Os objetos, naturezas mortas, estão presentes na história da pintura há muito tempo. Buscar respostas pictóricas a partir destes objetos é estar de frente ao silêncio que emanam. Uma xícara vazia, que antes satisfazia a vontade de um café, derrete-se em cores das mais diversas. A observação direta destes objetos, permite que as transições de cores sejam percebidas de forma diferente da fotografia, por exemplo. As luzes naturais que atravessam a janela os tocam e deixam resquícios na minha paleta, onde cada vez mais aglomera-se mais tinta. Aglomerar, que por sinal já não é mais possível há um bom tempo, o período de isolamento levou-me aos objetos mais simples, presentes na casa de maneira singular. Atento a cada canto e a cada um deles
Matheus Guilherme Oliveira
Em seu seminário sobre a ética da psicanálise (1959/60), J. Lacan diz que experimentamos o mundo como um crivo, o que significa dizer que fazemos escolhas diante da grande oferta no campo das percepções. Essas escolhas indicam uma subjetivação profunda em relação à experiência de mundo, no sentido de que a realidade seria como uma construção viva, uma espécie de colagem montada e remontada com os pedaços que escolhemos recolher. Na formulação de Lacan: “o homem lida com peças escolhidas da realidade”.
Que objetos o artista escolhe para construir a sua realidade? A prova de realidade, diz Lacan, não seria encontrar um objeto no mundo que corresponda à sua representação mental, mas encontrar algo ao ponto de convencer-se da força de sua presença. Esse objeto, que se trata de encontrar, jamais seria tomado por inteiro, ainda que nesta busca possa se instaurar um percurso a partir do qual seja possível encontrar-se com alguma outra coisa, algo melhor ou pior, mas algo que possa servir em seu lugar. Lacan estaria se referindo àquilo que S.Freud chamou por Das Ding – traduzido como A Coisa: aquilo que proporcionou ao sujeito uma satisfação plena que nunca existiu propriamente, mas que guarda-se como saudade. Durante essa busca pela satisfação plena, o sujeito encontra uma série de satisfações vinculadas ao jogo entre aproximação e distância de Das Ding, através da trilha deixada para trás como “coordenadas de prazer”.
Se essa Coisa se faz objeto, uma maçã ou uma xícara, por exemplo, sabemos através do ensino de J. Lacan que este objeto teria sempre um sentido imaginário. O que significaria dizer que sua aparência apontaria para uma espécie de engano, trompe-l’oeil na linguagem dos artistas – na medida em que sua aparição estaria sujeita a uma decepção que mantivesse viva Das Ding enquanto coordenada de um inapreensível. Contudo, para além do distintivo imaginário do objeto, há também um lado real. Foi assim que, poucos anos depois (seminário, livro 10, 1962), Lacan formularia o objeto a, que seria o que causa o desejo justamente no seu aspecto de resto, de coisa decaída, sem forma, capaz de trazer o real de uma maneira que Lacan não pensava ser possível quando ele trabalhou Das Ding freudiana anos antes.

Quantas maçãs Cézanne pintou?
Olhamos atentos para uma determinada natureza-morta de Cézanne. Se assumimos que os biscoitos teriam valor de pura identificação, por terem sido colocados no canto da imagem para destacar o grande volume das maçãs, estas, por sua vez, aparecem como se dominassem a cena, com os reflexos, sombras e os contrastes multicoloridos de suas peles. J.Lacan diz que quando Cézanne as pinta, “ele faz algo bem diferente de imitar maçãs”.
Reconhecemos, com Lacan, um mistério nas maçãs de Cézanne, uma vez que nestes objetos pintados renova-se algo da relação com o objeto. Lacan diz que trata-se da “presentificação do objeto” e, ressalva, “quanto mais o objeto é presentificado, mais o efeito de ilusão se quebra revelando outra coisa: sua presença como real”. Este real que o analista e o pintor se interessam é o próprio caos, a pura desordem, e a realidade humana e suas escolhas tentam dar algum sentido a isso. O trabalho do simbólico seria nomear e organizar, através de um aparato de representações, o inacessível do real.
O que levou Lacan a dizer que a maçã pintada por Cézanne seria mais real que a própria maçã? Por que a pintura é mais maçã que a maçã da feira, se a maçã na mão tem volume, textura, gosto, cheiro, pode ser sentida na mão, na boca, sentida enquanto matéria sendo degustada, deglutida, passando pela garganta e experimentada no corpo?
A primeira resposta que nos ocorre, seria a partir de uma formulação do psicanalista Marcus André Vieira sobre o amor: “antes do amor viria a carta de amor”. Se não houvesse a carta ou a declaração de amor, o amor seria impossível, puro caos e desordem. Entendemos com esta frase de Vieira que o amor, sem a possibilidade de uma carta que o circunscreva, seria apenas uma experiência desamarrada do simbólico e, portanto, sem qualquer poesia. Dito isso, a maçã sem a pintura seria uma experiência sensorial sem qualificação, sem nome, sem maçã.
Outra reposta possível seria a partir da ideia de que nem sempre a maçã é tão maçã. Não no sentido imaginário somente, daquilo que se espera de uma maçã, mas no que se refere ao processo de construção da imagem da maçã, onde adquiri-se um conjunto recheado daquilo que na maçã escapa, mas que a imagem fixa (e transmite). Diríamos que esse seria algo do real e, se assumirmos essa ideia como uma premissa, a maçã mordida poderia ser menos maçã que a maçã pintada, ainda que eventualmente. O que nos interessa extrair do ensino de Lacan é que a pintura de Cézanne traria aquilo da maçã que é mais maçã no sentido de que traz um pouco dessa experiência viva de degustar a maçã e faz algo além, uma coisa a mais. Essa, ainda mais importante: não é que a maçã da pintura será sempre mais maçã que a maçã da feira e sim que ela pode trazer aquilo na maçã que é mais maçã enquanto real.
- Lacan usou a maça pintada por Cézanne porque A Coisa, ele diz, só se apresenta assim, estetizada, sublimada, neste “milagre operado pela arte”. Ela não se apresenta de outro jeito, senão como pura desordem, puro caos. As xícaras pintadas por M.G. Oliveira, assim como as plantas e todos os objetos simples do cotidiano deste pintor, que visualmente se ofereciam ao seu olhar, nos servem como as maçãs de Cézanne serviram a Lacan. O véu da tinta pôde fixar a clausura e a solidão do isolamento social imposto pela pandemia, isso que não seria possível apreender sem se horrorizar. A repetição de uma casa e seus objetos, a proporção insuportável da mesma xícara, o peso desta sobre a mesa do café, que se repete, dia após dia. A pintura do par de xícaras, que antes passavam desapercebidas sobre a mesa, fixaria um real, e isto, somente seria possível pelo efeito de um conceito freudiano, ainda inacabado, chamado sublimação: quando o objeto aparece no lugar da Coisa, levando Lacan a dizer em 1968/69 que este seria “o mérito essencial de tudo que chamamos obra de arte”.