Logo após uma internação hospitalar oficialmente divulgada como decorrente de uma infecção alimentar e acompanhada diariamente por seus seguidores, a cantora Anitta teve vazado – sem jogo de palavras – um vídeo em que aparecia sendo tatuada no cu. Para quem cantou, há três anos, “Tô brincando com o bumbum” na canção-manifesto do funk contemporâneo “Vai malandra”, cujo primeiro plano do clipe é justamente uma imagem realista, sem filtros, de sua bunda, essa recorrência não parece nada surpreendente, soa mesmo coerente.
“Vazamento” é uma metáfora, palavra hoje banal e quase de sentido próprio no português do Brasil que se usa quando algo que não era para ser conhecido é revelado à revelia dos participantes. O vídeo da tatuagem anal de Anitta espalhou-se nas redes e, dificilmente se saberá, se com a conivência ou não da equipe de comunicação da cantora. Mas o fato é que, como sempre, ela saiu-se muito bem, fez um outro vídeo dizendo que a imagem era antiga e que até já fizera retoques na tatuagem, coisa necessária já que por sua localização ela desbota, como ensinou aos interessados em seguir o seu exemplo. A imagem era inclusive oficial, da sua conta no Only Fans, um aplicativo muito usado pela indústria pornô, mas não só, de conteúdos exclusivos sem controle temático – o que significa a liberação de imagens de nu ou mesmo sexo – e que o usuário paga para assistir. Ao seu lado, em off, o atual paquerinha de Anitta, ele próprio um influencer, atestava: “Mas a tatuagem ficou ótima!”. Divertida, a cantora fez propaganda de sua conta no Only Fans e tranquilizou seus admiradores e gestores financeiros: “Tá pingando lá em dólar na minha conta e tá todo mundo feliz da vida”.

Vazamentos de informação ficaram mais populares no Brasil desde que, sem a elegância de Anitta mesmo naquela situação, procuradores e juízes da operação Lava-jato foram flagrados evidentemente à revelia num conluio para afastar um candidato bem cotado às eleições presidenciais para favorecer um outro, que terminaria eleito e convidaria o chefe da armação para ser seu ministro da Justiça. Ou quando, aí voluntariamente, Bolsonaro deixa-se filmar sem máscara, provocando aglomeração, comendo um podrão na rua de boca aberta, espalhando restos de maionese e perdigotos enquanto Coronavírus, sofrimento e morte se espalhavam pelo país.
Arrigo diz que hoje ‘arte revolucionária tende à escatolagia’
Em meio a tudo isso, num discreto mas importantíssimo acontecimento cultural deste início de ano, a cineasta Paula Gáitan abriu a 24 Mostra de Cinema de Tiradentes com seu novo filme, Ostinato, sobre o pensamento musical e o processo criativo do compositor Arrigo Barnabé. Lá pelas tantas do filme, sem conseguir explicar bem seu pensamento intuitivo, Arrigo diz que a arte revolucionária hoje tende à escatologia. Estabelece-se a partir daí um impasse entre a cineasta e seu personagem, ele próprio um artista revolucionário quando finalmente incorporou com bases sólidas elementos da música clássica contemporânea na música popular brasileira: mas escatológico em que sentido.
A cineasta, mais acostumada à reflexão, dá as alternativas, evidentemente o sentido filosófico ou teológico de fim dos tempos, de decadência; ou o sentido mais popular de coisas relativas a excrementos, os restos que saem do corpo humano (normalmente por boca ou ânus, como nas histórias acima, mas por quaisquer orifícios do corpo, excrementos reais ou metafóricos).
No filme, Arrigo se recusa a racionalizar o que disse. Diz que apenas “sente” isso, e não sabe bem por quê. Como um processo (algo psico) analítico que é, Ostinato dá no entanto algumas pistas. Arrigo diz, por exemplo, que não importa muito o que se faça com a música criativa hoje em dia, “o público não vem, não vem…”. E insiste várias vezes em recomendar para a diretora (que não corta esse “ostinato” pensamento de Arrigo), como “música que é puro pensamento”, a chamada Grande Fuga, o décimo quarto e último quarteto de cordas escrito por Beethoven.
A Grande Fuga é uma das mais celebradas peças de Beethoven e é única na obra dele e na história a música por vários motivos. Inicialmente o sexto movimento do Quarteto de Cordas 13, que já era longuíssimo por ter cinco movimentos (o normal são quatro), e de execução complexa para músicos executantes que já estariam extenuados quando ali chegassem, ela virou uma peça autônoma por sugestão do editor de Beethoven e acatada pelo compositor. Assim, editor e compositor tiveram ganhos comerciais com essa decisão – como Anitta em sua conta no Only Fans, ou qualquer artista que faz gestão de sua carreira –, a música ganhou novo opus, nova edição, novo mecenas, etc. .
Musicalmente, a peça é ainda mais interessante e reveladora talvez do inconsciente de Arrigo quando ele fala de uma época escatológica para a música. Quando a compôs, entre 1825 e 1826, Beethoven pegou um gênero do barroco desenvolvido com maestria por Bach, já velho de quase cem anos, a Fuga, e seria em tese como se ele melancolicamente celebrasse um mundo musical que estivesse em vias de extinção. Só que no auge de sua maturidade musical, e treinadíssimo na difícil formação de Quarteto de Cordas, Beethoven parte para uma aventura sem precedentes, e reinventa o gênero já levado à perfeição por Bach, sua grande referência. Assim, no auge da decadência daquele estilo de composição “contrapontístico”, de uma outra voz “perseguindo” o tema principal apresentado, Beethoven em vez de um tema melódico, propõe dois, que no decorrer da peça vão ganhando suas próprias “fugas”, que vão se entrelaçando no decorrer da peça, cheia de novas propostas musicais e expressivas, chegando em momentos ao limite do sistema tonal.
De um gênero em extinção, ou ao menos localizado no passado, Beethoven não celebra a decadência, mas arremessa a Fuga para o futuro, inspirando compositores por todo os séculos XIX e XX a renovarem constantemente o velho e polifônico gênero originalmente barroco e bachiano.
Quando Arrigo Barnabé chegou no ambiente da música brasileira no final dos anos 1970, também encontrou o terreno, senão decadente, docemente adormecido. Ninguém se incomodava com isso, mas tudo parecia formalmente parado nas grandes conquistas da bossa nova e de seus filhos, nas harmonias arrojadas de Jobim, nas inspirações modais e afros de Baden, nos caminhos abertos por seus sucessores e a impressão é que tudo continuaria assim.
Na cena mais reveladora do filme, sentado ao piano Arrigo demonstra como começou a compor sua primeira grande peça de impacto, a opereta Clara Crocodilo, utilizando-se intuitivamente de técnicas do serialismo de Schoenberg, como os espelhamentos. Só que, ele explica, enquanto Schoenberg criou o serialismo dodecafônico justamente para não cair na tentação do “ostinato”, ou seja, da repetição de padrões rítmicos ou melódicos, ele resolveu inserir o serialismo no ostinato, ou seja, no caso dele no coração da música popular.
Com Arrigo, a música contemporânea chega à música popular
Como Beethoven em 1826, em 1980 Arrigo Barnabé foi um artista inaugural por trazer elementos da pujante música contemporânea para a igualmente pujante (mas então talvez parada no tempo, pelo menos em termos essencialmente musicais) música popular brasileira criativa.
A sensação de que em 2021 tal “arte revolucionária” tenda ao escatológico, no sentido de um fim, fica ainda mais reforçada se formos lembrar do impacto de Arrigo em sua fase inaugural. A única peça que ele toca inteira no filme ao piano, sua valsa Londrina, estreou em 1981 interpretada por ele e Tetê Espíndola e grande orquestra da TV Globo, em horário nobre durante as eliminatórias do Festival MPB-Shell. Enquanto Tetê ia cantando, as legendas diziam que aquela música estava sendo retransmitida simultaneamente por rádios do Brasil inteiro. Quando a linda e complexa valsa termina, o público bate palmas empolgadas e, na plateia de artistas convidados da Globo, vê-se figuras respeitáveis da cultura brasileira testemunhando aquele momento, como por exemplo o compositor Capiba. Nas finais, no Maracanãzinho e aí para um grande público, Londrina é apresentada sem problemas – mesmo com a voz da Tetê colocada à maneira das cantoras líricas – e a canção sai com o prêmio de melhor arranjo.
No decorrer dos anos, Arrigo desenvolveu uma carreira de compositor multifacetada, envolvendo canções complexas, em geral valsas mas até sambas, peças como Clara Crocodilo em que utiliza procedimentos de música contemporânea no ambiente da música popular e até peças como Missas e óperas de caráter essencialmente eruditos. Nos últimos anos, e talvez já revelando a rarefação do interesse do público por uma música puramente de invenção (ou mesmo de canções complexas), Arrigo vem investindo na carreira de intérprete, recriando de seu modo histriônico canções consagradas de autores populares, como Lupicínio Rodrigues ou Roberto Carlos.
Neste mesmo período, no âmbito da música brasileira criativa um compositor como Guinga revelou-se igualmente revolucionário – e escatológico, no sentido de prenúncio de um fim de algo, talvez do período iniciado uns 50 anos antes com Jobim, de que era possível conviver a invenção musical com relativa popularidade. “O público não vem”, diz Arrigo no filme, seria melhor corrigir: até vem, mas mais específico, é um tempo de música popular com jeito de música de concerto – aquelas condições específicas de uma música de alta voltagem criativa associada ao gosto popular e às condições da indústria cultural talvez não existam mais nestes tempos de MPB igualmente rica, mas florescendo nos nichos, na periferia simbólica.
O filme Ostinato flagra Arrigo ensaiando com uma pequena orquestra, como intérprete-narrador, uma música sobre uma das obras mais escatológicas do Ocidente, a Divina comédia, de Dante Alighieri, o que, mais do que uma pista, é a ilustração do que Arrigo pode estar querendo dizer com escatologia na música de invenção. O poema épico que traz “o coração apertado pelo temor e pela incerteza”, a “floresta ‘oscura’” que “só é menos amarga que a morte”, como Beethoven no XIX e Arrigo no XXI, também narra o fim de um período e o início de outro, inventando até mesmo uma língua literária, o italiano (e as línguas nacionais), e matando outra, o latim, anunciando o início do fim do medievo.
De volta à bunda com MC Fiotti e o ‘hino da vacina’
Talvez escatológico neste sentido, mas certamente no outro, o funk Meu pau te ama, do MC G15, já começa com os seguintes versos: “Ela só gosta de putaria/Não tem jeito, cuzão”. E o eu-lírico lá pelas tantas afirma um “Que vontade de foder, garota/Meu pau te ama”, enquanto no vídeo o rapaz tenta largar dos vícios – beber bebidas vagabundas até cair na rua, fumar maconha até ficar chapado – e dos amigos, para ficar com a tal garota que o seu pau, afinal, ama. Musicalmente, ao contrário do funk carioca festivo e dançante inspirado no Miami Bass dos cubanos da Florida ou nos tambores da umbanda brasileira, essa vertente do neo-funk paulista que tanto influencia mesmo a carioca Anitta desde “Vai malandra”, é mais lento, mais pesado e mais eletrônico. Harmonicamente a canção é estranhíssima, todo acompanhamento é feito em uma tonalidade menor, enquanto grande parte da melodia, é em tom maior. O que estaria errado, embora tenha gente que defenda justamente um choque proposital, um “espelhamento” ou algum procedimento da música contemporânea que provocaria o tal estranhamento.
Aí chegamos até o “hino da vacina”, trilha sonora informal do Brasil em pandemia, outra hipótese de escatologia musical que talvez ilustre o comentário de Arrigo. “Bum bum tam tam” simplesmente, como Beethoven, vai se inspirar ainda mais diretamente em Bach, roubando a sua Partita em Lá Menor, peça para flauta solo, para a introdução do funk. “É a flauta envolvente que mexe com a mente/De quem tá presente/As novinha saliente/Ficam louca e se jogam pra gente/Vem com o bumbum/Vai com o bumbum”, parte da flauta de Bach para, numa batida pesada e eletrônica, celebrar um dos assuntos principais dessa vertente pesada e paulista do funk brasileiro de origem carioca e também erótica. E a bunda segue como assunto central da canção: onde se vê a dança, onde se nota a sensualidade e, se for pensar em escatologia, de onde ela vem, literalmente. Coisa, aliás, em torno da qual o público parece ter grande interesse.
Autor
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Hugo Sukman é jornalista, escritor, roteirista e crítico de música. É o curador da nova sede do Museu da Imagem e do Som e autor de livros sobre música popular, como "Martinho da Vila - Discobiografia e “Histórias paralelas - 50 anos de música brasileira”, além de peças de teatro sobre a obra de Vinícius de Moraes, Sidney Miller e Nara Leão
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Hugo Sukman é jornalista, escritor, roteirista e crítico de música. É o curador da nova sede do Museu da Imagem e do Som e autor de livros sobre música popular, como "Martinho da Vila - Discobiografia e “Histórias paralelas - 50 anos de música brasileira”, além de peças de teatro sobre a obra de Vinícius de Moraes, Sidney Miller e Nara Leão