Elvis está morto, proclamava o Living Colour nos anos 1990 – e, pra Mateus Fazeno Rock, já foi tarde. O cantor e compositor cearense, cujo impressionante disco de estreia (abaixo) tem suscitado comparações indo de Chico Science a Pink Floyd, se diz ligado às origens negras do gênero: “É um trabalho como o dos pretos americanos nos anos 1940; um processo de criação espontâneo, com poucos recursos e sem perspectivas, cuja função é comunicar nossas dores”.
Mateus admite, porém, que sua obra ultrapassa as estruturas do rock (esse senhor setentão e, muitas vezes, conservador). “Me vejo nessa raiz do blues, mas escuto de tudo. Minha música é afetada por muitos ritmos”, declara ele, que se fascinou pelo estilo ainda na infância. “Tive um vizinho que organizava festivais de metal no quintal de casa, mas também tocava grunge. Havia uma coisa melancólica naqueles ritmos rápidos que eu gostava de sentir”, elabora o jovem de 26 anos, que assistia às apresentações de cima do muro, “enquanto a mãe deixava”.

Foi a partir dessas vivências no início dos anos 2000 que, com “sangue e pus” (como diz em Melô do Djavan), brotou o autoproclamado “rock de favela” de Mateus Henrique Ferreira do Nascimento. Em meio à abertura do álbum Rolê nas ruínas (2020, distr. Tratore), o termo soa adequado: As vozes da cabeça é um amálgama de ponto de macumba, funk carioca e guitarra, a partir do qual o vocalista entoa rimas de cunho social com forte sotaque próprio.
Após a letra conclamar o ouvinte a ir “lá pra ver” (a realidade da periferia), Mateus recorre de novo à imagem do muro: “Pula o muro, uhuu / Esse muro, uhuu / Eu vou abrir caminho (2x) / Sai da frente (2x) / Eu vou andar na rua sozinho”. Soa como uma carta de intenções do rock de favela, e é mesmo – “uma maneira de vincular-se ao gênero musical, mas afirmando sua diferença”, nas palavras sábias da revista “Barril“ (uma espécie de prima baiana da Caju).
Um tijolo a menos no muro
A “pulada” de muro apregoada por Mateus se dá, portanto, em vários níveis: do musical, com a mescla de linguagens e sons, ao social, com o convite pra participar do rolê pela desigualdade de Fortaleza, sua cidade natal (o qual, no fundo, se aplica a qualquer grande cidade brasileira). Até na contracapa do disco ele aparece debruçado sobre um muro, e embora eu tenha me perguntado se essa escolha foi intencional, não passo a pergunta adiante.
No contexto do rock, uma outra escolha soa interessante: pular o muro em vez de derrubá-lo (como quer o personagem de Roger Waters em The Wall). Em entrevista pro site Monkeybuzz, Mateus tangencia o assunto ao falar sobre a “excelência preta”: “Tem um flow, uma manha, um suingue em várias coisas da vida pela própria vivência. Já que a gente tem tanto que se virar, pega as manha”. Na capoeira, é a sabedoria da esquiva: desviar em vez de confrontar.

Representatividade importa
A opção pela fluidez, e não pela dureza às vezes associada ao rock, tem muito da experiência do Mateus adolescente. Após o encanto inicial com “o ruído, a guitarra distorcida e as melodias simples” de bandas como o Nirvana (homenageado na Melô do Djavan com uma citação a Smells like teen spirit), o menino preto e periférico passou a ter dificuldade pra se enxergar no estilo: “Me marcou muito o vocalista de uma banda do Rio chamada Plastic Fire. Foi uma das primeiras pessoas pretas que vi cantando rock”.
O achado veio com um senão. “No show ele tinha uma postura diferente, rebolava. Mas aquilo gerava comentários na plateia… No hardcore, qualquer gesto fora do padrão corporal rígido pode ser mal interpretado.” Esse contato precoce com as contradições do rock, cuja rebeldia foi aos poucos solapada por clichês desse tipo, está na base da arte de Mateus.
‘Saber que nóis pode ser tudo’
Em sua obra, ele recusa crenças que limitam o gênero, como a obrigação de ter uma banda com instrumentos tocando ao vivo: “No início eu pretendia ter guitarra, baixo e DJ, mas não tinha como ensaiar assim. Mais tarde, percebi que não valia o esforço”. Da necessidade surgiu uma forma de trabalho que, hoje, está na essência do rock de favela: “Fui testando opções e vi que, só com DJ, ganhava mobilidade e autonomia, além de ser mais válido financeiramente”.
Esse é um dos motivos pelos quais, em termos de formato, “o rock de favela se comunica com o rap e com o funk”, nas palavras do próprio artista. Há outros: o jeito de cantar e rimar de Mateus remete diretamente aos MCs, e sua performance muitas vezes é acompanhada por dançarinxs que, de “intervenção pontual”, passaram a componentes do rolê.
As influências vêm ainda de outros lugares. Aos 15 anos, Mateus já era “cria de sarau” e participava de apresentações de teatro e música. Nesse ambiente, começou a entender o potencial não só do corpo e da oralidade, mas também do grupo: “Quando comecei a compor, em 2017, fui me juntando a outras pessoas. Pra mim, nunca vai fazer sentido sozinho”.
Missa negra
Mais do que no disco, essas relações todas ficam evidentes no YouTube. No canal de Mateus, há desde experimentos como uma versão acústica de “Farinha” (Djavan) a curiosidades como um show com a formação inicial de guitarra, baixo e DJ. Mas o destaque mesmo fica por conta do trampo coletivo em videoclipes (de músicas como Legal legal) e na Missa negra (abaixo), um conjunto poderoso de performances dele e de outros artistas “pretos e favelados” locais.
A “missa” tem duas versões: uma produzida e outra ao vivo, ambas gravadas em 2020. Elas congregam a música homônima e outras do Rolê a composições novas, poemas, dança e videoarte. Como Fran Nascimento recita em Poesia do que me engasga, “da minha periferia surgem potências”, e é difícil não se impressionar com a força dela e a de Mateus (nos versos de “Uma flanela para limpar a cena” ou em músicas como “Do Harlem a Cajazeiras”).
O que une álbum e performances é o conceito. Segundo nosso entrevistado, que concebeu e produziu as “missas”, todos os trabalhos são “sobre favela e sobre pessoas que trazem consigo histórias de seus territórios”. O guarda-chuva permite ampliar a frequência original de Mateus, passando a englobar vozes femininas (como a de Fran) e LGBTQIA+ (como Muriel Cruz), em geral saídas dos saraus da cidade: “São elas que fazem a poesia de Fortal acontecer”.
Em busca da batida perfeita
Nesses registros, dá pra perceber também como outros elementos da cultura negra se juntam à teia. O reggae e suas linhagens, do ska ao ragga, são onipresentes, com destaque pra “Névoa” e pro “bam bam” de Sister Nancy na “Trilha sonora para o fim do mundo”.
A mesma música tem referência a religiões de matriz africana, presença marcante em batidas, danças e letras: “Cresci em família católica, mas ouvindo a batucada da umbanda no quintal de trás, onde funcionava um terreiro. Não faço parte de nenhum dogma, mas gosto de capoeira, de coco e de pontos por causa das histórias. É como uma viagem no tempo”.

Há ainda lisergia e até certa psicodelia em faixas como “Bem lentinha/Slowmotion” e “Aquela ultraviolência”. Para Mateus, os cruzamentos vêm naturalmente: “São texturas que as músicas pedem. Os samples, reverses ou efeitos estão na característica do trampo, que dialoga texturas mais processadas com uma voz mais natural, ou uma bateria real com uma de beat”.
Essa paisagem sonora resultou da parceria entre ele (cantor e compositor de quase todas as faixas) e Rami Freitas, que produziu e mixou o álbum, além de ser responsável pela maioria dos instrumentos (menos o baixo, em geral a cargo de Eric Lennon). “Nosso pensamento no estúdio foi sempre o de montar um beat”, explica o vocalista, dando pistas de como o processo criativo deles deu origem ao novelo nada óbvio que é o Rolê.
Cenas do próximo capítulo
No segundo disco, a produção será com Agno e Caiô, integrantes da banda local Outra Galera. O trio vinha trabalhando desde setembro com a intenção de que saísse em março, mas os planos tiveram de ser adiados em função da pandemia: “Estamos fazendo remoto, usando programas na internet para os arranjos e buscando formas seguras de gravar o presencial”.
E o que se pode esperar do rock segundo Mateus, capítulo 2? “Guitarras, texturas eletrônicas e maior influência do hip hop no ritmo”, descreve ele. Já dá pra adiantar o título? A resposta vem após certa hesitação, então prometo não revelar o nome a ninguém – nem aos leitores da Caju.
Mas, se o apóstolo do rock de favela me permite dar uma pista, digamos que o nome tem a ver com o mesmo campo semântico da “missa negra”. E mais não posso dizer, sob pena de ser excomungada do rolê…
Playlist da Caju une o rock de Mateus a suas referências
Enquanto o dia da anunciação não chega, só nos resta matar a curiosidade com a nova playlist da Caju no Spotify: O rock segundo Mateus (abaixo) junta as músicas dele com as influências citadas neste texto, além de outras referências não abordadas aqui.
A lista começa com Trixie Smith, cantora de blues dos anos 1920 que, diz a lenda, teria sido a primeira a falar em “rock and roll”. Depois, passa por gerações de músicos negros que contribuíram para o surgimento do gênero, culminando em Little Richard e Chuck Berry; a partir daí, passeia com liberdade por brasileiros e estrangeiros, indo de Jorge Ben a Little Simz.
‘O mesmo Brasil, com outro som’
A curadoria teve a colaboração do próprio Mateus, que sonha “desde pivete” em viver do que gosta: “O que mais desejo é continuar fazendo isso e viver bem, de uma forma que me encante, sem me distanciar das origens”. E como seria o Brasil se ele atingisse a meta e houvesse mais rock de favela? “Seria o mesmo Brasil, mas com outro som”, conclui sorrindo.
No que depender da Caju, a carreira desse moço com vocal de Falcão, letras de Marcelo Yuka, visão artística de Chico Science e sensibilidade musical de Criolo está apenas começando. Mateus é nosso pastor, e rock de favela não nos faltará.
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Foto do cabeçalho: Nay Oliveira.
Autor
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Editora especialista em conteúdos multiplataforma. Formada na ECA-USP e apaixonada por música desde a adolescência, começou a escrever e editar em fanzines como U2 Brasil e Midsummer Madness. Foi editora-assistente da revista Bizz, mas se orgulha mesmo de ter transformado o zine Panacea em revista. Na Caju, ela recupera essa memória para falar do que vê de interessante na cena musical dos anos 2020.
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Editora especialista em conteúdos multiplataforma. Formada na ECA-USP e apaixonada por música desde a adolescência, começou a escrever e editar em fanzines como U2 Brasil e Midsummer Madness. Foi editora-assistente da revista Bizz, mas se orgulha mesmo de ter transformado o zine Panacea em revista. Na Caju, ela recupera essa memória para falar do que vê de interessante na cena musical dos anos 2020.