetivamente públicos. Impossível, portanto, dissociar o axé dos vários movimentos de ocupação das ruas que nasceram naquele contexto, desde as Diretas Já até as manifestações de artes visuais derivadas da Geração 80 ou em confronto com ela. De forma consciente ou não, os artistas em ascensão naquele período, tanto nas artes visuais como na música, foram afetados pela abertura política. É de demasiado peso simbólico que um dos eventos artísticos mais emblemáticos da década, a exposição Como vai você, Geração 80?, tenha sido inaugurada na data de aniversário da Queda da Bastilha, em 14 de julho de 1984, além do fato de não ter sido realizada em um museu ou galeria, mas numa escola de artes visuais (EAV – Parque Lage), o que reitera o caráter jovem e o frescor daquilo que estava sendo apresentado nas salas, corredores, piscina e até no banheiro da instituição. Em clima de festa, ou de “manifesta”, a mostra anunciava a chegada de uma nova geração, que cresceu nos anos da ditadura, mas que, naquele instante, inaugurava uma nova era para as artes e para o cenário político nacional. O remix, o hibridismo e o espírito de liberdade que tomou (não só, mas sobretudo) a pintura da Geração 80, encontra evidentes paralelos no axé e no carnaval. Lembremos da obra de Beatriz Milhazes e de sua fascinação pela produção do carnavalesco Fernando Pinto, figura que, também devemos frisar, participou dos circuitos da Geração 80 com exposições de suas criações para o carnaval. Embora os discursos críticos (da época e atuais) busquem o espírito da época, majoritariamente, no rock’n’roll do Barão Vermelho e dos Titãs, o que não deixa de ser verdade, essa história precisa ser escovada a contrapelo, como diria Walter Benjamin, para que possamos apreender as diversas faces do caldeirão artístico dos anos 1980.

Em 1992, enquanto o movimento dos Caras Pintadas ocupava as ruas do Brasil pelo impeachment do então presidente Fernando Collor, uma jovem cantora chamada Daniela Mercury fazia o Museu de Arte de São Paulo tremer, literalmente. A apresentação da artista no projeto Som do Meio-Dia reuniu cerca de 30 mil pessoas no vão livre do Masp, o que provocou a interdição da Avenida Paulista e fez tremer a laje que recobre o andar inferior do museu, sacudindo também as obras lá dentro. O happening de Daniela Mercury foi não apenas uma das intervenções urbanas mais grandiosas da década de 1990, como teve maior êxito do que qualquer trabalho dito “transgressor” de arte contemporânea em colocar em confronto uma instituição artística com a energia que emana das ruas.

“Que bloco é esse?
Eu quero saber
É o mundo negro
Que viemos mostrar pra você”
Paulinho Camafeu, Que bloco é esse
Axé – Canto do povo de um lugar mostra a dificuldade de se chegar a um consenso sobre o marco zero do movimento baiano. É mais viável falar de origens diversas, e uma de suas raízes está nos blocos afro que surgiram em Salvador na década de 1970, entre eles o Ilê Aiyê, cujo nome significa “mundo negro” ou “casa de negro” em iorubá. Composto exclusivamente por pessoas negras, o bloco foi criado no bairro Liberdade por jovens imersos no mundo dos sambas e dos candomblés e, ao mesmo tempo, inspirados pelas lutas globais de emancipação racial e pela “onda soul” que atravessou aquela década. Ao abordar o contexto de criação do Ilê Aiyê, Vovô do Ilê (fundador do bloco), Marcionílio (cantor) e João Jorge (presidente do Olodum) narram a repressão à estética negra vivida durante a ditadura e revelam detalhes sobre as violências policiais sofridas cotidianamente por quem ousasse apresentar algum indicativo de ascendência africana no cabelo, barba ou vestuário. Mesmo durante momentos festivos, como o carnaval, aqueles mesmos corpos eram impedidos de entrar nos bailes de salão e nos blocos de trio. O Ilê Aiyê foi (e continua sendo) revolucionário por reunir nas ruas uma multidão de pessoas negras vestindo roupas africanas, contas de candomblé e outros símbolos de afirmação da negritude, enquanto bradavam “somos crioulo doido, somos bem legal, temos cabelo duro, somos black power” – hino que desde 1975 ressoa nas vozes dos integrantes do Ilê e em gravações que o tornaram conhecido em todo o país, como a de Gilberto Gil, no disco Refavela de 1977.
Bloco foi acusado de ‘racismo reverso’ pela burguesia branca
Censurado na década de 1970 e atacado pela opinião pública branca e burguesa (que o acusava de racismo reverso), o bloco ganhou grande repercussão com a abertura política na década de 1980, junto a outros blocos e grupos musicais afro, como Olodum, Muzenza e Ara Ketu, alimentando o clima de liberação de uma condição clandestina e de valorização da cultura negra. O Ilê Aiyê e outros exemplos mencionados são sintomas daquilo que Antonio Risério denomina, em seu livro Carnaval Ijexá (1981), de reafricanização da Bahia, o que ocorre diante de uma nova afirmação da identidade negra, entre a modernidade e a tradição, e de alteração do panorama das relações raciais, inaugurando outra fase para a vida cultural baiana. Ideias que Osmundo Pinho resgata, desconstrói e revisa em sua tese de doutorado “O mundo negro: sócio-antropologia da reafricanização em Salvador” (2003), propondo um entendimento mais abrangente desse processo, seus contextos e ramificações.

“Veja o afro Olodum
Ao passar pela avenida
Todos cantando felizes
De bem com a vida”
Valter Farias, Deusa do amor
Do encontro dos blocos de trio elétrico com os blocos afro, surgiram aqueles que mais tarde deram origem às bandas de axé music que estouraram no Brasil desde o sucesso pioneiro de “Fricote”, de Luiz Caldas, em 1985. Os batuques afro se misturaram com instrumentos eletrônicos e as melodias incorporaram influências do reggae, do rock, da música pop e de outros ritmos, produzindo uma infinidade de novas sonoridades. Salvador tornou-se um novo polo do carnaval, disputando protagonismo com o Rio de Janeiro, e passou a atrair uma quantidade de turistas sem precedentes na década de 1990. Não demorou muito para que o fenômeno do carnaval baiano se reproduzisse em outras cidades do Brasil, inclusive fora de época, no formato das micaretas, que ajudaram a difundir o axé pelo país – papel cumprido também pelas rádios e emissoras de TV.

Sabemos que o axé foi devorado pela indústria cultural, assim como os blocos de trio elétrico, que foram adquirindo ares de eventos privados, com abadás e cordões de isolamento, e conquistando outros contextos, como estádios, arenas e programas televisivos. O protagonismo negro e a ressonância da cultura de terreiro também foram se diluindo. Mas a essência do axé sempre encontrou meios de sobreviver. A luz acendida por esse movimento musical e performático resiste a ser apagada mesmo em tempos ultraconservadores e pandêmicos.
“Eu queria
Que essa fantasia fosse eterna
Quem sabe um dia a paz
Vence a guerra
E viver será só festejar”
Evandro Rodrigues, Baianidade nagô
Autor
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Mestre em Artes Visuais (História e Crítica de Arte) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. Doutorando do mesmo programa.
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