Educação para adultos (2010), trabalho do alagoano Jonathas de Andrade, consiste em uma série de cartões produzida tendo como referência o método de alfabetização de Paulo Freire, o qual recorria a imagens e temas do cotidiano daqueles que se submeteriam ao processo formativo para, mais do que capacitá-los a ler e escrever, estimular a consciência sobre seus próprios contextos e, eventualmente, transformá-los. Lançando mão de um procedimento semelhante ao de Freire, Jonathas, a partir de reuniões e conversas com mulheres analfabetas, especialmente empregadas domésticas e lavadeiras, produziu novos cartões em que a relação entre imagem e texto diz muito sobre aquelas mulheres, sobre nós e sobre a linguagem.

Os cerca de 60 cartões produzidos pelo artista estabelecem relações conflituosas, pelo menos para certas perspectivas, entre imagem e texto. Em um deles, a palavra “rasgar” está acompanhada de uma fotografia de mãos partindo ao meio uma cédula de dez reais. Relação semelhante é verificada em outros cartões que trazem “colônia” junto à imagem de vidros coloridos de perfume, “acesso” e a fotografia de um muro no qual está inscrita a legenda do Partido dos Trabalhadores (PT) como propaganda política, e “perdido” acompanhada de uma bandeja com frutas apodrecidas. Aqui, palavra e imagem estabelecem relações de representação de diferentes tipos, ora parecem convergir, ora se contradizem. Sentidos são ampliados, questionados e redefinidos. Em diferentes contextos e para diferentes espectadores, o mesmo cartão pode tanto produzir humor como também pode ser tomado como banal e corriqueiro.
As tensões resultantes das aproximações entre palavra e imagem se devem, em boa medida, a questões de classe, gênero, raça e geografia que atravessam esses cartões e dizem respeito não só àqueles que os produziram, como também aos espectadores, ao outro e ao eu. Nesse caso, o problema da linguagem e da representação deve ser desdobrado e atravessado pela cultura, o que evidencia como essas instâncias não se relacionam de modo neutro, objetivo e transparente, mas sim em perspectiva.
Quando consideramos a tradição das artes visuais e da História da Arte, esse diagnóstico não é banal. Ao longo de séculos a relação entre texto e imagem, muitas vezes pensada hierarquicamente, foi debatida por artistas, poetas e pelos chamados eruditos, e é com essa longa tradição que o trabalho de Jonathas dialoga. Talvez o mais célebre desses debates se refira ao lema ut pictura poiesis (“como a pintura, é a poesia”) conhecido via o poeta romano Horácio (65 a.C. – 8 a.C.). Sua afirmação de que pintura e poesia eram a mesma coisa realizada através de meios diferentes – a pintura como “poesia muda” e a poesia como “pintura falada” –, mesmo questionada e reinterpretada ao longo dos séculos, contribuiu para estabelecer termos para um dos mitos genéticos mais fundamentais das artes: a arte enquanto representação e mímeses.
Tensões entre palavra e imagem rompem padrões acadêmicos classistas
Ao invés de apresentar um retrospecto histórico desse debate, quero apenas pontuar que essa relação entre imagem e texto foi expressa através de aspectos da pintura que compreendiam a linguagem em termos de composição – inclusive a perspectiva linear enquanto técnica de representação objetiva do “verdadeiro” – e de retórica. Essa lógica, com diferentes nuances, atravessa contextos distintos: seja enquanto decoro necessário para o reconhecimento de narrativas bíblicas, no caso de pinturas religiosas, ou de narrativas clássicas pagãs e alegorias; seja nos padrões acadêmicos de caráter classicizante, difundidos pelas Academias de arte europeias na medida em que disputavam politicamente o espaço público enquanto agentes legitimadores e definidores de critérios de “qualidade” e de “bom gosto”. Nesses contextos a relação entre imagem e texto, entre palavras e coisas – para empregar termos foucaultianos – estava condicionada, de diferentes modos, a balizamentos normatizados pelos ditos eruditos, os quais pretendiam estabelecer equivalências objetivas, transparentes, universais e naturais entre os mencionados termos. Dúvidas e ambiguidades causadoras de confusão sobre narrativas religiosas, pagãs, ou sobre o estatuto do belo não eram bem vindas pelos ditos “homens de letras”, diretriz nem sempre compartilhada pelos artistas.
A arte moderna da segunda metade do século XIX e das vanguardas europeias do início do XX deslocaram a discussão sobre a linguagem. Se antes tratava-se de representar algo tendo a retórica e a perspectiva renascentista como procedimentos fundamentais – sendo que esse último significava tanto certa concepção de espaço como também de um espectador ideal –, os modernos passaram a atuar a partir de uma concepção de pensamento plástico na qual cores e formas eram investigados enquanto elementos não necessariamente sujeitados à representação, mais precisamente, desvinculados da representação do espaço perspectivo geométrico. O texto passou a ter novos sentidos para poetas e pintores. Nas colagens de artistas associados ao cubismo, surrealismo e dadaísmo, palavras e letras eram investigadas não a partir de seus conteúdos referenciais, mas enquanto signos plásticos desvinculados de significado.
Voltando ao trabalho de Jonathas, as faíscas produzidas nas relações entre texto e imagem nos levam a repensar o que compreendemos por representação. Isso porque elas evidenciam que não é possível estabelecer hierarquias e simetrias entre texto e imagem – uma vez que ambos são independentes e irredutíveis um ao outro –, como também não é possível conceber o signo e o significado enquanto algo universal, neutro e natural, mas enquanto instâncias atravessadas pela cultura, pelas questões de classe, de gênero e raciais.
Para Stuart Hall, signo ‘subtraído de tensões sociais’ é alegoria
Essa dimensão do signo foi crucial para autores vinculados ao chamado pós-colonial, entre eles Stuart Hall (1932-2014), elaborarem sua argumentação. Citando Mikhail Bakhtin e Valentin Volochínov, Hall afirma que caso o signo seja pensado como tendo um significado fixado definitivamente, “subtraído às tensões da luta social”, ele degenera-se em alegoria e torna-se objeto de estudo de filólogos. De modo distinto, o signo é operado ideologicamente, a partir de disputas e jogos que, ao atribuir e contestar sentidos, exploram a polissemia de seus possíveis significados. Desse modo, Educação para adultos, ao evidenciar atravessamentos entre arte e cultura, âmbitos que muitas vezes tomamos como sinônimos, nos faz perceber a diferença entre eles. E essa diferença, assim como aquela entre texto e imagem, em parte produz o impacto do trabalho.
Essas operações fascinantes da linguagem – aqui é difícil conter o entusiasmo – constituem o trabalho de Jonathas. Os cartões que destacamos – “colônia”, “acesso” e “perdido” –, por exemplo, vinculam produtor(as) e espectador do trabalho por meio de uma série de tensões produzidas pelo modo como grupos sociais e culturais distintos, localizados historicamente, jogam e manejam signos de modos particulares. Desse modo, signo e seus suposto significado deslizam e são postos em trânsito, uma vez que nem produtor e nem espectador podem fixar uma correspondência única entre eles.

A relação entre imagem e texto, atravessada pela cultura e suas questões de classe, raça e gênero, atravessam, de distintos modos, outros trabalhos de Jonathas. Em 40 nego bom é 1 real (2013) imagens de homens trabalhando na produção de doce de banana – o “nego bom” – são acompanhadas da receita escrita do mencionado doce. O trabalho reflete sobre a precariedade do trabalho a qual alguns corpos, marcados racialmente e socioeconomicamente, estão condenados. ABC da cana (2014) consiste em um ensaio fotográfico no qual trabalhadores que atuam em uma usina açucareira constroem letras manejando, dobrando e encurvando canas em meio a um canavial. O insólito resultado parece nos alertar para a distância que ainda persiste entre esse contexto e a educação formal enquanto qualificadora de mão-de-obra e de sistemas produtivos menos precários.

Por fim, Eu, mestiço (2017, abaixo), parte de um estudo sobre raça e classe no Brasil, publicada pela Unesco em 1952, no qual retratos de negros, brancos e mestiços são associados a atributos de classe e morais. A perigosa perpetuação do racismo e de outros preconceitos originados da fixação de estereótipos foi representada por Jonathas em uma instalação na qual palavras referentes à mencionada publicação de 1952 – “negro”, “nordestino”, “violento”, “criminoso”, para citar algumas – compartilhavam o espaço com fotografias nas quais os modelos posavam, muitas vezes, de modo caricato e exagerado ao interpretar alguma emoção. Eu, mestiço ironiza e ridiculariza as certezas de racistas e preconceituosos que fixam imagens a valores morais.

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Referências de leitura
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
LIMA, Pedro Ernesto F. Imagens para um “falo” nordestino em Jonathas de Andrade. Anais do XXXVIII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte: Arte e Erotismo: prazer e transgressão na história da arte. Florianópolis: Comitê Brasileiro de História da Arte – CBHA, 2019. p. 916-928.
SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Regimes Representativos da Modernidade. Légua & meia: Revista de literatura e diversidade cultural. Feira de Santana: UEFS, n° 1, 2002, p. 20-34.
VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. A letra como imagem, a imagem da letra. Concepções contemporâneas da arte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p.46-67.
Autor
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Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.
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Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.