Objetos acumulados desde os anos 1980 continuam sendo os insumos de parte do trabalho de Jac Leirner: maços de cigarro, cédulas de cruzeiro, sacolas plásticas, cartões de visita, objetos furtados de interiores de aviões, entre outros. De modo compulsivo e exaustivo, a artista lança mão de um procedimento repetitivo que compreende acúmulo, classificação – a partir de algum critério arbitrário – e exposição desses objetos banais. Gostaria de chamar a atenção para o procedimento de acúmulo nesses trabalhos, especialmente em Os cem, série iniciada em 1986 e realizada com cédulas de cruzeiro, moeda que viu seu valor se deteriorar rapidamente, resultado da hiperinflação que assolava o país na segunda metade dos anos 1980, em parte provocada pelo acúmulo de erros produzidos pela gestão econômica dos governos ditatoriais do nosso regime militar.

A partir de uma grande quantidade de cédulas, Jac produziu obras escultóricas e painéis que tinham como premissa classificatória critérios diversos, muitos deles reveladores de como a população lidava com a perda do valor do dinheiro naquele momento. Era comum que pessoas fizessem nas cédulas intervenções gráficas como rabiscos e escritos – esotéricos, religiosos, eróticos, protestos políticos –, e customizações nas efígies de Duque de Caxias, adicionando acessórios, bigodes, barba ou transformando-o em personagens como o diabo.

Além da inflação, esses trabalhos podem ser compreendidos como traduções de conceitos como valor, fetiche e moeda. O modo como um grande volume de cédulas é retirado de circulação pela artista e desviado para suas obras, assim como as interferências gráficas feitas por anônimos, testemunham o colapso de um sistema que ao aumentar a quantidade de elementos disponíveis, por isso perde valor, expondo a artificialidade do dinheiro enquanto uma convenção.
‘A adição como perda’, defende Herkenhoff ao analisar obra da artista
Esse paradoxo do acúmulo em Jac foi expresso por Paulo Herkenhoff da seguinte maneira, em texto para catálogo de exposição publicado em 1993: “a adição como perda, o excesso como falta, a acumulação como sumiço”. Esses paradoxos perturbam concepções de mundo fundadas na matematização e na racionalização, tão valorizadas no nosso contexto de capitalismo financeirizado. Nele, segundo Franco Berardi (leia resenha sobre último livro do autor publicada pela Caju, aqui), as relações conectivas se dão a partir de trocas moldadas pela automatização e pela funcionalidade, nas quais ambiguidades, excessos e ironias devem ser eliminados. A eliminação de subjetividades e de corpos é catalisada pelos algoritmos que visam dar eficiência às trocas, eliminando o gasto com o chamado tempo “inútil” e nos redimindo da condição de “incompetentes”.
Livres das ambiguidades, do excesso e do “inútil”, poderíamos usar nosso tempo para, em nossa dimensão precária, buscar salários e reconhecimento em meio à competição social. Esse seria o maior dano causado pelo capitalismo financeirizado, a automatização da linguagem e a repressão da sensibilidade, os quais reduzem nossas possibilidades de experiência e de imaginação de mundos e futuros possíveis, o que nos arrastaria para a asfixia, o pânico e a depressão.
Diante desse cenário, ainda segundo Berardi, a poesia é fundamental para fazer frente à automatização da linguagem e à formatação de nossa sensibilidade. Isso porque a arte diz respeito ao excesso, já que emancipa a linguagem da função meramente referencial. Para conclamar à emancipação frente às limitações do capitalismo financeirizado, Berardi propõe o “calote semiótico”, uma operação feita pela linguagem para contornar a “culpa” da dívida que o mundo matematizado nos impõe.
Manejo das noções de peso e medida como processo de ironia e dúvida
Jac lança mão da ironia para, a partir de signos relacionados à economia e ao universo matemático dos pesos e das medidas, subverter a suficiência e a racionalidade desses índices de precisão e objetividade. Seu processo exaustivo de destilação de cédulas, sacolas plásticas, cartões de visitas e outros objetos banais – seus insumos iniciais – desdobra-se em séries que atravessam as décadas e, ao invés de buscarem a eficiência e o mínimo comum, perseguem a insuficiência, a subtração e a falta no excesso.

A linguagem e os procedimentos se repetem, mas nunca são suficientes. A artista insiste neles, sempre lançando mão do acúmulo, classificação e exposição, produzindo formas lineares, empilhadas e sequenciadas que dão a ver gradações diversas, de cores, tamanhos e formatos. Não nos enganemos com as semelhanças formais desses trabalhos com o minimalismo. Jac dá amplitude para os signos da cultura de massa, da economia, das instituições do mercado da arte, das convenções de medição, distorcendo-os e amplificando-os. A referencialidade é fundamental em suas obras.
Esse excesso não nos fadiga, não tira nosso ar. Diferentemente, nos impulsiona para um ritmo que nos leva a perceber aquilo que o uso banal e corriqueiro desses objetos – e seus respetivos valores – não nos permitiria. A artista produz “significação” a partir do excesso do banal. E é a “significação” que, para Berardi, nos livra do desterro, do vazio e da decomposição do próprio corpo diante da falta de sentido, ocasionados pelo fim da sensibilidade e pela automatização da linguagem que a eficiência dos algoritmos do capitalismo financeiro quer nos impor. A adição pode subtrair, o cotidiano nem sempre é banal. O corpus delicti de Jac vem provar nossas dúvidas.

Referências
BERARDI, Franco. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurgência da linguagem. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
LIMA, Pedro Ernesto Freitas. Disfarce de intenções: exposição e ocultação em Jac Leirner. Orientador: Emerson Dionisio Gomes de Oliveira. 2016. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Brasília, 2016.
HERKENHOFF, Paulo. Jac Leirner [catálogo de exposição]. São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1993.
Autor
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Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.
Relacionado
Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.