Uma das principais operações da arte, desde os mais antigos registros existentes, é conferir formas de presença ao ausente ou ao invisível: o mundo espiritual, as cenas da história, as imagens do inconsciente ou tudo o que há de mais subjetivo na experiência humana. A série Samba exaltação, do artista Felippe Moraes, parte desse princípio para recuperar o carnaval suspenso em 2021 devido à pandemia de Covid-19. Do período do carnaval até o domingo de Páscoa, quem percorreu a região do Viaduto Santa Efigênia, em São Paulo, pôde observar letreiros neon que enunciavam versos de canções brasileiras, instalados na janela do apartamento do artista no do Mirante do Vale, o edifício mais alto da cidade.

Samba exaltação adquire forma tomando emprestado trechos de obras musicais que de alguma maneira se conectam ao espírito do carnaval e, paradoxalmente, também aos tempos sombrios atuais. A inauguração aconteceu na noite de 12 de fevereiro, sexta-feira de carnaval, com Agoniza mas não morre (que está em nossa imagem de destaque em registro fotográfico de Gabriel Cabral), uma das mais ilustres canções compostas por Nelson Sargento. A letra, eternizada pela voz de Beth Carvalho em 1978 (no aclamado disco De pé no chão), quando ainda estávamos sob uma ditadura, celebra a sobrevivência do samba a diferentes tipos de repressão e à invasão de influências culturais estrangeiras. Transportado para os dias atuais, o verso que abre e que intitula a canção parece tratar da nossa sobrevivência, assim como a da arte e a da cultura, em meio a uma das maiores crises sanitárias e políticas de nossa história. O vermelho que pulsa de dentro para fora das letras, irradiando a arquitetura e promovendo uma microinterferência na paisagem, almeja anunciar que o samba e o carnaval não morrem, apesar de todos os entraves.
Janela aberta para experiência além do virtual
A sobrevivência da arte e a necessidade de ainda habitar poeticamente o mundo – ou nossa esfera doméstica – se afirmam não apenas na escolha da canção que abre o projeto de Moraes, como também na forma como ele o executa. O tensionamento entre público e privado que acontece na transformação da janela de seu apartamento em espaço expositivo, em um período de isolamento social e de fechamento de instituições de arte, é uma inteligente e coerente solução do artista para não cair na pura virtualidade – ainda que os ambientes digitais tenham desempenhado um importante papel na visibilidade de sua ação, para além do público que pôde testemunhá-la fisicamente na paisagem de São Paulo. A singularidade do trabalho de Moraes está, entre outros fatores, nessa capacidade de se apoiar na reprodutibilidade de imagens sem abrir mão da experiência fenomenológica do espaço.
Este slideshow necessita de JavaScript.
Uma pausa de mil compassos, trecho da canção Para ver as meninas, de Paulinho da Viola, marca a segunda parte do projeto Samba Exaltação, concomitante com a quaresma. O período do ano litúrgico que antecede a Páscoa Cristã (com paralelos em várias outras cosmogonias do planeta) caracteriza-se como um tempo de preparo, interioridade e reflexão. A pausa de mil compassos, a qual se refere Paulinho da Viola, adquire novos significados: evoca o silêncio das ruas durante o carnaval que não pôde ser celebrado, ou a “tenebrosa quaresma coletiva” que estamos vivendo, segundo as palavras de Felippe Moraes no texto que acompanha um registro do trabalho em sua página no Instagram.
Jogos com o neón criam diversas interpretações semânticas
A terceira parte, E viver será só festejar, cruza o trabalho com o universo do axé, movimento musical baiano conectado ao carnaval e, historicamente, à retomada das ruas após o fim da ditadura militar. Como já afirmei em outro texto (leia clicando aqui), o axé é mais do que um movimento musical. É também um movimento performático, de afirmação de identidades, baianidades, africanidades, liberdades e ocupação lúdica dos espaços públicos O verso final da canção composta por Evandro Rodrigues, Baianidade Nagô, recebe um tratamento diferente das outras músicas que compõem a série: a última palavra, “festejar”, pisca, permanecendo apagada por alguns instantes. Dessa maneira, outra possível leitura é produzida: “E viver será só”. A interferência incorpora uma dose de melancolia a uma das mais contagiantes canções sobre o carnaval baiano, expressando as angústias, solidões e incompletudes do momento atual. Mas quando o verso em neon acende totalmente, prevalece a força da festa e a certeza de que o carnaval irá voltar. De que esta pausa de mil compassos será quebrada pelo negro toque do agogô.
Este slideshow necessita de JavaScript.
O lampejo de esperança é amplificado no ato final do trabalho, Quero viver no carnaval, onde Moraes pede licença aos compositores Luiz Antônio e Eurico Campos para alterar a letra de Quero morrer no carnaval, conhecida pelas interpretações de Linda Batista e de Elza Soares na década de 1960. O verso em neon, inaugurado no momento em que o Brasil atingiu a marca de 300 mil mortos por Covid-19, é um grito pelo presente e pelo futuro. Afirma o desejo pela vida e a vontade de festejar os próximos carnavais. A palavra “viver”, em luz branca, destaca-se das demais, em cor vermelha, não por acaso ou por mero capricho. Se a morte é mencionada no letreiro de inauguração – Agoniza mas não morre – é porque do luto e da melancolia são extraídas as forças e insistências para exaltar a vida, o samba, o carnaval, a rua, e tudo o que alimenta nossa condição humana. Tudo o que representa um Brasil oposto àquele dos genocídios, dos epistemicídos, do silenciamento de batuques, das ruas desencantadas – como diria Luiz Antônio Simas. Não poderia haver algo mais significativo do que Samba Exaltação encerrar em um domingo de Páscoa, deixando a mensagem de que o carnaval renascerá das cinzas desta longa quarta-feira.

“Quero m̶o̶r̶r̶e̶r̶ viver no carnaval”, da série “Samba exaltação”. Registro fotográfico de Gianluca Misiti
Autor
-
Mestre em Artes Visuais (História e Crítica de Arte) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. Doutorando do mesmo programa.
Relacionado
Mestre em Artes Visuais (História e Crítica de Arte) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. Doutorando do mesmo programa.