Publiquei este texto como parte integrante de minha coluna quinzenal da Veja Rio, no último dia 12 de fevereiro de 2021. Republico-o em partes agora na Caju – uma sobre Leandro Vieira, a outra sobre Hélio Oiticica – sem prejuízo para a leitura da íntegra, que pode ser acessada aqui. A foto do cabeçalho é da Riotur/Divulgação. No texto a seguir, comento a montagem da bandeira do desfile da Mangueira de 2019, concebida por Leandro Vieira, chamada agora, em 2021, de ‘Bandeira brasileira’ e montada no MAM. Cito ainda a ‘Ocupação’ realizada pelo artista a convite da direção artística do museu.
O convite da direção artística e da curadoria do MAM para que o artista e carnavalesco Leandro Vieira assumisse a curadoria de uma “Ocupação” durante a mostra de Hélio Oiticica, “A dança como experiência” talvez tenha sido uma tentativa de amenizar a ausência da Mangueira e de seus corpos no projeto do Masp (leia o texto sobre a mostra de HO aqui). Leandro respondeu ao chamado de modo bastante inteligente, investindo justamente na ideia do corpo que canta, toca e dança como depositário de saber. Ao convidar trabalhadores pretos e pretas da Mangueira para uma série de oficinas, já realizadas, e palestras (a programação começa depois do carnaval), Leandro sugere que o canto e a dança são uma forma de pensamento, que não por acaso reside em lugares chamados de escola – as escolas de samba.
Mas, se a Ocupação cumpre seu papel e se afina perfeitamente com o que Hélio defendeu com sua obra plástica e escrita, a aproximação de um trabalho de Leandro como artista, sob responsabilidade da curadoria da instituição, é feita de momentos mais e menos felizes. Começo pela alegria: é inquestionável a importância histórica de ver a bandeira que desfilou na Mangueira em 2019 em um museu de arte moderna, no espaço geralmente interditado para o carnaval. A exibição da obra de Leandro é um ganho não apenas para ele, mas para todos os criadores da folia, e é preciso que nós, curadores e críticos, ampliemos esse gesto do MAM a outros artistas dos desfiles.

Nós, curadores, precisamos incluir obras de Leandro, Rosa Magalhães, Renato Lage, Bora e Haddad, Fernando Pinto, Maria Augusta, Paulo Barros, Joãosinho Trinta e tantos outros em diálogos com obras de artistas contemporâneos de vários suportes. Também é fundamental que as instituições incorporem objetos, figurinos, croquis e projetos aos seus acervos, cuidando dessa produção, que pode ser exibida em sua própria programação e nas de outros museus e espaços de arte. Carnaval é arte visual – a mais poderosa, a mais comunicativa das artes visuais; aquela que é capaz de enfrentar a turba e a multidão e sobreviver a ela; aquela que produz imagens de alcance planetário.
Por tudo isso, a alegria é imensa; no entanto, ela não impediu um grande estranhamento diante da montagem de Bandeira brasileira. Sou uma profissional do texto, a escrita é meu ofício. Começo então o debate por essa narrativa que a curadoria precisa construir para estruturar suas escolhas. O texto curatorial do MAM é exibido sem assinatura, tanto na parede e no site do museu (o que não ocorre na outra mostra em cartaz, Realce). Ao escrever sobre Leandro, os responsáveis pela curadoria abrem mão de se deter mais demoradamente não apenas na obra do artista, mas nas possíveis relações desta obra com a de Hélio Oiticica.
Texto curatorial, sem assinatura, abre mão de vertigem sobre a obra
Por que a bandeira de 2019? O que ela significa? Qual a sua relação profunda e cheia de desdobramentos com a obra do próprio artista? Teria sido interessante, talvez, ter notado a profusão de bandeiras e estandartes que povoam os desfiles de Leandro, e que se fazem presentes anualmente desde sua estreia como carnavalesco, em 2015, na Caprichosos de Pilares. A ideia de bandeira poderia ser ainda uma sólida ponte para a obra de Hélio Oiticica, não apenas nos aspectos formais (os parangolés são pintura e são bandeira, como quase tudo em Leandro), mas também no plano simbólico. Leandro é um dos artífices da retomada do quesito enredo, estrutura dos desfiles, e tem abordado o quesito como bandeira, como plataforma para discutir o próprio carnaval, a sociedade, a arte.
Em uma entrevista publicada na revista “Concinnitas”, da Uerj, o artista à frente da Mangueira e do Império Serrano afirma que seu trabalho é “bandeira pra vestir no carnaval”. É uma ideia muito forte em sua síntese, mas, a despeito dela, havia muito a ser explorado, e creio que o texto nem encampa a vertigem necessária para abordagem de um trabalho dessa magnitude e nem cria um registro histórico compatível com o gesto de finalmente abrir as portas do MAM ao carnaval. Exposições um dia terminam, e por isso textos e imagens nos sites e catálogos cumprem a tarefa de fazê-las sobreviver ao tempo. Ainda no texto, há um momento especialmente contraditório, no trecho que destaco a seguir:

“A obra Bandeira brasileira, concebida por Vieira para esse mesmo desfile, não carece de potência artística por ter sido feita para o Carnaval. Seu sentido original foi o desfile, mas em 2021, com o Carnaval suspenso, ocupa este espaço-tempo do museu para nos trazer para o chão”.
Opto por perguntar: por que uma obra “feita para o carnaval” é classificada como algo que “não carece de potência artística”? O carnaval não seria um universo potente? A bandeira de Leandro e da Mangueira não está no MAM justamente por causa dessa potência? Há um entendimento de que é apenas no museu que ela ganha potência? Apenas o levantamento dessas hipóteses já me parece bastante grave e problemático, pois com elas retornamos ao problema de 1965, quando o MAM barrou a Mangueira: o carnaval não existiria como potência desde o lado de fora do museu, e precisaria dele para ser chancelado. Ainda que sem intenção, é como se o museu impedisse novamente a existência de uma obra de arte vinda da Mangueira, afirmando que ela “não carece de potência” por “ter sido feita para o carnaval”.
Justamente por ter sido feita para o carnaval é que esta obra também precisaria de um cuidadoso exercício de transposição no processo de montagem, que, a meu ver, não ocorreu nem em seus aspectos técnicos nem simbólicos. Pensemos e debatamos juntos: Bandeira brasileira foi originalmente criada para a avenida, levando em consideração a escala, as características e a estrutura espacial/arquitetônica de um desfile. No cortejo de 2019 da Mangueira, História para ninar gente grande, a bandeira foi carregada deitada, não apenas para que pudesse ser percebida como pintura – Leandro é, antes de tudo, um pintor – também para que fosse plenamente enxergada do alto, das arquibancadas. Pendurar um pedaço tão grande de tecido no mastro seria inviável fisicamente, por dificultar seu trajeto e visão. E também seria um prejuízo simbólico, já que a bandeira deixaria de ser carregada pelas “verde-e-rosa multidões” ao que o samba se referia.

A curadoria do MAM optou por instalar a bandeira em sentido diferente daquele do desfile, prendendo-a com velcro na parede gigantesca do Salão Monumental. Isso gerou alguns problemas técnicos, já que tanto tecido, sujeito à gravidade, e com a parte superior do retângulo esticada, acaba gerando “barrigas” acidentais, que dão a sensação de “defeito”. Talvez por perceber isso, a equipe de montagem optou por prender a bandeira criando algumas alças com o velcro da obra, formando um drapeado modular uniforme – as dobras evitam a “barriga”. Se por um lado isso resolve o desafio técnico, evitando as bolsas aleatórias e o risco de queda, por outro amplia a problematização dos aspectos simbólicos, já que a bandeira ganha um aspecto de cortinado e uma teatralização que não fez parte de sua exibição original, e de alguma maneira também a esvazia.
Como sempre acontece nos desfiles de Leandro, há uma obra-síntese do enredo que passa pela avenida. Em 2016, foi a porta-bandeira Squel Jorgea com a cabeça raspada do candomblé, representando a religiosidade de Maria Bethânia; em 2020, foi a alegoria com o menino preto, platinado e favelado crucificado como Jesus. A bandeira sintetizou o enredo de 2019, dedicado a dar visibilidade para os “índios, negros e pobres” recalcados da história oficial brasileira. Ela chegava na avenida no último segmento do desfile, afirmando tudo o que havia passado aos olhos do público antes dela, e carregada nos braços dos componentes da Mangueira.
Creio que é importante levar em conta origens e contextos do trabalho ao pensar em sua montagem, e por isso afirmo que a opção vertical e frontal talvez não seja a melhor solução para ele, sobretudo do modo como foi feita. Há uma imensa interferência do rosa-choque de Leandro na exposição de Hélio, e os Parangolés de Hélio também causam imenso ruído na apreensão visual da bandeira, que, para sofrer menos com essa proximidade, acabou sendo presa muito perto do teto.
O processo de entendimento de uma obra de arte e suas existências no mundo é plural e exige reflexão a partir de suas características físicas e conceituais. Ao comentar Bandeira brasileira, Caetano Veloso** oferece leitura poética e muito direta do trabalho de Leandro. Ao dizer que “o verde-e-rosa salva o verde-e-amarelo, reaviva-o e chama-o para o seu lugar”, o compositor nos aponta para a relação do trabalho com a pintura, tão importante na obra do carnavalesco, mas também para o redesenho de identidade que Leandro faz em todo o enredo de 2019: a bandeira brasileira seria mais bonita tingida de Mangueira, com as cores e os dizeres da população brasileira. Para mim, a bandeira precisa ser levada em conta também como acontecimento de desfile, como elemento que não prescinde dos corpos da Mangueira para existir plenamente. Na avenida, ela desfilou repousada, carregada horizontalmente como um corpo ou mortalha, exibida como o luto e a luta dos “índios, negros e pobres” cantados pelo enredo. Um corpo anti-monumental, como de resto todo o desfile de 2019, ideia que vou desenvolver adiante.
(Antes, permito-me uma digressão. Há muitos anos, o escritor João Ubaldo Ribeiro me disse que seus personagens contrariavam não apenas a ele, seu autor, também às leituras e sugestões de seus editores. Essas criaturas revoltavam-se contra o destino traçado por seu criador e outros interlocutores e exigiam outras abordagens. Teria sido assim, por exemplo, com a narradora libertina e libertária de A casa dos budas ditosos. Penso que tudo o que criamos pode mesmo fugir do que imaginávamos inicialmente – tanto é assim que Ubaldo chegou até aqui sem que eu o tivesse chamado).
Em 2019, a bandeira da Mangueira desfilou plenamente afinada com os desígnios de quem a projetou e com a arquitetura do espaço do Sambódromo, funcionando ainda como dolorido e contundente espelho do enredo verde-e-rosa e da realidade brasileira. Deslocado para o MAM, o trabalho parece estar exilado formal, simbolica e espacialmente. E talvez nos conte que é preciso um exercício de escuta e reflexão. Fora da avenida, Bandeira brasileira talvez ainda precise se comunicar conosco – com Leandro Vieira, que a criou, e com os críticos que acompanham a trajetória desse artista tão magnificamente inquieto, grupo no qual eu me incluo.

Iniciando o processo de reflexão, faço novas perguntas, que teriam valido também para os Parangolés de Hélio: se o trabalho exibido fosse Máscara-lápis (1972), de Rebecca Horn (veja o vídeo aqui), ou Divisor (1968), de Lygia Pape, algum curador pensaria em exibir respectivamente o objeto morto, sem o corpo da artista, ou o tecido perfurado de Lygia, sem a presença dos corpos que os carregavam? Ou teria sido feita a opção por registrar o trabalho em suas características plenas?
Se o exercício era o de ocupar o museu com um trabalho-objeto, levar em conta o espaço fechado, e fazer no trabalho as devidas adaptações não teria sido um bom exercício? Lembro, por exemplo, as fitas métricas de Cildo Meireles, que figuram tanto em trabalhos instalativos quanto em gravuras, respeitando, no entanto, as escalas de exibição possíveis; o artista e a curadoria demonstram para o público que tal fita métrica não é a mesma daquela, é uma aparição em outra abordagem, para outra situação, em outra escala e outra formatação.
Uma última questão: se houvesse uma conclusão de que a bandeira deveria ser exibida naquela escala, não teria sido melhor que aparecesse deitada, com a memória agregada do desfile, e sem interferir na obra de Hélio ou ser interferida por ela? O MAM tem o Espaço Reidy, onde estava a mostra dos Irmãos Campana, desmontada esta semana. Ali, a bandeira certamente poderia ser vista de cima, do girau do segundo andar.

Ainda não tenho as respostas, e nem me vi diante de uma situação que me obrigasse a tomar uma decisão. Creio que é a própria obra, com suas características e sua história, quem vai nos dizer a melhor maneira de lidarmos com ela. Por ora, enquanto penso e tento escutá-la, o que reafirmo é o que a bandeira pareceu gritar, ali da parede do MAM: a contrariedade de ter se transformado num avesso de si mesma. Essa inversão se dá tanto no campo da forma – tornando muito difícil a montagem de uma bandeira daquele tamanho rente à parede – quanto no da metáfora.
Colada quase à força na parede agigantada da arquitetura moderna, a bandeira, desfilada como um anti-monumento na Mangueira, corpo e mortalha dos heróis marginais de Leandro, terminou desenergizada. A obra fez parte de um todo que contou ainda com uma comissão de frente mostrando o sangue por trás dos retratos acadêmicos dos museus; a pichação do Monumento às bandeiras, de Victor Brecheret; e o carro com outro piche à fachada pública com a frase “Abaixo a ditadura”, em foto feita durante o governo militar, nos anos 1960. Prender a bandeira anti-monumento em um Salão Monumental é, no meu entender, trair um de seus aspectos mais pungentes.
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A bandeira que vimos no desfile também era um corpo silencioso, repousado, carregado: o dos “indios, negros e pobres” que vivem no canto e na dança da Mangueira, que os exibiu de modo semelhante aos dos corpos de mártires, levantados pela multidão em seus funerais. Um processo de imagem semelhante à vocalização de “Marielle Presente”. Falar para presentificar o ausente é tornar cada vez mais vivo o corpo morto, mas sem lhe roubar a morte, como faz a parede viril do MAM. Na bandeira e no enredo proposto em 2019, é justamente a morte que mantém a imagem viva, é o luto que dá a mola propulsora de conexão e de empatia com a luta.
Se escrevi tudo isso, com tantas linhas e alguma veemência, não foi por motivação de ataque, e sim de defesa das obras – de Leandro, de Hélio, do carnaval. Especialmente no caso de Bandeira brasileira, bem menos estudada que os Parangolés, a vinda a público de meus argumentos reside no fato de eu reconhecer esta obra de Leandro como uma das mais importantes que a arte brasileira produziu neste século. Mergulhemos nela, para que a escutemos.
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*Em conversa para uma reportagem que realizei para o jornal “O Globo” naquele ano.
** Em depoimento a Pedro Willmersdorf, no jornal “O Globo”.
FOTO DO CABEÇALHO: Divulgação/Riotur
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Leandro Vieira e a sobrevivência das imagens – Clique aqui.
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