Publiquei este texto como parte integrante de minha coluna quinzenal da Veja Rio, no último dia 12 de fevereiro de 2021. Republico-o em partes agora na Caju – uma sobre Hélio Oiticica, a seguir, e outra sobre a bandeira de Leandro Vieira – sem prejuízo para a leitura da íntegra, que pode ser acessada aqui. A foto do cabeçalho é de Claudio Oiticica e pertence ao acervo do Projeto HO
HO: na Mangueira, ‘Apolo virou Dionísio’
Quando a palavra é “reconhecimento”, poucas pessoas na história da arte brasileira souberam dar tanto ao carnaval quanto o artista Hélio Oiticica (1937-1980). Caçula do Grupo Frente e do movimento neoconcreto, Hélio teve sua trajetória transformada pelo encontro com a Estação Primeira de Mangueira.
Na década de 1950, ele e outros artistas egressos do Grupo Frente, como Lygia Pape e Lygia Clark, investigavam geometria e cor a partir de um desejo de que elas se libertassem da superfície (do papel, da tela, da parede) rumo ao espaço e a uma percepção que se daria não apenas com o olho, passiva, mas com todo o corpo e suas memórias e experiências. Ao conhecer a Mangueira – escola e favela – Hélio recebeu de presente alguns subsídios fundamentais para radicalizar seus desejos, concebendo trabalhos que mudariam a história da arte no Brasil e no mundo.
Hélio chegou à Mangueira em 1963, levado pelo artista Jackson Ribeiro e para auxiliar o escultor mineiro Amilcar de Castro, seu companheiro dos grupos Frente e Neoconcreto, que trabalhava em alegorias para o carnaval de 1964. O enredo era “Histórias de um preto velho”, proposto pelo carnavalesco Júlio Mattos, e desfilaria com samba de Hélio Turco, Pelado e Jurandir. Pouco se sabe o que de fato Hélio fez no barracão da Mangueira – quase não há registros documentais, apenas as histórias orais dos que testemunharam aquele período. Por outro lado, é evidente o que a Mangueira fez na obra de Hélio.
Grande amiga do artista, Lygia Pape me disse, em 2000*, que, na Mangueira, “Apolo virou Dionísio”. Lygia unia dois acontecimentos na transformação ocorrida com Hélio, que passou a incluir o corpo, a libido e certa pulsão caótica e bacante em seus trabalhos: a morte do pai do artista, o pioneiro da fotografia experimental José Oiticica Filho, em 1964, e a paixão pelo samba. A despedida do pai coincide com a transformação de Hélio em passista da verde-e-rosa. Para Lygia, um momento em que o artista conseguiu viver de maneira mais plena sua sexualidade e estabelecer uma relação mais ampla com a cidade. Os primeiros Parangolés são do mesmo período, datam de 1964. E o que é um parangolé? Uma bandeira carregada com o corpo, uma pintura expandida feita para vestir e para o corpo dançar – mais do que isso, uma obra que apenas o corpo pode animar, dar alma. Os primeiros corpos que fizeram isso foram os de Miro, Cildo (ou Gildo), Nininha, Nildo, Mosquito, Paulo. Corpos pretos e favelados da Mangueira.
MAM barrou a Mangueira em 1965
Tanto os parangolés quanto bólides, caixas e penetráveis que Hélio realizaria a partir dos anos 1960 seriam impactados pela geografia da Mangueira, os materiais efêmeros de sua arquitetura e seu carnaval e os corpos de seus habitantes, mas também pela lógica comunitária das escolas de samba. Em 1967, no ensaio “Esquema geral da Nova Objetividade”, que escreveu para o catálogo da exposição “Nova Objetividade brasileira”, no MAM do Rio, o artista atribuiu às escolas de samba e outras manifestações da cultura popular a responsabilidade por uma percepção, pelo circuito contemporâneo, de que a arte poderia ser coletiva e “total”: “Ferreira Gullar assinalara já, certa vez, o sentido de arte total que possuiriam as escolas de samba, onde a dança o ritmo e a música vem indissoluvelmente da exuberância visual da cor, das vestimentas etc. Não seria estranho, então, levarmos isso em conta, que os artistas em geral, ao procurar a chegada desse processo uma solução coletiva para as suas proposições, descobrissem (…) as manifestações populares, das quais o Brasil possui um enorme acervo, de uma riqueza expressiva inigualável”.
Com o texto, Hélio reconhecia o impacto das escolas de samba não apenas no seu trabalho, mas em toda uma geração de artistas – o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar entre eles – fundamentais para a fundação da arte contemporânea brasileira. Dois anos antes da Nova Objetividade, em 1965, o artista havia feito outra tentativa de dar visibilidade ao seu reconhecimento da Mangueira. Ele convidou passistas e ritmistas da escola para uma apresentação de seus parangolés na exposição Opinião 65, da qual participaram também artistas como Antonio Dias e Rubens Gerchman. O plano de Hélio era que a Mangueira entrasse no museu tocando e sambando, interagindo com os trabalhos exibidos no salão. Mas direção do museu barrou a escola de samba, em episódio que, aos olhos de hoje, poderia ser lido como preconceito social e racismo.
Ao longo dos 56 anos que separam Opinião 65 do presente, o que sempre se esperou do MAM era que o museu finalmente abrisse as portas para uma obra produzida pelo carnaval (em 2007, a bateria da Mangueira se apresentou na abertura da exposição Tropicália, com curadoria de Carlos Basualdo, mas o museu jamais tinha exposto algo feito para os desfiles). Outros museus cariocas muito mais jovens fizeram isso em seus primeiros passos, caso do MAR, que realizou a mais profunda exposição brasileira sobre o legado do samba e da folia. Rio do samba: resistência e invenção, assinada por Clarissa Diniz, Marcelo Campos, Nei Lopes e Evandro Salles em 2018, é também, por tudo que reuniu e tudo o que significa, a mais importante mostra carioca das duas primeiras décadas do século XXI.
O MAM finalmente procura reparar sua história agora, promovendo o encontro entre uma exposição de Hélio Oiticica com a Ocupação criada por Leandro Vieira, carnavalesco da Mangueira, para um diálogo com a obra de Hélio. Leandro participa ainda com uma de suas obras mais fundamentais como artista, a bandeira verde-e-rosa com a inscrição “índios, negros e pobres” do desfile de 2019. O gesto da direção artística do museu, a cargo de Keyna Eleison e Pablo Lafuente, é louvável, e precisa ser transformado em algo perene. Mas é importante debater, com profundidade serena, algumas escolhas feitas pelas curadorias das mostras Hélio Oiticica – A dança na minha experiência e Leandro Vieira – Bandeira brasileira. É isso que pretendo fazer a seguir.
HO no MAM: uma experiência sem dança
A exposição em cartaz no MAM do Rio veio do Masp, sob curadoria de Adriano Pedrosa e Tomás Toledo. Pedrosa, um curador sensível e experiente, foi o responsável por um período importantíssimo do museu paulista em sua história recente. Na direção artística do Masp, realizou um plano curatorial com grandes mostras panorâmicas individuais e também projetos coletivos como “Histórias afro-atlânticas”. Co-curada pelo artista Ayrson Heráclito e pela antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, a mostra é sem dúvida um marco na história recente da curadoria brasileira. Toledo é o atual curador-geral do Masp. A dupla de curadores propõe uma exposição sobre Hélio Oiticica chamada “A dança como experiência”, em que pretende mapear a importância do movimento, e dos corpos que dançam, na trajetória do artista.
Em tempos de pandemia, não pude ver a mostra no Masp, mas visitei-a três vezes no MAM do Rio de Janeiro. Na terceira visita, fui alertada por um dos mediadores de que “as obras presentes na exposição não são interativas”. É uma exposição de Hélio Oiticica, sobre a dança como a experiência. E recebi esse alerta porque os Parangolés, obras fundamentais para a experiência da dança, repousam sobre cabides cenográficos, sem a possibilidade de ser animados pelos corpos; condenados, portanto, a uma não-existência, pois só se realizam plenamente no movimento e na performance no espaço. Sim, são tempos de contágio, e seria difícil compartilhar as réplicas com os usuários. Mas tanto o MAM quanto o Masp têm equipes curatoriais e educativas competentes, que poderiam pensar em alternativas efêmeras que proporcionassem a experiência plena dos trabalhos, além de exibi-los em movimento em vídeos, tanto históricos quanto em performances registradas especialmente para o projeto, realizadas em condições seguras. Fazem falta, ainda, penetráveis, pois o caminhar pelos labirintos-cidades propostos pelo artista também foi e é uma forma de dança.
Sem a dança e a interação, não há como haver a experiência proposta de início. Ainda assim, a exposição oferece aos visitantes outras lindas possibilidades de encontro com a obra de Hélio. Uma pesquisa minuciosa criou um completo núcleo de trabalhos em papel, onde estão os Metaesquemas e outras obras importantes. Ali, é particularmente emocionante ver, nos trabalhos restaurados e iluminados adequadamente, o processo de preparação do papel feito pelo artista. Hélio criava uma espécie de grade ou guia quase invisível, marcando o papel com a ponta-seca para gravura em metal e o auxílio de uma régua. As linhas paralelas o auxiliavam no desenho e pintura das formas geométricas em guache, e é lindo ver os momentos em que a guia foge ao controle e o movimento da mão gera linhas tortas ou faz pequenas curvas. É disso também que trata obra do artista, das formas e experiências que fogem dos espaços e tempos pré-determinados.
Outro ponto alto são os trabalhos de menor dimensão – bólides, caixas e relevos monocromáticos. A luz, assinada por Antonio Mendel, é mais uma vez um destaque, porque reitera, tanto nesses trabalhos em pequena escala, expostos em mesas, quanto nos Relevos espaciais, a frase que Hélio escreveu em Tropicália: “A pureza é um mito”. Iluminados, as peças monocromáticas revelam-se em muitos tons de amarelo ou alaranjado, fazendo com o que o olho dance um pouco nesse caleidoscópio quente. É uma pena que essa possibilidade de dança não se estenda, em especial em um museu carioca, pela obra de Hélio ligada à cidade e à Mangueira, já que foi a partir do morro onde se deu a radicalização da experiência da dança em seu trabalho.
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