Em A palavra que resta, livro de estreia, Stênio Gardel mostra a força das palavras e dos não ditos ao narrar uma trama de amor homoafetivo ambientada na zona rural
Aos 71 anos, Raimundo Gaudêncio de Freitas, o protagonista do livro A palavra que resta, de Stênio Gardel, decide assentar na vida: aprende a ler e a escrever, torna-se costureiro e assume para o mundo a homossexualidade despertada ainda na adolescência. Mas, até chegar lá, foram mais de 50 anos fingindo — e fugindo de si mesmo. Rodou o Brasil como ajudante de caminhoneiro, visitou às escondidas cinemas gays, não atou laços com ninguém. No bolso, carregava a carta fechada, escrita pelo amor de sua vida, Cícero. A carta nunca lida.
Raimundo e Cícero moram na zona rural e trabalham na roça com os pai. Certo dia, entre uma capina e outra, eles se olham, se atraem e vivem algo que nunca tinham sentido antes. Dali, foram dois anos de encontro às escondidas debaixo da árvore até serem flagrados pelo pai de Cícero. Em poucas horas, o pai de Raimundo, Damião, sabe do ocorrido. Damião dá surras seguidas no filho na esperança de tirar a maldição à força. Apesar das feridas nas costas latejantes, são as palavras da mãe que jogam Raimundo para bem longe de casa.
— Teu pai me disse que tu falou de ir embora?
— Falei, mas Cícero não foi no rio, eu não sei mais. Eu queria falar pra senhora, que eu gosto
— E vai ficar em casa como?
— Em casa, mãe.
— Mas essa história com Cícero dentro de casa também?
— Quando vocês começaram com isso? Foi antes que embuchei dos gêmeos?
— Foi, faz bem dois anos.
— E tu não pensa que foram tuas mãos sujas que tiraram a vida do Pedro quando tu segurou ele? E do Manuel, que a casa já estava toda empestada desse pecado, dessa imundice sua com Cícero? Isso que tu fez não é coisa de homem nem coisa de Deus!
![Com 150 páginas, livro não segue uma ordem cronológica ao narrar a trama](https://i0.wp.com/revistacaju.com.br/wp-content/uploads/2021/05/9786559210282_gg-200x300.jpg?resize=200%2C300)
Neste livro de 150 páginas, Gardel mostra a força das palavras ditas e também das não-ditas. A fala da mãe e a não-fala de Cícero levam Raimundo a viver em um limbo, numa vida em suspensão, por muitos anos. Mas também são as palavras que o tiram da inércia, quando ele conhece a travesti Suzzanný em uma das paradas do caminhão. É nessa mulher que Raimundo encontra o pouso. Finalmente aprende a ler e abre a carta escrita por Cícero. Será que, depois de tanto tempo, as palavras escritas têm importância?
Mais de meio século depois do relacionamento impossível de Diadorim (que todos acreditavam ser homem) e Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, a homossexualidade é representada como pecado e imundice, mesmo tendo o amor como origem. Na lógica dos pais de Raimundo, “gostar de macho” quer dizer não ter mulher e filhos e, por isso, desgraçar a família e a todos ao redor. A palavra que resta não fala em preconceito da mãe ou do pai de Raimundo, mas sim de uma crendice do tipo religiosa. Uma crença compartilhada inclusive pelo protagonista, que só encontra a liberdade perto do fim da vida.
![Funcionário do TRE do Ceará, Gardel foi aluno da oficina de Socorro Acioli](https://i0.wp.com/revistacaju.com.br/wp-content/uploads/2021/05/Stênio-Gardel-Crédito-Fernanda-Oliveira-2-e1621463403285.jpg?resize=1000%2C666)
Para contar a história, Gardel não segue uma ordem cronológica (este recurso tem sido usado pelos contemporâneos com a ideia, talvez, de manter a dinâmica da leitura fluída, como nos livros Baixo esplendor, de Marçal Aquino, e Copo vazio, de Natália Timerman). Apesar do ir e vir no tempo, o livro tem uma organização: é dividido em quatro partes e mantém um arco narrativo, no qual o protagonista vive um conflito e parte em sua jornada para chegar a um lugar.
Gardel mistura tipos de narradores. O principal é em terceira pessoa e acompanha Raimundo o tempo todo. Mas, quando quer dar mais contornos aos personagens, o autor se vale do fluxo de consciência, como nos capítulos sobre o passado do pai de Raimundo. Damião fica fragilizado, mais humano, em contraponto ao pai durão que açoita o filho. Há ainda trechos em que Gardel dá voz a Raimundo e a outros personagens. Esta diversidade estilística enriquece o texto e mostra a fome do autor por experimentar. Faz sentido, já que A palavra que resta é seu primeiro romance.
A história de Raimundo nasceu e cresceu na oficina de escrita de Socorro Acioli, escritora cearense que ministra cursos e foi a incentivadora de Gardel, funcionário do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Ceará, a ir em frente — o que mostra que há esperanças para quem sonha, como ele, em um dia virar escritor.
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Jornalista e sócia da livraria Mandarina