Choveu, e o homem atravessa devagar a boa distância que vai das bordas da praça até escadaria acima, onde está sua cadeira. Sobe os degraus, alcança o assento, toma o seu lugar, ajeita o microfone, levanta a cabeça. Começa então a falar – para o vazio. Melhor seria dizer: ele fala para o invisível, tentando alcançar com palavras e alguma ternura os corpos ausentes que não puderam se transformar na multidão ruidosa e poliglota que frequentemente se aglomerava ali. Completou um ano, no último 28 de março, uma das cenas mais marcantes do início da pandemia: a missa que o Papa Francisco rezou na Piazza San Pietro interditada, com transmissão ao vivo para todo o planeta. Parece oportuno começar por esta cena a resenha sobre Extremo – Crônicas da psicodeflação (Ubu, 206 páginas), importante livro de Franco “Bifo” Berardi lançado no Brasil com inspirada tradução de Regina Silva.
Pensador anarquista forjado nas lutas trabalhistas italianas, Berardi tem sido uma voz fundamental para pensar formas de insurreição ao capitalismo financeiro globalizado através da linguagem. Extremo é dividido em duas partes. A primeira, as Crônicas da psicodeflação propriamente ditas, é uma espécie de diário escrito no auge do lockdown na Itália, em que o autor ficou confinado em seu apartamento em Bolonha com a companheira, saindo de bicicleta apenas para comprar alimento e remédio nos pouquíssimos estabelecimentos que se mantiveram abertos. A segunda parte, Seis meditações no limiar, não deixa de ser uma resposta à desolação da primeira, com Berardi tentando roçar o futuro citando de Blade Runner a Deleuze, do profeta Jeremias a Bergson.
E por que começar pelo Papa Francisco, dentre tantas cenas que o livro inventaria? Porque a missa para o invisível no Vaticano talvez coagule como imagem um ponto fundamental de Extremo: a constatação de que a pandemia nos oferece a oportunidade de escolher de que lado ficamos na grande guerra narrativa que tem se desenhado no planeta. Assistimos, não é de hoje, ao duelo do imaginário contra a imaginação. Trocando em miúdos – ou, para permanecer na metáfora do autor, dissecando o cadáver: o capitalismo apresenta sinais de que é um defunto putrefato há anos, décadas. Berardi mostra que ele transformou a humanidade num “organismo superexcitado”, convencendo a população do planeta de que ela “não pode parar”. Ao imaginário non stop soma-se o da abstração do dinheiro e o de seu acúmulo como o único fiel possível para a organização social. Mais recentemente, houve o reforço das novas narrativas neototalitárias. Elas fazem uma tentativa desesperada e caricata de sustentar todo o conjunto, realizando uma “dobra” na noção de imaginário. Utilizam métodos de fato alegóricos e mentirosos para atingir o poder – e as fake news de Trump e Bolsonaro são os melhores exemplos disso.

Para autor, vírus é mais um sintoma do que uma causa
Os neototalitários tiram partido da hiperconexão e da leitura algorítimica e superficial das redes sociais para implantar mentiras que alimentam os desvalidos e/ou classistas desse corpo-zumbi do capital. É uma lógica de terror, de apavoramento, como explica o autor. Através do medo, o imaginário domina a imaginação, retirando de cada um, uma e uni a capacidade de reformular suas realidades. “O imaginário é a energia fóssil da mente coletiva, as imagens que a experiência depositou ali, a imitação do imaginável”, explica Berardi. “A imaginação é a energia renovável e sem julgamentos. Não é utopia, e sim recombinação do possível”. Um corpo que não para e que, como assinalou Jonathan Crary, foi convencido de que precisa estar trabalhando em qualquer lugar, qualquer situação, no esquema 24/7 (24 horas, 7 dias por semana), acaba virando uma presa fácil do imaginário.
Amplia esse processo a transformação profunda que está acontecendo em nossa natureza relacional e cognitiva. Nos últimos 30 anos, lembra o autor de Extremo, fomos abrindo mão da interação física (“na qual as trocas linguísticas são imprecisa e ambíguas”, e portanto, “infinitamente interpretáveis”) para a dimensão conectiva (“em que as pessoas interagem com uma densidade cada vez maior, mas sem que seus corpos se encontrem”). A conexão pressupõe uma constante erupção, e ela é imberbe, imatura, “sem pelos” e, portanto, sem profundidade, atrito e aderência. Um coliseu diário de avaliações e cancelamentos, com muita intensidade, certezas, monólogos… que são convertidos em fácil esquecimento. As redes sociais têm ainda “uma precisão que os vírus de computador podem interromper, desviar, mas que não conhece a ambiguidade dos corpos físicos e nem a imprecisão como possibilidade”, escreve Berardi.

Mas aí aconteceu um coronavírus. Um organismo invisível, reação do próprio “corpo planetário” a esse torpor infinito. Essa força invisível obrigou o mundo a parar. E o que veio, logo depois? Javalis atravessaram ruas italianas, pavões tomaram esquinas da Espanha, araras ganharam a orla de Ipanema, gazelas ocuparam o lugar dos carros no Japão. O mar ficou mais limpo, as estrelas voltaram a ser vistas nos céus de algumas cidades. Ah, sim, as bolsas quebraram. E os analistas econômicos se apressaram em dizer que as intervenções não surtiriam efeito, porque, como Berardi assinala, “a crise vem do corpo. Foi o corpo que decidiu diminuir o ritmo. A desmobilização geral provocada pelo coronavírus é um sintoma da estagnação, antes mesmo de ser a causa”.
O desenrolar das Crônicas da psicodeflação mostra que a pandemia nos apresentou a radicalização de um impasse. Se por um lado, como defendeu Bruno Latour em artigo citado por Berardi, ficou provado que o “trem do progresso” poderia parar e que o “novo estilo de vida” defendido por ambientalistas era passível de ser cumprido, por outro os abismos de desigualdade acirrados pela globalização ficaram ainda mais grotescos. É particularmente nesse ponto que o livro pode despertar o interesse e a reflexão de leitores que, como eu, nasceram e foram criados nesse país da América do Sul, que a pensadora e artista Grada Kilomba definiu como “um projeto colonial bem sucedido”.
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Berardi constrói um inventário de desigualdade e tece uma teia riquíssima de referências e provocações. Faz isso a partir da sua visão de mundo como italiano, mas sem deixar de contemplar o diálogo com autores que se debruçaram sobre outras realidades – caso de Achille MBembe, de Necropolítica. Suas reflexões sobre os abismos provocados pela concentração de renda e a determinação, pelo estado, daqueles que devem sobreviver e os que podem morrer me fizeram somar as imagens das covas rasas para imigrantes latinos e africanos em Nova York às sepulturas em Manaus e aos ônibus e trens superlotados de trabalhadores no Rio de Janeiro – “são quase todos pretos”, diria a canção Haiti, de Gil e Caetano. “Não para, não para, não para não”, poderia tocar ainda uma playlist fictícia.
Minha colagem de imagens tem ainda a esquina tomada pelas bicicletas e os corpos exaustos dos trabalhadores de aplicativos de delivery, que enxerguei, um tanto culpada, da janela de um consultório médico refrigerado em Botafogo. Eles se encostavam em árvores e ocupavam o meio-fio para um almoço coletivo e ínfimos repousos antes de novas pedaladas de quilômetros. Que proteção foi providenciada para essas pessoas, que fornecem um serviço essencial durante a pandemia? Vem o flash do presidente do Brasil com a máscara no queixo, negando a compra de milhões de doses de vacinas. E o da distribuição de centenas de cestas básicas por entidades como a Redes da Maré, que mobilizaram seus próprios esforços para suprir a omissão do poder público. Um pêndulo entre a crueldade do acúmulo e a reorganização solidária. Para onde vamos, depois dessa experiência de Apocalipse? Extremo nos obriga a pensar, e a escrita de Berardi é um aceno para os chamados do Juízo Final. O que queremos, depois da catástrofe?
Como adiar o fim da partida com a Morte?

“O sétimo selo”: como adiar a vitória dela?
Ler não é apenas mergulhar nas histórias propostas pelo outro, é conseguir trazer essas histórias para si. E, para mim, carioca sitiada por um país ainda colonial em negação pandêmica, foi particularmente emocionante enfrentar a passagem de Berardi por cenas dois grandes filmes. Na primeira, em O sétimo selo, de Ingmar Bergman, Antonius Block (Max von Sydow), cavaleiro das Cruzadas, encontra a Morte (Bengt Ekerot) numa praia e a desafia para uma partida de xadrez. O jogo tem como objetivo protelar a devastação causada pela peste nos povoados da região. E o que é preciso fazer para adiar esse encontro com a Morte, que a pandemia nos mostrou de modo tão cabal? Para Berardi, “distribuir a riqueza produzida pela coletividade, garantir a cada indivíduo renda suficiente para levar uma vida muito frugal, abolir a propriedade privada, investir tudo em educação, saúde, transporte público. Simples, não é?”, ele pergunta.

Sabemos que não. Entra então a segunda cena cinematográfica: Pris (Daryl Hannah), a replicante de Blade Runner, diz “somos estúpidos, vamos morrer. Não é necessário fazer disso um drama”. Ao rever o filme depois de ler Extremo, vislumbrei o líder replicante Roy – o magnífico Rudger Hauer – também diante de um tabuleiro de xadrez). Sim, não sabemos direito quantos de nós vamos morrer, apenas que seremos muitos. Como diz Angelo, um dos amigos de Berardi que ganha voz no diário do pensador, os vírus, reações do planeta doente, são agora como “os leões do passado”. Estamos nus, na savana, alguns mais nus do que outros. E fomos lançados aqui por governos que, se estivessem no filme de Bergman, colaborariam de forma decisiva com a Morte e o seu avançar no tabuleiro.
Nossa perspectiva – a minha, nesta resenha, a do autor, em seu livro – tem muita desolação, assumimos. Mas eu caminho para uma conclusão falando da segunda parte de Extremo, e tentando apostar ao menos em próximos lances da partida com a Morte. É nas Seis meditações no limiar que o autor propõe, em ensaios mais fragmentados e elípticos, que talvez resida na manipulação da linguagem e na insistência numa vida corpórea a possibilidade de adiamento do fim de jogo – no xadrez, na savana.
Fazer da linguagem um vírus
Na primeira “meditação”, Limiar e cosmopoiesis, Berardi retoma Blade Runner, filme em que Ridley Scott une livros de William Burroughs (de quem pegou o título e a atmosfera de assombro psicológico, vinda de uma epidemia de câncer) e Philip K. Dick (saiu de Androides sonham com ovelhas elétricas? boa parte da trama). Até que ponto nos tornamos androides, com pensamentos “implantados”, como Rachel (Sean Young) e o próprio caçador Rick Deckard (Harrison Ford)?
Scott conseguiu capturar, neste filme de 1982, uma atmosfera de recrudescimento da maquinação do corpo em pleno crescimento de uma onda conservadora (Reagan, Tatcher). É particularmente intrigante lembrar que a história de Blade Runner começa em um futuro não muito distante de 1982- novembro de 2019, exato momento do ano retrasado em que o coronavírus começou a se espalhar pela China. E, se eu noto essa coincidência, Bernardi aponta outras, vindas de antenas de grandes diretores da atualidade: Você não estava aqui, de Ken Loach, em que o diretor apresenta a precariedade das condições de trabalho no modo 24/7; Coringa, de Todd Phillips, e o mergulho no sofrimento psíquico causado por uma sociedade de exclusão às diferenças; Parasita, de Bong-Joon-ho, e a luta pela sobrevivência em ritmo frenético das classes sociais literalmente soterradas pelas camadas de privilegiados.

Como reagir? Criando vírus linguísticos que obriguem os atuais sistemas cognitivos a uma pausa, defende o autor. Acrescento: buscando maneiras de fazer da linguagem, especialmente da arte, um conjunto de borrões nos discurso, possibilidades de travas e curto-circuitos na engrenagem hiperacelerada das novas narrativas. Ao escrever Extremo, Berardi de alguma forma cumpre sua estratégia, abrindo mão dos textos imediatos nas redes sociais para convidar leitores/interlocutores a uma reflexão mais vertiginosa, com possibilidades de prolongamentos em ações. É nesse ponto que o texto da última “meditação”, Beijos, soa especialmente adequado para um desfecho. O acirramento do imaginário, que sufoca a imaginação como se ela fosse os cidadãos invisíveis de Parasita, tem tolido nossa ação e o uso afetivo de nossos corpos físicos.
Ao se imaginar vacinado, liberado para sair à rua, Berardi afirma que gostaria de beijar cada um que encontrar. Ele teme que a pandemia tenha instaurado um grande temor do outro, que pode deixar sequelas, mas pergunta: “conseguiremos tolerar o absurdo da história se não pudermos nos aproximar de modo carnal?”. Mais longe da vacina que o contador dessas histórias, eu também me imagino no carnaval “bochecha com bochecha e lábios com lábios” e estou certa de que, sem isso, podemos temer “que a barbárie prevaleça sobre a civilização” e “a extinção seja o único horizonte no nosso futuro”.
Se existe um motivo para tentar mais um lance no tabuleiro, e seguir enfrentando a Morte, é a aposta no momento em que os beijos e abraços voltarão a existir. Vamos vivê-los de volta como o diretor de cinema que retorna à sua pequena cidade natal e recebe de um amigo morto, o projetista do cinema local, uma lata com um filme. Sentado na plateia, assiste então a todas as cenas de beijos censuradas pelo próprio amigo décadas antes, quando ele, agora um homem chorando no escuro, era apenas um garotinho descobrindo o encantamento pelas imagens. Com essa sequência do filme Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore eu me despeço à italiana de Extremo e dos eventuais leitores dessas linhas. A obra de Berardi é também um livro sobre a afirmação do poder do desejo e da criação permeada pelos afetos.
Enquanto os beijos e abraços não são possíveis, cuidemos um dos outros e da memória dos corpos – os que desapareceram, por negligência; o do Papa Francisco, conversando corajosa e serenamente com o invisível; os daqueles que amamos e ainda amaremos um dia.
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O olho nas ruas e espaços culturais do Rio e de São Paulo, sempre clicando e filmando cenas e eventos com rara sensibilidade para as redes sociais da revista.
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