A “função do véu” é uma lição de Jacques Lacan no Seminário 4 – A relação de objeto, de 1957. Ele começa apresentando uma fórmula para todas as trocas simbólicas e, consequentemente, para o amor: só se dá o que não se tem, ele diz, ou amar é dar o que não se tem… – fórmula que ele ainda completaria anos depois. Mas vamos ficar com essa primeira parte da fórmula para seguir até a cortina: “o que é amado no objeto é aquilo que falta a ele”, o que seria o mesmo que dizer que aquilo que se ama não estaria lá propriamente reconhecível, no campo visual por exemplo, senão apontando para outra coisa, algo como um mais-além do objeto.
Lacan estava atento ao efeito provocado por esse recurso na pintura, e assim ele nos diz que “o que eu olho não é jamais o que quero ver” (seminário 11,1964). Para explicar melhor esse jogo do olhar, retoma uma história envolvendo um duelo entre dois personagens da Grécia Antiga: Zêuxis e Parrásios.
Essa história conta que ambos se apresentaram perante uma comissão que decidiria, dentre os dois, qual seria o melhor pintor. Assim, com suas obras oferecidas ao crivo de tal juízo, Zêuxis suspende um tecido que velava seu quadro, expondo uma natureza-morta. Lacan diz que o mérito de Zêuxis foi ter pintado um cacho de uvas capaz de atrair os pássaros, em suas palavras: “o que é enfatizado, não é, de modo algum, o fato de que essas uvas seriam uvas perfeitas, o que se enfatiza é o fato de que se tenha enganado até o olho dos pássaros”.
Confiante de que vencera o duelo, Zêuxis pede para que Parrásios revele sua obra, como quem revelaria suas cartas em um jogo de baralho. Para surpresa de todos, ele havia pintado o próprio tecido, assim como vemos na Imagem (2017) do artista Vanderlei Lopes. Nesta obra, em especial, Vanderlei faz do véu a própria coisa, Das Ding nos termos freudianos como vimos no texto sobre às maças de Cézanne – publicado no mês de abril nesta mesma coluna da Revista Caju (leia aqui). Óxido de titânio e óxido de ferro sobre bronze coberto por um pigmento mineral vermelho.
A própria escolha do material parece que coisifica, reifica (v. G.Lukács apud V.Safatle), materializa, faz um corpo a partir da ideia do tecido, faz A Coisa – Das Ding. O artista conta que este trabalho foi pensado na ocasião de uma exposição, onde o objeto seria exibido em um shopping center – a Galeria Athena Contemporânea na época ficava dentro das instalações do Shopping Casino Atlantico, em Copacabana. Tratava-se de uma provocação a isso, ele diz. Como se lá, no shopping, onde os objetos precisam ser mostrados em sua totalidade, como objetos de consumo, o artista propõe um véu ou, ainda mais radical como Parrásios no mito grego, materializa o véu como uma Coisa.

Essa cortina proposta por Vanderlei seria um objeto que rejeita o consumo, diríamos através de uma leitura marxista do objeto fetiche, e que portanto faz resistência à isso, senão como obra de arte – o mercado de arte que o diga. Nesse sentido, um objeto erigido frente à lógica do consumo, sem valor utilitário: um monumento anticapitalista. Esse tema parece nos convocar para futuras reflexões, e para não desviarmos muito do percurso inicial deste ensaio, remetemos o leitor ao texto de Vladimir Safatle (2010) sobre “fetichismo mercadoria – imagem e reificação” e à pesquisa e obra do artista Vanderlei Lopes (clique aqui para o site do artista).
Voltamos ao duelo entre Zêuxis e Parrásios, através do qual Lacan conclui que esta vitória revelaria, para além do embate, o “triunfo do olhar, sobre o olho” e que o objeto (a minúsculo – signo do desejo) seria, no campo do visível, o próprio olhar.
Sujeito aceita e se defende da realidade ao mesmo tempo
Daremos um salto, não se assuntem, um salto para trás como no jogo da amarelinha, para voltar à infância. Sabemos que a criança estabelece, desde cedo, uma relação dúbia com a realidade: precisa de alguma forma aceitá-la e dela se defender ao mesmo tempo. Estamos falando da noção freudiana de castração, mas não sem antes lembrar que trata-se de uma operação simbólica (com efeito de real, é verdade), e que essa interdição no terreno edípico, apontaria, sobretudo, um limite da própria linguagem.
Bem, falamos a respeito de uma proposta de Lacan para as trocas simbólicas, onde só se dá o que não se tem, para conceber alguma coisa que seria tanto ausência como presença. Portanto, sobre a função simbólica do falo, diz Lacan, sobre este estar ali ou não, é que se instaura a diferença simbólica entre os sexos.
Mas é aqui, neste ponto, que precisamos fazer uma parada necessária. Importante dizer que especialmente a partir da teoria freudiana, a diferença entre masculino e feminino passou a não se resolver por uma explicação anatômica. Desde o início de suas teorias sobre a sexualidade, Freud desconfia da anatomia e de todos os esteriótipos socialmente confeccionados para o que se convencionou chamar por homem e mulher. Nesse sentido, ele já anunciava uma bissexualidade inerente aos seres humanos, uma dupla-sexuação ou, ainda, nos termos atuais, um não-binarismo: como se pudéssemos operar como homem e mulher, masculino e feminino e não um ou o outro, ainda que a diferença anatômica dissesse o contrário. Em suas palavras: “aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia” (S.Freud, 1932).
Se Freud propõe relativizar a anatomia dos corpos e até mesmo subvertê-la, J.Lacan nos convidou através de seu ensino a conceber e inventar novas versões que rompessem a lógica fálica: para além da posse ou não-posse do pênis existe, ou pode existir, muito mais. Sobre um estudo mais amplo desta temática, faço referência a um ensaio da psicanalista Tania Rivera, presente em seu ultimo livro (Psicanálise Antropofágia. Ed. Artes & Ecos, 2020), onde ela faz ecoar o Manifesto Contrassexual de Paul Preciado, não sem antes apresentar, com extrema precisão, o trabalho de um Freud atento às outras possibilidade de sexuação, para além do falocentrismo.
Mas para tentarmos falar sobre o fetiche, é sobre o complexo de castração mesmo que precisamos situar alguma coisa, nisso que “o sujeito fica preso”, como diz Lacan. O falo estaria sempre para além de toda relação entre homem e mulher, no sentido que ninguém o tem propriamente, ninguém o é propriamente. O que nos levaria a dizer, com Lacan, que o falo simbólico só existe mesmo enquanto ausência.
Só se dá aquilo que não se tem
Como o fetiche aparece aqui a partir dessas proposições? Sabemos que ele encarna num determinado objeto – o falo como ausente. O fetiche, portanto, seria um símbolo, quase um sintoma neurótico, mas antes de falar em neurose ou perversão, vamos entender como esse símbolo do objeto ausente se apresenta e o que ele indica. Para isto, vamos voltar a primeira frase: só se dá o que não se tem. O que é amado no objeto do amor é alguma coisa que estaria mais-além. Foi assim que vimos. Aquilo, portanto, não é nada, senão um símbolo, e sendo um símbolo pode nos transmitir melhor a noção de que aquilo que visamos está para além do que se apresenta. O próprio pênis, a partir desta formulação, restaria como puro artifício, uma prótese que pretende “se fazer passar pelo falo”, como disse P. Preciado na ocasião de seu Manifesto (2014), já citado.
Bem, se entendemos que neste jogo nada está garantido, passamos à lição de Lacan sobre o véu: “uma das imagens mais fundamentais da relação humana com o mundo”. O véu e a cortina, que se põe diante de alguma coisa, seria a melhor imagem para a situação fundamental do amor e assim ele diz: “com a presença da cortina, aquilo que está mais além, como falta, tende-se a realizar como imagem. Sobre o véu, pinta-se a ausência.”
Vejamos esse esquema. Tem o sujeito de um lado e o objeto de outro. No meio tem a cortina, o véu. Lá no fundo, por detrás de tudo, na ordem do mais-além, temos o Nada, o símbolo ou ainda o falo, na justa medida que ele falta pra todo mundo. O que muda com a cortina? Poderíamos perguntar à artista Laura Lima, através dessa obra que vemos, onde ela propõe uma cortina que vela o rosto. Desde que colocamos a cortina, sobre ela pode-se imaginar algo que diga que o objeto está detrás, lá no fundo, como se diz por aí; lá no fundo, o sujeito é…, ou, ainda, no “prelúdio”, naquele véu imaginário em Eclipse oculto de Caetano Veloso: “gargalhadas e lágrimas” e, depois, “pura fama” pois na “hora da cama nada pintou direito”. O que parece importante dizermos é que se o objeto está além da cortina, ele pode assumir o lugar da falta e, assim, ser o suporte do amor.
Como se daria essa relação da cortina no caso do fetiche? O esquema da cortina mantém o desejo instalado como mais-além, detrás da cortina. O fetichista, no jogo da cortina, ameaça abri-la, descortinar o objeto que precisa ficar velado, do outro lado, para ser valorizado como ilusório e figurar como suporte do desejo, suporte do amor. Desejo como metáfora do amor.
Feminino é experimentado como aversivo – cultura patriarcal
Abre a cortina ou não abre? Esse parece o impasse do fetichista. Talvez devêssemos fazer um breve retorno para entender a questão da ambiguidade da relação fetichista. Vamos imaginar uma cena clássica da infância vitoriana onde o menininho, diante da mãe dele (ou a primeira mulher), percebe que ela não tem um pênis. Ele pensaria assim: se ela não tem, eu que tenho esse pequeno aqui posso perder também. Bem, esse seria o caminho da neurose montada por Freud para o desenvolvimento sexual infantil do menino. Seguindo esse caminho, dito tradicional, o menino – fazendo uma confusão entre o falo concreto (que não existe porque pode ser encarnado em qualquer coisa) e o falo simbólico, acabaria como Tania Rivera (2020) diz “a buscar reafirmá-lo, ao longo, da vida, apoiando-se imaginariamente em significantes fálicos oferecidos culturalmente e, eventualmente, em uma certa misoginia”.
Freud diz que o menino, este da cena mítica que inventamos aqui, atribui a certeza de um pênis a todos os seres humanos. E por que essa universalidade? Uma associação construída, diríamos sem muita margem de engano, imposta goela abaixo, entre feminilidade-passividade e masculinidade-atividade. Nesse sentido, tanto o menino quanto a menina experimentariam o feminino como aversivo, uma certa recusa a essa posição passiva-feminina. Herança de um patriarcado, poderíamos dizer assim.
Voltamos à cena do menino, que diante da certeza que ele tem e alguém não tem (no caso a mãe), tomado pela ameaça de perdê-lo, entra na lógica fálica e por ai segue como um menininho com seu pêniszinho atravessando o complexo de Édipo e tudo mais. Aquela historinha toda que já ouvimos em algum lugar. Acontece que o menino pode dar outra saída para essa visão atormentada do vazio.
Como em um filme a imagem se congela neste momento: “lembrança encobridora”, Freud vai dizer. Encoberta pelo recalque, lembramos. No momento em que aquilo que é buscado com o olhar do menino na mãe, não aparece. A história fica suspensa aí nesse ponto. Dessa cena congelada, esse frame como em um filme pausado, se forma uma imagem. O fetiche seria uma imagem formada aí, nesse ponto, uma imagem projetada entre o ponto em que a história é pausada, mas precisa continuar, ainda como ficção, como fantasia. Essa seria a solução fetichista, e para isso vamos fazer um breve desvio para depois voltarmos para a cortina.
Sobre a etimologia da palavra fetiche, sabemos através do estudo de V.Safatle (2010) que os grandes navegadores europeus também criaram uma cortina para instalar seu desejo e assim destilar (aqui sim!) sua perversão nas terras distantes das Índias Ocidentais (não por acaso as Índias, no feminino). Seria justamente do português antigo ‘fetisso’ como coisa encarnada, divina, e de outras raízes latinas que a palavra ‘fetiche’ se originou. Freud contudo recupera uma derivação etimológica de ‘factio’, como um ‘modo de fazer’, ficção. Neste caso, um ‘modo de fazer’ com a ameaça de castração, uma defesa peculiar diante da realidade: teríamos aqui o próprio conceito de fantasia.
Freud diz no seu texto de 1904 (Três ensaios…) que o fetiche confirma a “plasticidade da própria libido”. A sexualidade é polimórfica (lembram, “perverso polimorfo”?) e não está a serviço somente da reprodução. Isso é importante! Freud já está atento a isso. Vale lembrar que Foucault, na História da Loucura… (sua famosa tese de doutorado), dizia sobre um certo modelo de internação pautado nos crimes ditos “antinaturais”, que em outras palavras seriam expressões de uma sexualidade que não visasse a reprodução.
Cortina encena ambiguidade do fetiche
Quando falamos em plasticidade, significa dizer que as pulsões estariam sempre prontas a desviarem e inverterem os alvos e os objetos sexuais: a “poliformia perversa de toda a sexualidade infantil”. Neste sentido, fetiche e sublimação seriam exemplos possíveis dessa plasticidade, talvez possamos dizer isso. Ainda no estudo de Vladimir Safatle, sabemos que teria sido a partir de suas reflexões sobre o fetiche que foi possível a Freud trabalhar o conceito de ‘clivagem’ (Spaltung, no original alemão) e assim expor um traço mais amplo da estrutura e do funcionamento do Eu em um de seus últimos trabalhos (A cisão do eu no processo de defesa. Freud, 1938).
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Voltamos à cena do menininho diante da mãe. Enquanto uma parte da pulsão é recalcada como um bom neurótico faria, outra é idealizada, elevada como um relíquia, um fetiche. Pura fabricação, ficção que desaguaria em um objeto criado, feito para brilhar.
Esse brilho, esse fulgor, o que seria isso? Georges Didi-Huberman em sua Pintura encarnada, fazendo uma leitura crítica do conto de Honoré de Balzac (A obra de arte desconhecida) diz que um fulgor seria a “qualidade luminosa do aparecer”, e quando “o detalhe se faz luminoso, ele invade, devora o todo”. Continua: “quando o que reluz se torna beleza, então é globalmente que a mancha luminosa atinge nossa relação com o objeto”. Como veremos daqui a pouco, o ‘fulgor’ é o elemento por excelência da definição freudiana do fetiche.
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De volta para a cortina, o fetichista também com ela vive essa ambiguidade, é constante. Um equilíbrio frágil no instante entre abrir a cortina e fechá-la. O sujeito então é compelido a escolher entre a morte do desejo (com a cortina aberta) e a morte do objeto (a cortina fechada). Lacan, no seminário 1 (1953/54), diz que o fetichista, diante desse impasse, frequentemente escolhe “identificar-se com o objeto”. Mas não vamos entrar no que isso significa, pois o véu parece mais importante para seguirmos.
Lacan pergunta “por que o véu é mais precioso para o sujeito que a realidade?” Essa seria a questão lançada pelo fetichismo. No texto de 1927, entitulado O fetichismo, Freud conta um caso de um fetichista. Um sujeito que buscava um ‘brilho no nariz’. Em alemão: Glanz auf der Nase, ‘um brilho no nariz’ que a mulher precisaria portar (aos olhos deste sujeito) para ser elevada à condição de objeto do desejo. Freud chega a conclusão que por uma substituição entre significantes, aquele sujeito que havia recebido uma educação inglesa estaria diante da proposição: a glance at the nose, ‘uma olhada para o nariz’. Tratava-se de um trocadilho entre línguas, restando o nariz como um símbolo de uma relação puramente visual.
Projeta-se qualquer coisa sobre o véu. Um sintoma singular que coloca o sujeito diante de uma relação com um objeto fascinante, inscrito sobre o véu e em torno do qual gravita a sua vida erótica. O sujeito projetaria nesse objeto inerte, um sapato, um espartilho, uma pele animal, etc. lembramos de referências no cinema: “A Vênus das Peles” de Sacher-Masoch adaptada (subvertida) por R.Polanski, “Blue Velvet” de David Lynch, “Dogs Don’t Wear Pants” dirigido por J-P Valkeapää’s, “Beleza Adormecida” de Julia Leigh ou “Maîtress” de Barbet Schroeder, como exemplos, dentre muitos outros.
O couro ou a borracha, luvas ou partes do corpo como as pernas, pés, mãos, o nariz, pescoço, a nuca, os olhos etc, algo plenamente à mercê das manobras do fetichista em suas relações eróticas. Não vamos entrar nestes objetos individualmente – como nas tentativas freudianas de explicar a origem destes um a um, mas diremos que cada um funcionaria na posição do véu, como naquele esquema que vimos, entre o sujeito e o objeto, instaurando um jogo, controlado pelo fetichista, a partir da hesitação de descortiná-lo completamente.
Roland Barthes (1977), também se interessou por esse tema e terminamos esse ensaio hoje com ele: “foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes (e talvez multas procuras), para que encontrasse a Imagem que, entre mil, convém ao meu desejo […] o que, nesse corpo amado, tem tendência de fetiche em mim? Que porção, talvez incrivelmente pequena, que acidente?”