É partindo dessa complexidade e vivacidade de Van Gogh que o crítico brasileiro Rodrigo Naves conduz seu novo ensaio, Van Gogh: a salvação pela pintura, lançado em fevereiro de 2021 pela editora Todavia. Naves não se deixa reduzir a uma “estética da autobiografia” ou a uma história da arte como “história do nome próprio”, como diria Rosalind Krauss (em um artigo intitulado In the name of Picasso, publicado na revista October em 1981), na medida em que não cai em armadilhas deixadas pela biografia (ou, melhor dizendo, pelas biografias) do artista holandês. O crítico busca enfatizar significantes formais e culturais mais amplos – exercício que executa há décadas com maestria, a exemplo de seu clássico livro A forma difícil, publicado em 1996, que o consolidou como um dos críticos mais influentes do Brasil. A obra de Naves nos ajuda a alargar a experiência sensível diante das obras de Van Gogh, extrapolando aquelas interpretações que confinam a obra do artista em suposições dadas por sua própria vida, deixando pouco espaço para um acesso paciente a seu trabalho e para os sentidos despertados pela visão – ou, o que é pior, lançando mão da obra de arte como um documento que atesta fatos da intimidade do artista.
Crítico desvia estrategicamente da suposta irracionalidade do pintor
Nem por isso a biografia deixa de ter importância para o ensaio. Aliás, ela é um de seus fios condutores. O desvio do crítico é de uma suposta loucura ou irracionalidade do artista propagada por determinadas narrativas literárias e audiovisuais. A psiquiatra brasileira Nise da Silveira é mencionada em uma nota de rodapé, logo na primeira página, para nos lembrar das mediações lúcidas que um trabalho de arte pressupõe, mesmo em situações de transtorno mental. Os supostos problemas mentais de Van Gogh – até hoje não comprovados, assim como seu suicídio, como Naves insiste em afirmar em seu ensaio – mais ajudam a mitificar sua obra, além de reduzi-la a uma dimensão íntima, apartada do mundo e de sua abertura ao outro.
O dado biográfico mais explorado pelo crítico na obra de Van Gogh é a religiosidade do pintor. Filho de um pastor calvinista, a singularidade de seu cristianismo acrescenta interpretações mais sólidas à dimensão dilacerada e tortuosa de sua obra do que sua suposta loucura, segundo Naves. Embora Van Gogh não tenha se interessado em realizar obras tematicamente religiosas, a associação entre protestantismo e a inclinação ao trabalho – como tratada pelo sociólogo Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo – nos conduz a interpretações plausíveis de obras de sua primeira fase, de tendência realista, como o famoso quadro Os comedores de batata, de 1885. Sobre esta obra, o próprio artista, em uma carta citada por Naves, afirma ter tentado enfatizar que “essas pessoas, comendo batatas à luz do lampião, cavaram a terra com as mesmas mãos que tocam a comida, e assim o quadro fala de trabalho manual, e de como eles ganharam seu alimento honestamente”. Nesse sentido, Van Gogh é inserido numa tradição holandesa de pintura de gênero, caracterizada pela afeição ao trabalho, seguindo (mesmo que involuntariamente) caminhos abertos por Pieter Brughel (o Velho), Rembrandt, Johannes Vermeer e Anton Mauve, artistas sobre os quais Naves tece breves – mas instigantes – comentários, pontuando supostos ecos de suas obras nas de Van Gogh.

Há uma dimensão ética em obras de Van Gogh que evoca o realismo do pintor francês Jean François-Millet, artista que ele admirava e não hesitava em citar diretamente em suas telas. É sobretudo o trabalho camponês, tematizado por Millet, que motiva a fascinação de Van Gogh. Mas o profundo cristianismo do pintor holandês se sobrepõe a seu socialismo, como demonstra Naves, impossibilitando sua filiação a alguma corrente política. Além disso, ainda que as intensas transformações urbanas, demográficas, industriais, comerciais e artísticas do século XIX possam tê-lo perturbado, o ensaio de Naves deixa claro que o apego de Van Gogh ao trabalho manual tem razões mais profundas e não se reduz ao tema de algumas obras. O trabalho pictórico de Van Gogh é sua condenação e sua salvação, no sentido que a teoria da predestinação calvinista nos informa. Esta é a tese central do ensaio. Aqui, a relação entre arte e vida em Van Gogh se desvencilha da lenda de sua loucura. Também não se encerra em uma análise da iconografia de seus quadros apoiada em dados biográficos, mas se volta, sobretudo, para a forma.
Naves aponta para a tensão permanente entre a massa informe de uma matéria colorida e a figuração, como um sintoma ao qual a obra de Van Gogh está destinada. Nas palavras do autor, “a espessura da massa de tinta irá constituir figuras a partir de pinceladas repetidas – por vezes paralelas, por vezes pluridirecionais – que parecem lutar contra o próprio material que procura torná-la representação de pessoas ou coisas reais”. A tensão entre imagem e matéria produzida pelas grossas camadas de tinta – ou impasto, como costuma-se chamar – é reveladora de um trabalho manual, de uma gestualidade e uma autonomia que não existem no trabalho industrial.
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Uma composição rebelde, em muitos aspectos
As cores se rebelam contra seus contornos, o material se rebela contra a figura, a emoção se rebela contra a visão. Há uma agitação que resiste a dar as obras de Van Gogh por acabadas e tampouco a defini-las como exercícios de representação ou como exercícios de visualidade pura. Há uma sensação de trabalho árduo evocado por suas telas, por suas pinceladas, que, na visão de Naves, evidenciam-nas como sua condenação. A formação protestante do pintor seria, portanto, um dos fatores que elevam o aspecto instável e atormentado de suas obras. Sua pintura é seu trabalho permanente, impossível de se concluir.
O ensaio de Naves contribui para desamarrar as obras de Van Gogh daquelas respostas fáceis, dadas por determinadas interpretações biográficas que, mesmo por vezes corretas, enclausuram a obra e desestimulam nossa percepção. O crítico demostra que a riqueza da obra de Van Gogh é sua complexidade e que qualquer caminho demasiado assertivo pode se revelar inconsistente. O que não quer dizer que a vasta bibliografia sobre o artista holandês deva ser deixada de lado, pelo contrário.

Em seu percurso pela vida e obra de Van Gogh, o crítico recorre a diversos autores que traçaram outros caminhos, muitas vezes para embasar suas próprias ideias e outras para desconstruir o que foi estabelecido pela historiografia da arte. Alguns dos nomes evocados são Roger Fry, Clement Greenberg, Lionelo Venturi, Linda Nochlin e Antonin Artaud. Embora se proponha a discutir e alargar conceitos e teorias introduzidas por grandes pensadores da arte, o autor proporciona uma leitura acessível para o público não especializado no assunto. Naves demonstra sua clareza e poder de síntese em menos de 100 páginas, divididas em 23 pequenos capítulos entremeados por um caderno de imagens coloridas, às quais o autor recorre em suas análises de obras. Van Gogh: a salvação pela pintura é um livro estimulante e envolvente, que nos ajuda a mergulhar profundamente na obra de um dos pintores mais populares do mundo.
Autor
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Mestre em Artes Visuais (História e Crítica de Arte) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. Doutorando do mesmo programa.
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