Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Gilberto Gil
É preciso ter fé para seguir, andar, amar e ser livre no hoje que se escorre e desmancha em cada passo. Semana retrasada uma amiga relatava uma agressão sofrida por um casal homoafetivo à luz do dia na zona sul do Rio de Janeiro. Conscientes da violência e ainda com o terror regendo seus corpos, se deslocaram à delegacia para depoimentos e outros encaminhamentos.
Como é triste pensar que apenas o gesto de andar e circular pela cidade nos torna vulneráveis, e isso não só pelas leituras de nossas companhias, mas de nossas roupas, vozes, trejeitos etc. Isto tudo e tantas outras violações reconfiguram a frase de Jota Mombaça, quando a mesma situa: O MUNDO É MEU TRAUMA (leia aqui o texto de artiste).
Trouxe esta cena para diálogo na compreensão de outras tantas hostilidades que vivenciamos pelos telejornais, internet e circulações cotidianas. Lembro também de uma escrita sobre o trabalho Relação no espaço, do artista Thiago Saraiva, na qual eu refletia sobre as perspectivas e ressonâncias impregnadas na instalação.
A obra e sua materialidade constroem um sentido particular no espaço, e amplia percepções corpóreas que transbordam as inquietações do artista e se alastram ao espectador, derivando muitas possibilidades de leituras de seu processo poético e de sua visualidade.

A composição estética de alguma forma nos convida a uma abstração e desengessamento do conceito de “objeto artístico”, e pela visualidade nos aproxima dos gestos e desejos que a própria experiência na obra suscita. Nada é trivial nas escolhas estéticas apresentadas por Thiago. A passarela em carpete, de cor púrpura acompanhada pela frase “ande como homem”, detalhada e inscrita em bordado, que se soma ao vídeo, no qual nos apresenta seu processo em ato e som.
Na convivência com a proposta é possível imergir nas suas literalidades e complexidades, que elucidam as provocações impregnadas em suas margens, denotadas pelas questões e caminhos que o artista transpõe a partir da frase – que permeia o cotidiano, colocando em jogo o que se entende por “andar como um homem” – entre as mais variadas disputas de significações,e das reivindicações estéticas em torno das que aqui denomino “frases de controle comportamental” e suas reverberações.
A proposta ativa lâminas urgentes do presente, convocando-nos a posturas e reflexões que apontam para espelhamentos de um presente cruel e brutal nas relações que construímos apenas existindo, e isso me enfraquece, desmobiliza minhas forças na tentativa de encontrar respostas para a barbárie.

No mesmo passo, questiono se estou no mesmo país que viu Flávio de Carvalho desfilar pelas ruas do centro de São Paulo, apresentando o New look. Segundo o artista, um “traje masculino de verão”. Composto por blusa de mangas curtas, saia e sandálias, a indumentária carrega uma reflexão sobre costumes e organização social. A pauta também nos mobiliza pensar o Brasil, um país tropical de heranças e vestes colonizadas – mas isto é um outro assunto.
Flávio nomeado pela história da arte brasileira precursor da performance, colocou seu corpo para uma reflexão sobre direito de ir e vir, e com o gesto propositor de liberdade, subverteu paradigmas, de forma pragmática como lugar possível das experimentações do, e de como andar, colaborando para argumentações, assim como o jovem artista Thiago Saraiva, entre avanços e retrocessos, mais retrocessos que avanços, sobre masculinidade, gênero, sexualidade, corpo, machismo e tantas outras possibilidades que a arte e as políticas dos corpos/as propõem historicamente.
Penso que não posso parar de andar, apesar de.
Autor
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Curador, mestre em Artes pela Uerj e doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC. É pesquisador no Museu de Arte do Rio, curador do programa de residências do Museu de Arte Moderna do Rio e ex-curador do Galpão Bela Maré, onde ainda atua como colaborador.
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Curador, mestre em Artes pela Uerj e doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC. É pesquisador no Museu de Arte do Rio, curador do programa de residências do Museu de Arte Moderna do Rio e ex-curador do Galpão Bela Maré, onde ainda atua como colaborador.