Fui convidado para uma experiência inusitada, um concerto à luz de velas. É um projeto que acontece em 90 cidades do mundo e leva a música clássica a locais emblemáticos, no Brasil está presente no Rio de Janeiro e São Paulo. Nessa noite no Planetário da Gávea no Rio de Janeiro o conjunto era um quarteto de cordas e o repertório composto por obras de Beethoven, transcrições de sonatas para piano e o quarteto Op18 n.4 em Dó m. O evento foi realizado com todo cuidado em relação aos protocolos de prevenção ao covid e muito bem organizado. A ideia de deslocar a música clássica da sala de concertos já tem um histórico desde a Viena Imperial, onde se faziam concertos nos jardins.
No Brasil, tivemos várias iniciativas como as gigantescas apresentações de canto orfeônico organizadas por Villa Lobos, que ocuparam até estádios de futebol e o projeto Aquarius, do maestro Isaac Karabitchevsky, que reunia públicos de até cem mil ouvintes em grandes espaços abertos. Mais recentemente, o festival MIMO tem levado a música para igrejas e praças.

O projeto Candlelight acontece em espaços diversos, como o Planetário da Gávea e o hotel Copacabana Palace, e faz parte desta tradição com um escopo mais singelo. O que não significa que seja menos importante: as apresentações em espaços fora do eixo das salas de concerto são fundamentais para a formação de público para a música clássica, Podemos nos lembrar do saudoso Música no IBAM e os recentes Música nas Igrejas e Música nos Museus.
Voltando ao evento, foi uma grande emoção ouvir música ao vivo depois de tanto tempo sem esse contato e a ambiência colaborou para tornar a experiência mais instigante.
Toda a iluminação da sala e da entrada era feita com velas, mas não há perigo de acidentes, pois as velas são elétricas, apenas simulam o efeito das chamas tremulando criando uma cenografia muito interessante.
Fiquei pensando nos vários séculos em que a música foi tocada à luz de velas e lampiões, quantos compositores escreveram sob a luzinha fraca de uma lamparina. Há uma história de que a cegueira de Bach no fim da vida foi consequência de anos estudando à luz de uma vela na calada da noite, pois seu pai o proibia de estudar certas partituras complexas e o menino as lia de noite, escondido, com uma vela acesa, ou mesmo a luz da lua, para iluminar as notas no papel.
Em Veneza, palco com nome de fênix renasceu duas vezes das cinzas
E os teatros, espetáculos de ópera totalmente iluminados pelas chamas das velas? Não é à toa que existem tantos relatos de incêndios. O Teatro La Fenice de Veneza inaugurado em 1792 deve seu nome à lenda da Fênix, a ave que renasce das cinzas. O nome não poderia ser mais bem escolhido, pois em 1936 o teatro pegou fogo e grande parte de sua plateia e o palco foram destruídos, pouco mais de um ano depois o teatro foi reinaugurado e voltou à ativa. Em 1996 nova tragédia, um incêndio criminoso o destruiu completamente.

Um trabalho fabuloso de restauração conseguiu trazer de volta o teatro num projeto ainda mais fiel à planta barroca original. Reinaugurado em 2003 o La Fenice segue como uma das mais emblemáticas casas de ópera do mundo.
Na história da arte temos diversas pinturas documentando concertos à luz de velas. Uma tela do pintor Julius Schmid mostra um salão da alta burguesia vienense onde o compositor Franz Schubert se apresenta ao piano.
A cena imaginada pelo pintor é iluminada por um magnífico lustre onde dezenas de velas cintilam e um candelabro sobre o piano.Nessa pintura, que mais parece um cenário,Schubert é apresentado como um astro de cinema, numa pose teatral que o torna o centro das atenções.
Um outro quadro, este de Gustav Klimt, também mostra Schubert ao piano, no entanto, sob uma atmosfera psíquica completamente diferente. Um candelabro do lado esquerdo da cena ilumina a face de uma jovem que parece absorta com a música que Schubert está tocando, concentrado ao piano, o compositor tem seu rosto iluminado pela mesma luz, porém na penumbra, esse rosto de perfil emerge de uma escuridão profunda em contraste com a jovem que brilha junto com a luz do candelabro e as duas mulheres (cantoras?) atrás de Schubert.

A luz das velas se reflete num espelho ao fundo e cria uma série de reflexos que unem as personagens num círculo de energia que vibra como se a música do compositor pudesse se tornar visível. Tudo se desmaterializa nesse círculo exotérico, a vestimenta das mulheres parece se vaporizar. Uma quarta figura, masculina, emerge das sombras destoando do círculo místico em volta do piano, que mensagem traz esse rosto misterioso? Estaria como o homem do realejo no final da Winterreise chamando Schubert para cantar suas últimas canções? Esse quadro tão cheio de ambiguidades também teve seu destino selado pelo fogo, foi queimado pelos nazistas em 1945, quando em retirada incendiaram o museu Schloss Immendorf na Áustria.
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COMO IR A UM CONCERTO À LUZ DE VELAS:
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Artista visual, pianista e colunista de música clássica da #RevistaCaju.