Os estudos curatoriais são práxis da contemporaneidade, bem como os entendimentos de suas diversas camadas, e as pessoas sujeitas envolvidas que operam nas dinâmicas e processos deste campo. Em artigo para o Itaú Cultural, Diane Lima tensiona: “Quem cura, cura o quê? Como são delegadas as vozes, como são geridas as relações de poder (…)?”¹
A prática de uma crítica ampla, curatorial, de escrita mobiliza chancelas. E é por esta compreensão-intermédio que dedico esta escrita, que se pretende estabelecer provocações às organizações e incidências de presenças de corpos e artistas dissidentes no circuito da arte. Uma análise que se arqueia a partir das linguagens artísticas e – reflete suas biografias e insumos poéticos, como dispositivos de configuração de acidentes, que interfiram nos mecanismos de invisibilidade, e possibilitem diálogos com as mais variadas instituições propositoras de lapsos. Conduzir assim, estratégias para suscitar espaços de (re)operações narrativo-visuais – dilatar encontros, partilhas e a convivência plural destas interseções diante das perturbações do sistema e seus agentes.
(…) Potência do corpo que consiste em ser vulnerável ao outro como uma presença viva, como um campo de força que me afeta, que produz efeitos, e que cria uma espécie de espaço de alteridade em mim a partir do qual, se eu tiver essa possibilidade, vou me reinventar, me sentir exigida a uma reinvenção. (Rolnik, 2013)
Eixo e centro em xeque
Em diálogo com a provocação de Rolnik, angulo o olhar para o trabalho Anuncio futuro (imagem do cabeçalho), de Guilhermina Augusti, que desembrulha esse texto. Este entrecruzamento mobiliza encantamentos para as pesquisas e práticas, que apontam para uma relação especial, de afeto, conexão, prazer e aprendizado entre poéticas, histórias, pessoas e estruturas.

O trabalho coloca em jogo, eixo e centro – para assim propor implosões para um ecossistema doente, que nos contornos dos discursos mais enviesados e políticos, reproduzem repetições excludentes e coloniais. A pintura se coloca a anunciar um futuro que reivindica, pela sua plasticidade e poder narrativo outros arranjos, possibilidades de diálogos e presenças outras no campo artístico.
Atualmente “curo” e sou curado pela exposição “PRESENÇA” (Clique aqui para a visita virtual) na qual a artista supracitada a compõe, em costura com outras onze pessoas artistas discutindo o conceito-nome da mostra. Guilhermina dissemina implicações e profundidades no âmbito das palavras como matéria e desdobramento de seus trabalhos, nas quais nos arrebatam e escancaram contundentemente as negociações veladas dos terrenos das artes.
“eu não sou matéria, sou que nem você.
eu assim como você não existo neste mundo.
aliás se eu existisse não estaria reivindicando vida.
eu não estou aqui.
se fosse, seria percebida nas importâncias diante dessa sociedade.
então como não sou, e não estou.
só posso ser uma coisa.
então somos ilusões.
não venho até você como matéria, mas como ilusão.
porque é isso que travestis negras são.
ilusão”.
Guilhermina Augusti
Não proponho aqui uma fala pela artista, entretanto FALAR COM a mesma, dividir as inquietações e reclamações, compreendidas nestas palavras em disputa que demarcam os limites em trânsito das linguagens e suas eminências diante das estruturas legitimadoras, permeadas pelas políticas de ausência e esquecimento – e assim, provocar infiltrações e incêndios através de obras-manifestos como esta – que emanam estesia: modos de sentir, no campo do sensível, como fratura para as envergaduras arqueológicas do campo da arte, que interditam numerosas existências e tudo o que elas trazem consigo.
Pensar PRESENÇA no âmbito artístico transcende a ideia de ocupação ou mera aparição em um determinado espaço, mas encaminha a perspectiva de que precisamos estar atentos e atentas aos contornos, estreitamentos e sentidos, como o grupo de estudos corpos informáticos aponta: “sentir, apreender, surpreender, somar, errar, farejar podem ser atitudes constitutivas do questionamento” (GPCI, 2011: p. 18).³
O presente precisa estabelecer espaços questionadores, conciliações das intersubjetividades, suas mitologias e heranças, fundamentando estética, ética e as relevâncias, construções que elucidam rupturas, quando conformam e consolidam essas presenças – seja nas ruas, terreiros, museus, galerias, ou mesmo na internet, nas zonas autônomas, nos espaços independentes entre outras realidades e ficções.
+++
Agradeço imenso à Guilhermina e tantas outras, as quais a linguagem se coloca como infiltração e resposta aos dilemas curatoriais.
¹ LIMA, Diane. Diálogos Ausentes e a Curadoria como Ferramenta de Invisibilização das Práticas Artísticas Contemporâneas Afro-Brasileiras. Disponível em encurtador: com.br/uEGS3. Acesso em 06/04/2021.
² ROLNIK, Suely. O Retorno do Corpo-que-sabe. Conferência realizada no 8º Encontro de Performance e Político do Instituto Hemisférico. Disponível em: http://archive.hemisphericinstitute.org/hemi/pt/enc13-keynote-lectures/item/2085-enc13-keynote-rolni. Acesso: 07/04/2021, às 14:24.
³ GRUPO DE ESTUDOS CORPOS INFORMÁTICOS. Corpos Informáticos – Performance, Corpo e Política – Mar(ia-sem-ver)gonha. Brasília: 2011.
Autor
-
Curador, mestre em Artes pela Uerj e doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC. É pesquisador no Museu de Arte do Rio, curador do programa de residências do Museu de Arte Moderna do Rio e ex-curador do Galpão Bela Maré, onde ainda atua como colaborador.
Relacionado
Curador, mestre em Artes pela Uerj e doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC. É pesquisador no Museu de Arte do Rio, curador do programa de residências do Museu de Arte Moderna do Rio e ex-curador do Galpão Bela Maré, onde ainda atua como colaborador.