O canto maravilhoso de um pássaro que se esconde na mata é a imagem que vem à nossa imaginação quando ouvimos o nome do uirapuru. Diversas lendas envolvem essa criatura das florestas, uma delas diz que um valente guerreiro indígena se apaixonou pela filha de um grande cacique, um amor proibido, o guerreiro pede a Tupã que interceda na situação e Tupã o transforma em um pássaro de canto sedutor para poder ficar perto da amada. O cacique, no entanto, também se apaixona pelo canto do pássaro e começa a persegui-lo, se perdendo para sempre na floresta. O uirapuru passa então a cantar em volta da aldeia na esperança de retornar à forma humana e realizar seu amor.
Outra lenda diz que o uirapuru traz sorte a quem o possuir, motivo pelo qual o passarinho é caçado e suas penas utilizadas para fazer amuletos. O uirapuru canta somente na época de acasalamento, o que ocorre num período de duas semanas por ano, seu canto se caracteriza por não repetir a mesma frase musical, variando sempre a combinação das notas, coisa raríssima na natureza e que ajuda a aumentar a crença nos poderes mágicos do pequeno ser. Dizem ainda que quando ele está cantando todos os outros animais ficam em silêncio. O canto do pássaro foi transcrito para notação musical por vários músicos, aqui podemos conferir a versão realizada por Daniel Augusto de Oliveira Machado:
As lendas amazônicas instigaram a imaginação de diversos artistas do modernismo brasileiro e o compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959) não ficou imune ao seu encanto. Villa-Lobos empreendeu diversas viagens pelo interior do Brasil recolhendo material musical junto ao povo, material que seria utilizado de forma genial, criando seu estilo de composição que ocupa posição única no universo da música. As viagens do Villa pelo interior do Brasil também deram origem a diversas lendas, muitas delas inventadas pelo próprio compositor, como histórias de aventuras entre índios antropófagos e incursões pelo interior da selva amazônica. Uma história curiosa é a que envolve o mestre numa espionagem musical. Nessa época a música pública no interior do Brasil ficava a cargo de bandas que se apresentavam nas praças e nos eventos festivos e havia muita disputa entre as cidades, cada qual querendo o título de possuir a melhor formação instrumental, prêmio conquistado em famosas competições.
Viagens de Villa-Lobos deram origem a inúmeras obras-primas
Villa-Lobos era conhecido por seu ouvido e memória impressionantes e uma vez em que estava visitando uma cidade do interior resolveu ajudar numa pendenga com a cidade vizinha: a banda local não tinha a partitura de uma composição especialmente difícil tocada pela rival, que se negava a partilhar a peça, e Villa-Lobos foi como espião assistir uma apresentação da banda. Ao voltar, ele anotou de memória todas as partes instrumentais, deixando os músicos felizes em poder executar a obra e de boca aberta com a capacidade do maestro. Esta aventura é verdadeira, mas sabe-se que muitas podem ter origem na imaginação.
O que importa para nós é constatar que as experiências vividas nessas viagens frutificaram em uma série de obras-primas do compositor e maestro, entre as quais se destaca o poema sinfônico Uirapuru, cuja partitura original é de 1917. O poema sinfônico é um tipo de composição que surgiu no século XIX e pretende descrever através da música um enredo poético que pode ser uma peça literária, um poema ou uma cena da natureza. No caso do Uirapuru, o roteiro criado para a composição é de autoria do próprio Villa-Lobos:
Em uma floresta calma e silenciosa, aparece um índio feio, maldoso Feiticeiro, tocando uma flauta de osso. Da densa folhagem das árvores surgem jovens e belas índias que afugentam o intruso com empurrões e xingamentos. Elas procuram o Uirapuru, trovador mágico que, segundo os velhos sábios da tribo, outrora fora o Deus do Amor. Ao longe, trilos suaves anunciam a presença do pássaro cobiçado. Enfeitiçada por seu mavioso canto, a mais linda das índias, adestrada caçadora, fere-o com sua flecha. Caído ao chão, o Uirapuru transforma-se no mais belo cacique da floresta. Entretanto, o som fanhoso e agourento da flauta de osso anuncia a volta do índio feio, sedento de vingança. E apesar do protesto das jovens, o ingênuo guerreiro, demonstrando toda sua coragem, enfrenta o Feiticeiro. O cacique é ferido mortalmente e as índias, com ternura e tristeza, transportam seu corpo para uma fonte. Subitamente o jovem volta a ser pássaro e, voando, desaparece cantando por sobre as árvores. Desde então, no cenário da floresta, reino encantado de muitos sons, de grilos, mochos, corujas, bacuraus, sapos e outros animais cantadores, tudo silencia quando o Uirapuru canta sua longa e bela melodia.

Com advento do modernismo, o poema sinfônico começou a ser mal visto pelos críticos musicais. Uma música descritiva não cabia nos ideais de pureza que passaram a regrar os tratados de composição. A linguagem da música deveria se referir unicamente à própria música e seus elementos. No entanto, são tantas as qualidades dessas composições realizadas por grandes mestres que elas permaneceram no repertório até os dias de hoje, superando o preconceito. No caso do Uirapuru, além de poema sinfônico, ainda havia uma pretensão coreográfica que se realizou em 1934, com a peça revisada pelo próprio compositor e a coreografia apresentada pela primeira vez no teatro Colón em Buenos Aires.

Instrumentos de origem indígena, como o reco-reco, inovam a partitura
A partitura apresenta uma instrumentação de certa forma tradicional, cordas, sopros, piano, mas na percussão Villa-Lobos traz uma série de instrumentos extremamente inovadores como reco-reco, coco, surdo e tamborim. Em termos de composição, é um dos primeiros sucessos do compositor no sentido de amalgamar seus conhecimentos musicais eruditos com o material da tradição musical brasileira. Logo no início, ouve-se o famoso acorde de Tristão, da ópera Tristão e Isolda, de Wagner. Com a citação, é como se Villa-Lobos estivesse nos dizendo: “eu sei do que eu estou falando, mas vou levar vocês para um caminho inexplorado. Esse caminho é o da polirritmia, atonalidade e politonalidade, com combinações timbrísticas inusitadas e a criação de um ambiente sonoro que nos traz a memória atávica de florestas virgens e grandes espaços naturais distantes do que conhecemos por civilização”.
Outra composição que fala do uirapuru de forma mais singela é a canção de Waldemar Henrique (1905-1995) para voz e piano. O compositor paraense traz de forma bem humorada a conversa de uma personagem feminina e um “caboclo” navegando de canoa por um rio. Durante a viagem vão aparecendo várias histórias relacionadas a seres lendários do folclore brasileiro como o lobisomem, a mãe d’água e por fim ele diz que “pegou” um uirapuru. O desenrolar da cena faz dessa canção uma página das mais cativantes no repertório lírico brasileiro.
Waldemar Henrique nasceu em Belém, de pai português e mãe indígena. Sua mãe morreu muito cedo e ele foi morar em Portugal com o pai, voltou para o Brasil com 13 anos e passou a viajar pelo interior da região amazônica estudando a cultura tradicional local, que se tornou parte fundamental de sua produção musical. A canção Uirapuru faz parte de uma série conhecida como “Canções Amazônicas” que retratam de maneira muito pessoal as lendas da região. Uma característica interessante dessas composições é a subordinação total da música ao texto sem passagens virtuosísticas ou grandes saltos de intervalos que dificultem a compreensão. A expressividade dessas canções é emocionante e há relatos de apresentações para as populações do interior do Amazonas onde o público, após a audição, vem conversar com os músicos e contar histórias semelhantes vividas em seu cotidiano. São raros esses momentos em que a obra de arte consegue borrar os limites entre o mundo do real e da ilusão.
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Artista visual, pianista e colunista de música clássica da #RevistaCaju.