O livro Linguagem do espírito, de Jan Swafford, lançado neste 2021 pela Zahar, com tradução de Paulo Geiger, traça um panorama da música clássica que cobre o período desde a Idade Média até os dias de hoje. A tarefa hercúlea em um livro de 367 páginas, mas o autor se sai bem na empreitada. Podemos pensar a música que ouvimos como um arco de desenvolvimento que se inicia nas primeiras experiências medievais de organização do som e chega aos dias de hoje, com uma profusão de estilos e escolas de composição.
É interessante notar que a nossa música, diferente de outras manifestações artísticas como pintura e literatura, teve sua linguagem formatada por volta do ano 600 depois de Cristo. O idioma musical em qualquer civilização é baseado na organização dos sons em escalas, as escalas são sequências de sons de diversos tamanhos e o mundo ocidental elegeu sequências de sete notas como base para a construção de nosso vocabulário musical, eram os modos gregorianos em número de sete, um para cada nota da escala. A partir desses modos criou-se um sistema denominado tonal onde sobraram só dois,conhecidos como modos maior e menor, de onde se originam 24 tonalidades.
Esse sistema deu tão certo que passou a regrar a maior parte da linguagem musical em todo o mundo. Outra mudança radical que aconteceu a partir da Idade Média foi a invenção de uma forma de anotar as músicas, que até então eram passadas de um músico para o outro através da memória, essa possibilidade de se escrever e publicar músicas que poderiam ser tocadas em qualquer lugar foi uma revolução sem precedentes.
Autor privilegia compositores saxônicos em sua síntese
Com esses dois diferenciais em relação à música de outras culturas a música europeia se espalhou pelo mundo e seu vocabulário se tornou uma espécie de língua franca mundial, chegando a lugares tão díspares como as cidades mineiras do ciclo do ouro ou a China imperial. Além disso, foi capaz de se misturar a outras culturas gerando milhares de estilos que tem como ponto em comum a utilização da afinação inventada no século XVIII e as escalas do sistema tonal sistematizado por Bach e Rameau. Seria impossível escrever um livro que abarcasse toda a música que se originou dessa semente e o autor faz um recorte privilegiando compositores anglos saxônicos e a música instrumental. A primeira parte do livro trata justamente desse início fazendo um resumo dos desenvolvimentos das experiências sonoras na Idade Média e no Renascimento.
![Bach se apresente para Frederico da Prússia: livro apresenta roteiro para audição online](https://i0.wp.com/revistacaju.com.br/wp-content/uploads/2021/06/MUSICA-raul-zahar.jpeg?resize=739%2C415)
A partir da segunda parte dedicada ao Barroco o autor descreve as características do período e faz uma lista de compositores onde mistura detalhes biográficos com análise musical. Uma boa ideia nesse livro foi colocar exemplos musicais disponíveis online, essa é uma das maravilhas do nosso tempo. Poucos anos atrás era simplesmente impossível ouvir certas obras,muito citadas em todas as histórias da música, como a Missa Pange Língua de Josquin des Prez ou a Sonata Piano e Forte de Giovanni Gabrieli. Agora temos praticamente tudo disponível em plataformas como o Youtube, e Spotify, entre outras. Para ilustrar coloquei aqui alguns vídeos garimpados no Youtube.
No capítulo sobre o Barroco o estilo é conceituado em suas características, como a grandiosidade e o gosto pela ornamentação e são explicadas as formas musicais do período; entre elas a ópera, a fuga, o concerto grosso e a suíte de danças. Três compositores merecem destaque: Monteverdi, Bach e Haendel.
Áustria fez da sonata um modelo
A terceira parte fala do período Clássico vienense, contextualizando histórica e filosoficamente a música da época,onde as ideias iluministas passaram a reger o imaginário dos compositores que se esforçavam em perseguir um ideal de simplicidade e clareza, o oposto dos exageros e complicações do estilo Barroco. A forma sonata passa a ser o modelo de composição contrapondo dois temas distintos em tonalidades diferentes que vão dialogar e no fim chegar a um consenso, não é à toa que essa música precede a dialética de Hegel. O trio de compositores nesse capítulo não poderia ser outro, Haydn, Mozart e Beethoven são apresentados juntamente com suas sinfonias, concertos, sonatas e quartetos de cordas.
O Romantismo e sua rejeição da “luz fria da razão” é o tema da quarta parte. Emoção, excesso, individualidade,gosto pelo incomum e inatingível eram as palavras de ordem. O aparecimento do piano moderno e novas formas orquestrais como o poema sinfônico são significativos. Nessa profusão de conflitos surgem diversos nacionalismos e também um embate entre parte dos músicos que, apesar de aderir à filosofia do romantismo, usavam os métodos tradicionais de composição e os “revolucionários” que queriam criar novas formas e levar a música em direção ao futuro. Diversos compositores são apresentados aqui como Wagner, Schumann, Liszt e Brahms.
A quinta e última parte do livro fala do Modernismo e da música contemporânea. Por estarem tão próximos de nós esses períodos dariam tranquilamente dois livros inteiros, mas o autor não tem uma pretensão enciclopédica e faz um bom apanhado das diversas vertentes da música do século XX e XXI como o impressionismo, neoclassicismo,música atonal, dodecafonismo, música eletrônica, música aleatória, minimalismo e pós-modernismo. As biografias começam por Debussy e terminam em Ligeti.
Toda história faz um recorte da realidade e a história da música não é exceção. O título do livro já deixa claro que pretende ser uma introdução à música clássica e a lista de compositores e obras passa pelo crivo do gosto pessoal do autor. A música que chamamos de clássica, já foi a música popular da sua época. Artistas como Beethoven, Chopin, Liszt e muitos outros eram ídolos populares. Não é a toa que Pour Elise (a seguir em versão de Altamiro Carrilho) toca no caminhão do gás.
Samba conversou com a harmonia de Chopin
Já o Noturno em Mib, de Chopin (abaixo na magistral interpretação de Nelson Freire), é uma das músicas mais conhecidas do mundo. Essa música penetrou em todos os extratos da sociedade onde se misturou com outras vertentese gerou novas experiências fora da sala de concertos, que reverberaram de volta em novas criações que incorporaram esses novos elementos. Um ciclo que não termina como a famosa serpente que engole o próprio rabo.
Não podemos negar a influência da harmonia romântica na música brasileira do final do século XIX e século XX, especialmente Chopin, a sofisticadíssima harmonia dos nossos sambistas teve sua conversa com o mestre polonês. A música eletrônica que movimentava as raves(que voltem em breve) seria impossível sem os experimentos de compositores clássicos como Stockhausen e Edgar Varèse. Ou seja, a música é uma só, os nomes existem para facilitar o entendimento e não para criar confusão.
O título“linguagem do espírito” expressa a visão do autor sobre o universo da música e suas palavras na conclusão do livro reafirmam que não pode haver vida sem arte, seja ela qual for: “o que se pode dizer é que o espírito humano é interminavelmente criativo, e que os músicos, como todos os artistas, continuarão a fazer o que fazem. No processo, continuarão a revelar coisas belas, sublimes, encantadoras, provocantes, amedrontadoras, fascinantes, exaltadas, cômicas, toscas, maravilhosas. Apresentada em forma de sons, cordas, metais, pedra, madeira, tela, filme, pintura e o que mais for, no fim toda arte é feita do mesmo inexaurível material: o espírito humano.”
Autor
Relacionado
Artista visual, pianista e colunista de música clássica da #RevistaCaju.