Este texto tem dois tempos, talvez tenha duas formas muito distintas de escrita. Ainda assim, tenta se comunicar conciliando impressões. Na parte 1, por ora curtinha, a vertigem ainda recente causada pela visão, ao vivo, da pintura Primeira missa (2014), que Luiz Zerbini apresenta na Casa Roberto Marinho, dentro da ótima exposição coletiva “Livros e arte”.
Ver este trabalho foi a oportunidade de reinvestir nas referências reunidas na individual do artista “Campo expandido”, apresentada no Oi Futuro Flamengo, que parecem estar ao mesmo tempo coaguladas e à deriva em Primeira missa. Mirar nesses horizontes tem o impacto de um grande caldo, e é provável que eu ainda não tenha chegado na areia, embora entenda que, boiando ou navegando, o importante é estar no mar.
Na parte 2, reúno bifurcações trilhadas a partir de Eu paisagem (1998), pintura sobra a qual me debrucei em minha dissertação de mestrado na EBA-UFRJ. Este é um texto-jardim, que sempre demanda o cuidado com poda e regas, mas de alguma maneira já está plantado e florescido em mim.
PARTE 1: Histórias náufragas
“Não esqueça que eu venho dos trópicos”, diz o título de uma das esculturas de Maria Martins. “Não esqueça que eu venho dos trópicos”, poderia a artista brasileira dizer para o companheiro Marcel Duchamp, buscando distinção e liberdade criativa fora dos rótulos. “Não esqueça que eu venho dos trópicos”, responderia Luiz Zerbini a quem eventualmente quisesse taxar sua pintura de surrealista, como fizeram com o trabalho de Maria, ignorando que, nos trópicos, o acúmulo de elementos, a luz estourada, o contraste cromático e a subversão de tempos são a nossa realidade, vêm da paisagem e da também da base barroca que nos constitui, passando ao largo da imaginação nonsense.
“Não esqueça que eu venho dos trópicos”, repeti para mim mesma inúmeras vezes, me olhando no espelho da pintura Primeira missa, exposta no salão refrigerado da Casa Roberto Marinho, no Cosme Velho. É isso que a obra nos esfrega na cara, despudoradamente, sem perder alguma ternura. “Não se esqueça que eu vim dos trópicos” – agora era a mulher indígena, pintada de urucum, quem me engolia junto a frase de Maria, antes de ser devorada pelo grande peixe. “Não esqueço”, digo, e repito um “não esqueça”, mirando olho no olho o navegador português, chapéu de cobra, um quase-bicho lascivo, ajoelhado enquanto invade e estupra. Na Primeira missa de Zerbini, ele é apenas mais um nessa história reinventada a partir do naufrágio da consciência desses trópicos. Tristes, às vezes; tristes, agora. Mas sempre luminosos.
Estar diante dessa pintura e ecoar o “Não esqueça que eu venho dos trópicos” acendeu o desejo de rever “Campo expandido”, exposição de Zerbini no Oi Futuro. Anoto aqui ideias para um texto em processo, mas acredito que o naufrágio evidente na Primeira missa – a areia da praia tomada por refugos do mar, por restos orgânicos vindos da paisagem – já contém, em 2014, os fundamentos do ambiente botânico, praiano e um tanto desolado montado pelo artista em “Campo expandido”, de 2020.
Com a exposição do Oi Futuro, Zerbini nos fala de um tempo passado-futuro, aquele que também ecoa na letra de Futuros amantes, de Chico Buarque. Ao montar um jardim na areia, em um dos andares do prédio, e fazer uma praia com suas pinturas, no térreo, Zerbini nos apresentou “vestígios de estranhas civilizações”. “Fragmentos de cartas, poemas, mentiras” traduzidos por refugos de imagem, que são regurgitadas pelo mar que as formou e as revirou e atracam em uma faixa de areia inabitada. Não há abelhas, embora exista a memória de um apicultor (salve, Cabelo). Não há palavras, viva alma, embora se mencione um “Manto de apresentação” (viva Bispo do Rosário).

Penso nos trópicos náufragos, na nossa condição mestiça, indeterminada e polissêmica revirada por Zerbini em Primeira missa, e lembro que o mar é uma constante em seu trabalho. A monumental A onda, também pintada em 2014, mesmo ano de Primeira missa, revisita de forma sombria e meio rock and roll o mar agitado, e pode ser vista como grande metáfora para a metalinguagem que Zerbini tem operado a partir da água salgada. O mar, berço de tudo que vive, está em inúmeros trabalhos, como Ilha da maré, e talvez apareça em sua obra como alusão à gênese das imagens. O mar revolto e pixelado de A onda e a praia depois do naufrágio de Primeira missa, englobando todo o “Campo expandido”, nos lembram que a arte, hoje, tem a tarefa de criar a partir dos despojos – imagéticos e civilizatórios.
A não ser pelas plantas, testemunhas vindas de um além, não há seres vivos na praia depois do dilúvio de “Campo expandido”. Mas havia imagens, a das pinturas, gravuras e objetos de Zerbini espalhados pelo centro cultural, sobreviventes de um possível Apocalipse. Na praia habitada por esses fantasmas de imagens, também percorríamos o espaço invadidos pela luz vinda dos vitrais contemporâneos instalados por Zerbini nas grandes janelas e claraboias da Oi. Retângulos de cor que transformam cada janela em muitas outras; retângulos de cor que lembram as interferências com que o artista reincidentemente recobre suas pinturas – eles aparecem em A onda, por exemplo. Retângulos de cor que insinuam que a imagem pode estar passando, em movimento e em transmissão, e pode sofrer interferências nesse processo de veiculação. Imagem ainda mais viva porque é cheia de ruídos. Praia não tão deserta porque se abrindo para essas janelas.
Volto para a outra beira. “Não se esqueça que eu vim dos trópicos” – encaro novamente o navegador português. Penso nos desencantos, penso nos tiranos de agora. “Não se esqueça que eu vim dos trópicos”, respondo finalmente à mulher indígena; e me dou conta que ela sou eu; ela é o artista. E só aí tenho a certeza de que sobreviveremos, todos: ela, ele, eu, o peixe. Zerbini nos ensina que os trópicos são a nossa sina e nossa capacidade de subvertê-la.
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PARTE 2: A menina-planta e o quintal dos afetos

Eu paisagem foi pintada por Luiz Zerbini em 1998. Para mim, nenhum outro trabalho sintetizou de maneira tão clara e sucinta sua obra até esse fim dos anos 1990. Na tela, o artista faz um amálgama de três pilares da pintura: o retrato, a paisagem e a natureza morta. Em Eu paisagem, três figuras humanas se misturam à farta vegetação de um quintal ou terraço. Uma delas, no canto superior direito, parece mesmo um dos muitos autorretratos de Zerbini, mas talvez as outras duas figuras – mesmo que pensadas a partir do corpo de alguém de seu cotidiano – sejam também um espelho para o artista. “O amor”, título de exposição recente no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, é também sua paisagem. O que parece mais importante neste trabalho é como o artista demostra, de forma bastante sofisticada, que “para pintar uma planta, você tem que se transformar em uma planta”. Em seu trabalho, tudo pode se metamorfosear – e aí se enriquecer: retrato se transforma em natureza-morta; natureza-morta ganha vida em jardim; paisagem vira afeto; amores viram retratos.
Em Eu paisagem, o homem usando capacete de motoqueiro é um elemento nonsense, que perturba o ambiente “natural” desse jardim. Mas há, nas outras duas figuras da pintura, um enfeixamento de referências muito característico da obra do artista. A figura do meio, de cuja boca brotam plantas, poderia ser a ex-mulher e grande amiga Regina Casé, retratada inúmeras vezes por Zerbini, ou mesmo ele próprio, embora tingido com “a cor terra alaranjada que Gauguin emprestava a seus homens e mulheres”, como bem assinalou Agnaldo Farias. Gauguin, aliás, foi outro pintor que soube se mimetizar ao ambiente pintado, mesclando relações afetivas com a percepção sensorial do mundo. A identificação de quem está na tela não é relevante, nesse caso. Mais interessante é como esta figura terrosa consegue conjugar o assombro das narrativas literárias do realismo mágico com o mundo onírico, estourado um tanto delirante da arte figurativa latino-americana (de Tarsila a Frida, sem precisar ser surrealista para falar dos trópicos), Esse legado é atravessado por muitos ruídos, tanto no plano conceitual quanto no visual, formando uma mistura com referências musicais, cinematográficas e televisivas, que o próprio Zerbini chamou de “Transpicália”. Ele me parece uma chave mais-que-perfeita para um entendimento de seu trabalho, que de fato atravessa e é atravessado pelos tropical e pela Tropicália, mas mas com que essas referências chacoalhem – ora pela golfada mais definitiva dos naufrágios e marés, como em A primeira missa e A onda, ora por perturbações que vêm de pixels, retículas ou ondas gráficas que parecem emular a grande importância que a música e a arte sonora têm na trajetória do artista, um integrante do grupo Chelpa Ferro.
Além do homem de capacete e da figura terrosa deitada, há um terceiro elemento em Eu paisagem. Este ser tem corpo vegetal, cabeça de bromélia, braços humanos, porte de criança. Na mesa à sua frente, praticamente um balcão de alquimista, potes para preparar misturas, realizar transmutações, quem sabe transformar pedra em ouro. Essa figura plasma, de maneira alegórica, toda a força dessa obra polissêmica e ruidosa, e também a noção de sampler que a atravessa o tempo inteiro. De costas para quem observa a pintura e de frente para as outras figuras – na hipótese, é claro, de todas habitarem o mesmo tempo – essa pessoa planta poderia ser um MC ou um DJ, mixando sons em suas carrepetas, com o objetivo de fazer o olho dançar. O som poderia vir de um poema do próprio Zerbini:
Minha música a pintura – a pintura
A única que ainda me atura
Ambas já mortas
A esta altura.

É interessante observar ainda a composição vertiginosa de Eu paisagem, que ganha profundidade com diagonais e linhas paralelas, e também no simbolismo que há nas piscinas ou fontes presentes nesse jardim (a água sempre presente, como no autorretrato A ilha em que o artista praticamente se funde à paisagem através do olhar, coberto por óculos espelhados). Há muita água presente nas pinturas da geração de Zerbini, tanto na pintura de artistas como Leonilson, Leda Catunda, Suzana Queiroga, Cristina Canale quanto nas esculturas náufragas e jurássicas de Angelo Venosa. Em termos de história da imagem, o caminho da água pode ser também o da subjetividade abraçada por esse grupo de artistas que reivindicou de novo para si o contato afetivo com a imagem (e não exatamente com a pintura). Mas isso já é outra história, percorre outras anotações.
De volta a Eu paisagem, a figura de costas, tão forte na história da pintura através da obra de artistas como Caspar David Friedrich, aparece em outros momentos na obra de Zerbini, significando o que Richard Wollheim chamou de “espectador dentro do quadro”. Uma figura, defende o autor, que aparece na tela também para nos dizer que a está observando detalhes da cena que nós, espectadores, não podemos alcançar. A menina-planta-alquimista de costas para nós é então uma maestrina e uma testemunha, e aponta para trabalhos iniciais de Zerbini como a obra sem título de 1978 em que, numa paisagem noturna, vemos o Estádio do Pacaembu. Um caminhão amarelo está descendo a ladeira, enquanto dois vira-latas perambulam pela rua quase deserta. Um deles nitidamente olha para o vale, como – presume-se – deve fazer o motorista do caminhão.

O “espectador dentro do quadro” aparece ainda em Alfama (1989), em que um cachorro parece olhar para alguém que olha a paisagem, e em Pop party (1990). Nesta, as filhas de santo e sua jarras de prata, que acompanham uma procissão – provavelmente em Salvador – ampliam nossa visão a respeito da paisagem que emos ao fundo (e que elas, ficcionalmente, enxergam ainda melhor do que nós): a dos barcos de pesca, enfeitados para essa “pop party”, festa popular.
Há inúmeros outros exemplos desse recurso na trajtória de Zerbini, mas duas pinturas extraordinárias a ponto de serem antológicas também merecem menção. São elas Os embaixadores do Oriente no Brasil (1989) e O Hamlet contemporâneo não segura a caveirinha não. Na primeira, Zerbini se refere à pintura Os embaixadores (1553), de Holbein, e Retrato de Paul Leclercq (1897), de Taulouse-Lautrec. Da mixagem e atualização desses dois trabalhos aparecem dois interesses de Zerbini: o primeiro pelo acúmulo de objetos e referências que formam uma espécie de gabinete de curiosidades na mesa do ambiente – e lembra a mesa que o artista montou em sua exposição “Amor” ou mesmo o manejo de espécies vegetais em “Campo expandido”. O outro é novamente o nosso personagem-testemunha, que aparece através do homem de casaco vermelho. Essa figura olha pela janela e descortina a paisagem que não é vista pelos outros embaixadores.

Diante de uma mesa de vidro que espelha todo o ambiente ao redor, eles não se olham e não olham para o mundo que está do lado de fora, nem para o globo terrestre, herança da tela de Holbein, que aparece sobre a mesa. O que parece estar em jogo, aqui é a conversa entre a janela e o espelho que vem da mesa – dois elementos recorrentes na obra de Zerbini e, não por acaso, dois ícones para que pensemos um vocabulário para a história da pintura no Ocidente.
Em O Hamlet contemporâneo não segura a caveirinha não (1994), a importância da janela se intensifica. Com mais de seis metros de largura, essa pintura tem um espectador-personagem-narrador que é um autorretrato do pintor, que aparece na janela do apartamento, olhando para a paisagem de amendoeiras típica do Rio de Janeiro. Assim como aconteceu com Os embaixadores, e viria a acontecer mais tarde com Eu paisagem, há uma figura da pintura descolada da cena principal, se é que podemos chamar assim, mostrando que há outros mundos possíveis além de um primeiro plano frontal.

Em O Hamlet, há três janelas: a central mostra um ensaio/leitura de teatro, roda de conversa na qual se vê o compositor Fausto Fawcett, o antropólogo Hermano Vianna e o filósofo Roberto Machado, três grandes amigos de Zerbini e de Regina Casé. A atriz, aliás, é a protagonista da segunda janela, talvez um vão envidraçado que abrigaria um ar condicionado, através do qual o perfil de Regina convive com a padronagem de azulejos do edifício. Na terceira janela está Zerbini, olhando para uma paisagem. Apenas uma dentre as tantas que essa pintura sugere. Todas elas permeadas pelo horizonte afetivo que marca a trajetória do artista, e que não se refere apenas às pessoas queridas e referências artísticas que ele cita.
O afeto, em Zerbini, banha todas as coisas, revive sementes esquecidas, imagens trazidas de outros tempos. O afeto, em Zerbini, é pela própria pintura, que nos revela náufragos, mas também nos oferece a tábua para chegar à praia.
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O olho nas ruas e espaços culturais do Rio e de São Paulo, sempre clicando e filmando cenas e eventos com rara sensibilidade para as redes sociais da revista.
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