Hoje convido os leitores a se teletransportarem para 1994. Foi o ano do Plano Real, do Tetracampeonato do Brasil no futebol e o início do apogeu de Rosa Magalhães à frente da Imperatriz Leopoldinense. Foi um ano, ainda, da afirmação de uma linguagem baiana no marketing das principais empresas que patrocinavam a transmissão da folia, o que parece ter causado infiltrações nos desfiles do Rio.
Como tenho feito aqui neste espaço da Caju, procuro recuperar e comentar a memória do carnaval a partir dos arquivos televisivos dos desfiles e de seu entorno. Após um ano ausente do Sambódromo, a TV Manchete retornava ao pool das transmissões com a Globo. Aqui faço uma digressão: em função da falta de verbas para cobrir os desfiles em 1993 – o que de alguma forma antecipava a sua decadência iminente – a emissora do já endividado Adolpho Bloch desistiu do negócio e preferiu transmitir o carnaval da Bahia, onde explodia a axé music.
E foi um ano depois, em 1994, quando a Sapucaí completava 10 anos de existência, que o carnaval carioca – buscando refrear a concorrência baiana – pôde contar novamente com as duas emissoras concorrentes na transmissão, além de se munir com mais um hit nos moldes do Explode coração salgueirense do ano anterior. Ironicamente, o enredo da Mangueira para o desfile de 1994 prestava uma homenagem…. à Bahia (!), com os Doces Bárbaros (Bethânia, Gil, Gal e Caetano) no front e um samba-chiclete (“Me leva que eu vou / sonho meu / atrás da verde e rosa / só não vai quem já morreu“), que logo caiu na boca do povão. Mas a onda do axé era tão grande no país que até a Brahma – maior patrocinadora do Sambódromo – trazia uma propaganda toda trabalhada no gênero e que passava ad nauseam entre uma escola e outra durante as transmissões da Globo. Isso sim é que era guerra cultural.
De volta à pista dos desfiles, foi a partir de 1994 que a carnavalesca Rosa Magalhães começou a abocanhar um título atrás do outro com a agremiação de Ramos. Consagrada como grande pesquisadora e desenvolvedora de enredos históricos originais, Rosa tornou-se uma espécie de talismã para a escola, rendendo à Imperatriz nada menos do que cinco campeonatos em menos de dez anos.Em matéria de samba, no entanto, faltavam trunfos à Imperatriz. Será difícil, a não ser para os mais aficcionados, alguém se lembrar de um verso sequer desses desfiles, que passaram a ser, inclusive, bastante criticados pelo excesso de frieza e rigor técnico. Ficaram registrados também, é claro, momentos de excepcional apuro conceitual e estético, com carros deslumbrantes, fantasias esmeradas e comissões de frente elegantérrimas, a maioria em parceria com Fábio de Mello, marcas inquestionáveis da professora Rosa e que tiveram uma influência categórica nesses títulos conquistados. Mas sem um samba que dê a tal da liga decisiva para que o desfile aconteça, detonando a catarse, não há jegue, nem tupinambá que resolva: nossa memória afetiva tende a ficar turva.
Mas… E quem perdeu? Neste texto, procuro tirar a poeira dos vencidos e relembrar um dentre os dois desfiles que remaram contra a retidão militar da Imperatriz Leopoldinense em 1994. Num próximo texto, comentarei o outro. De alguma maneira, nas suas particularidades, ambos são desfiles que “aconteceram” na avenida, graças aos seus sambas poderosos e à integração dos componentes das duas escolas a eles. Não foram desfiles opulentos, mas dignos e emocionantes na sua simplicidade carnavalesca; não venceram, sequer estiveram entre os três primeiros colocados, mas honraram o delírio e a essência profana da nossa “festa da carne” – carnavale.
Se ao vencedor, as batatas; aos vencidos, a carne!
Um desfile que decolou a partir do enredo
Nenhum desfile em 1994 conseguiu suplantar a força do samba da Tradição. Os ritmistas da então jovem agremiação de Campinho impulsionaram de tal forma o seu refrão (ou “estribilho”, seguindo o tom cortês de Haroldo Costa), que a escola faria o seu melhor desfile – ever, permitam-me – na Sapucaí. Dissidente da Portela e caçula entre as grandes, a Tradição também trazia na manga um enredo envolvente, simpático e de leitura fácil – desenvolvido pela carnavalesca Lícia Lacerda, colega de Rosa Magalhães na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O público vibrou nas arquibancadas e respondeu com entusiasmo, amparado, claro, pelo samba melodioso cantado em primeira pessoa (composição de Jajá Maravilha, Aniceto, Tonho, Sandro Maneca, Jurandir da Tradição, Jorge Makumba e Lourenço), apontado como um dos melhores do ano pela crítica musical.
O vídeo que compartilho a seguir é o da transmissão da TV Manchete. Não há nenhum vídeo disponível da transmissão desse desfile pela TV Globo. Isto se deve, lógico, ao horário do desfile da escola naquela segunda-feira de carnaval, que competia com a grade “imexível” novela das oito global, Fera ferida. Esse caso nunca teve solução – a novela sempre sacrifica as primeiras escolas, e hoje esse problema permanece de forma aguda nos desfiles do Acesso.
Mais uma pausa para falar da Manchete. O slogan da emissora naquele carnaval já anunciava a sua agonia financeira: “Manchete 94, a volta por cima”. O seu patrocinador master eram os batons Juvena (“a cor… você vê na embalagem”), cujo anúncio era repetido com um certo constrangimento pelo narrador oficial dos desfiles, Paulo Stein. No entanto, nada batia o seu timaço de comentaristas, grandes pedagogos e historiadores do carnaval. E a qualidade do som desse vídeo postado no YouTube supera todas as expectativas – a bateria pulsa. Vale assistir com o seu melhor fone de ouvido plugado no celular ou laptop (Bom pra porra!).
Ícaro, Da Vinci, Santos Dumont, Pepê
De volta à Tradição, o enredo de 1994, Passarinho, passarola, quero ver voar tinha como premissa “o homem e sua vontade de voar”, partindo do sonho de Ícaro, passando por Leonardo Da Vinci e Santos Dumont, e chegando às asas deltas do Rio de Janeiro, com uma homenagem ao atleta Pepê, morto em um acidente três anos antes (imagem do cabeçalho). Segundo Fernando Pamplona, âncora dos comentaristas da Manchete, a ideia era “bacana”. Paraninfo da turma de Licia Lacerda na EBA, Pamplona chegou a louvá-la no início da transmissão: “não é mole não, ela sabe das coisas”. Já Haroldo Costa, afirmou que era uma carnavalesca “meticulosa”.
Tentanto avançar para além das adjetivações, o desfile começa com um esquenta responsa e um discurso inflamado de um dos dirigentes da escola. Antes de entoarem o samba oficial daquele ano, ensaiam no “esquenta” Disputa de poder, clássico do samba-enredo-de-protesto gravado pela cantora Simone no auge da crise ética e econômica do governo Sarney em 1988. Não que as coisas tivessem mudado. Depois do impeachment de Collor, vivíamos um certo limbo com o governo de Itamar Franco. Como as companhias do presidente à época, curtíamos a folia sem calcinha no sambódromo – uma descontração justa em um momento de contenção, imediatamente anterior ao da reforma econômica que mudaria o curso da história do país.
O grito de guerra da Tradição ganhou a participação inusitada (porém, afinada com o enredo) de Iris Lettieri, também conhecida como “a voz do aeroporto” (eu prefiro realçá-la como “a primeira mulher locutora de um telejornal do país”). Com um timbre aveludado, sereno e sensual, a voz de Íris é a marca registrada dos principais aeroportos do país. Curiosamente, em 1992, o grupo de rock americano Faith No More incluiu a gravação de sua voz na faixa “Crack Hitler”, no álbum Angel Dust. Íris tentou processar o grupo, sem sucesso.
Ainda comentando os comentários da Manchete: com o cronômetro correndo e iniciado o desfile, José Carlos Rêgo chama a atenção para as “notas relativas” do samba-enredo – tonalidade que tem a mesma armadura de clave do tom inicial, mas uma tônica diferente, formando uma espécie de oposição variante – e descortina seu incômodo com a comissão de frente, que “estrapola” e dá as costas para a escola.
A primeira metade do cortejo é morna (ou “xoxa”, nos dizeres de Pamplona; “e o conjunto não vai bem, né?”, segundo Rêgo), mesmo com um dos melhores sambas do ano. Até que uma reviravolta acontece (talvez a “aparição” de Vilma Nascimento ou a ala dos “tapetes voadores” respondam ao triunfo desse “plot twist”?)
Luma de Oliveira, a rainha das rainhas de bateria, mesmo parecendo meio “apagada” e já sem o mesmo fôlego de carnavais passados, abria espaço para a porta-bandeira Danielle Nascimento, filha da lendária Vilma Nascimento, que vinha em destaque no chão reverenciando a filha, herdeira do seu posto. Não à toa, Danielle ganharia o Estandarte de Ouro de “revelação” daquele ano. (E não à toa, e acertadamente, deslocaram alguns anos depois o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira para o início do desfile, longe da disputa dos holofotes com as rainhas de bateria).
Chaves da empatia: conjunto
Com o recuo dos ritmistas para a Rua Salvador de Sá, a escola seguiu num crescente extraordinário, principalmente a partir dos carros “Leonardo da Vinci” e “Paris é 14-Bis”. Essa recuperação épica foi acompanhada pela arquibancada extasiada e pelos “causos” deliciosos contados pelo dream team de comentaristas da Manchete. Mesmo com toda a chuva que caíra na concentração, não teve hélice “broxa” – definição do time da emissora para um alegoria despencando – que impedisse o voo da Tradição.
Mas como entender a empatia causada pelo desfile da escola? Para mim, ela reside em três fatores:
1- O conjunto plástico afinado com a proposta de enredo de Lícia Lacerda, que fisgou o público da metade para o fim com uma leitura lúdica e compreensível do enredo, sem contar nas fantasias leves e originais e num traço singular dos anos 1990: carros alegóricos de médio porte bem definidos, que balançavam e giravam no ritmo do desfile.
2- Uma bateria cadenciada em harmonia com a resposta dos surdos no refrão arrebatador “Vou voar de asa delta / o céu do meu Rio de Janeiro eu vou voar / Delirar com a natureza / Refletir no espelho azul do mar”; além do desenho de tamborins antecipando uma meia “paradinha” (Salve, Mestre Dacopê!) e um arranjo complementar e ousado com violão de sete cordas e cavaquinho, que, segundo Rêgo, “duelavam” com as tais “notas relativas” de um samba cheio de qualidades.
3- O chão poderoso, que assimilou tudo isso – a escola se apropriou do enredo e soltou o corpo e a voz, e nem mesmo a chuva da concentração atrapalhou a evolução dos passistas.
Foi este conjunto o que proporcionou um grande espetáculo arrepiante e catártico. Os comentaristas se renderam, e a escola “brilhou”, em sintonia com a condução e cadência perfeitas dos intérpretes e ritmistas. Vale destacar também o excelente trabalho dos operadores de câmera do pool da transmissão televisiva, com suas tomadas precisas, no embalo do desfile.
Por fim, alguns destaques: as crianças pareciam livres, leves e soltas na “ala do aviãozinho”, conduzidas por Galeão Cumbica, um personagem popular de programas humorísticos da época – outro grande momento da Tradição. A ala das baianas citava o saudoso carnavalesco tropicalista Fernando Pinto, com fantasias “siderais” renovadas para os anos 90. Um carro em homenagem a Pepê, esportista e figura icônica do life-style carioca (que havia morrido recentemente em um acidente trágico de asa-delta), arrebatou o público. Nossa rainha do basquete Hortência marcou presença no carro dos balões, que fechava o desfile. Nessa altura, já se ouviam gritos de “É campeã!” dos últimos setores no sambódromo. Enfim, momentos que fizeram dessa apresentação a mais importante na história da escola, que conquistaria o 6º lugar no resultado final, sua melhor colocação até então, à frente, inclusive, de sua progenitora Portela.
***
Dica para ver o vídeo do YouTube
O clímax (pra quem quiser ir direto ao ponto) está em 01:03:07.
*** ***
Leia do mesmo autor:
Carnaval on loop: a apuração de 1989 – Clique aqui
Caxias despedação e histórias em disputa – Clique aqui