Três anos de um museu em chamas
No 2 de setembro de 2021 se completam três anos do incêndio do Museu Nacional. Preparando um texto, que será apresentado num evento no final de novembro, vi na própria reflexão que fazia enquanto escrevia a necessidade de não deixar essa data passar. Publico então uma versão resumida e em construção dessa reflexão. Uma tentativa de resistir-se vaga-lume, que em sua pequenez teima tanto para manter faísca acesa na escuridão, como para não desaparecer em meio ao espetáculo de uma sociedade de tantas luzes e holofotes.
O acúmulo de cinzas na nossa cara
Na quinta-feira, 27 de março deste ano, estava embriagada de informações, tentando fazer um levantamento do que havia restado do gigante acervo do Museu Nacional. Numa coincidência triste, em um momento de procrastinação,vejo que a fumaça do galpão da Alke, em Cotia, estava tão alta que já havia chegado nos feeds do Instagram e que uma grande quantidade de obras de artistas brasileiros havia sido incinerada. Até hoje, pelo menos em âmbito público, pouco se sabe sobre as peças que estavam lá ou da real dimensão do incêndio. E isso, por si só, já diz muito sobre a relação mercado-colecionismo-patrimônio no Brasil.

Há pouco mais de um mês, tivemos o caso da Cinemateca Brasileira, que já havia sofrido com outro incêndio e alagamento. Parte do material virou cinzas antes mesmo de se tornar museu. Mastudo isso são apenas os episódios recentes da série trágica brasileira, que lá em 1957 já estampava no jornal:“Completamente destruída pelo fogo a Cinemateca do Museu de Arte Moderna”[i]. Desde então, foram diversos os desastres, com destaque para o incêndio do MAM-Rio, em 1978, mas sem esquecer de outros tantos, como o do Museu da Língua Portuguesa (2015), do CCSP (2007) e do acervo do artista Hélio Oiticica (2009), apenas para citar alguns.
Percebo, então, que como pesquisadora, pensava investigar uma parte das ruínas do passado, mas que na verdade, as cinzas não param de acumular sobre os nossos olhos semicerrados, cobrem nosso rosto e se faz difícil respirar. Como bem definiu Eliane Brum, “O Brasil é um grande construtor de ruínas. O Brasil constrói ruínas em dimensões continentais.”[ii]
O anjo encara nossas catástrofes

Em maio de 2019, o Rio de Janeiro recebeu a exposição “Equilíbrio Instável”, exibindoem suas salas mais de 100 peças de Paul Klee (1889-1840). Após atravessar toda a mostra chegava-se à última sala, onde uma legião de anjos desenhados e aquarelados anunciavam discretamente o que estava por vir. Lá no final, já na saída, havia um quadro apartado dos demais: era AngelusNovus[iii], a tão famosa obra de Klee.
Pintada em 1920, a peça divide sua notoriedade em virtude de dois personagens: Klee, evidentemente, por sua autoria, mas também Walter Benjamin, que mais tarde designaria àquela imagem a alcunha de “o anjo da história”: um ser de olhar desesperado, que prenuncia a destruição. A narrativa já é conhecida, entretanto é válido recapitulá-la. A obra foi adquirida por Benjamin durante sua juventude e deu origem a um de seus textos mais famosos, o qual é constantemente ressignificado: a nona tese sobre o conceito de história. Com uma clara influência do romantismo alemão e do seu messianismo judeu, traz no papel alegórico do anjo, o mensageiro do desencanto moderno, um ser que, de costas para futuro, olha para um passado e encara de frente um monte de ruínas. Esse anjo gostaria de parar ejuntar esses destroços, despertar os mortos, mas não pode. O anjo, segue sendo empurrado para o futuro pela tempestade do progresso[iv].[1]
Este país é o inferno da eterna repetição
A afeição de Benjamin pelas alegorias muito tinha a ver com a possibilidade de descontextualização das mesmas, as quais, diferente da significação simbólica, podem se desenvolver sempre de formas novas, sob recriações infinitas. Assim, pensando no anjo e em meio às nossas ruinas, lembrei do livro de Michel Löwy, com o pertinente título Aviso de incêndio no qual o autor propõe “Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de história’”[v], de Walter Benjamin.
Segundo Löwy, o que Benjamin descreve na sua tesenove, pouco tem a ver com a pintura propriamente dita. Fazendo uso de suas alegorias, Benjamin projeta, a partir da tela, seus próprios sentimentos para fazer uma crítica ao progresso desenfreado e a uma visão extremamente positivista da história.A atitude de Benjamin, afirma Löwy, consiste em desmistificar o progresso e fixar“um olhar marcado por uma dor profunda e inconsolável – mas também por uma profunda revolta moral – nas ruínas que ele produz.” Essas ruínas, como Löwy aponta, não seriam mais aquelas das quais fala Hegel, que atuariam como “provas da ‘decadência de impérios’”, mas são, sobretudo, “uma alusão aos grandes massacres da história […]”(p.92).

O que eu gostaria de destacar nesta análise, é a correspondência entre a modernidade e a condenação ao inferno, feita por Benjamin e comentada por Löwy, em Aviso de incêndio.Tal relação teria sido feita por Benjamin em diversos momentos da escrita do autor, sendo que esse inferno não estaria em um outro plano, nem num futuro.Para Benjamin, “o inferno não é o que nos espera – mas essa vida aqui”[vi]. Entretanto, mais do que enxergar na ideologia cristã a quintessência das trevas, Benjamin se volta à mitologia: o inferno se dá na repetição. Na imposição de um castigo eterno, tal como Sísifo e Tântalo recebem suas devidas punições e as repetem ininterruptamente e para sempre (p. 90).
Ao encaramos a história de frente, tal como o Angelus novus, não demoramos a perceber e afirmar: este país se tornou o inferno e fomos penalizados com o castigo eterno da repetição. Um acervo atrás do outro queimando nosso passado e entrando para nossa história desastrosa num ciclo viciante que volta a se repetir:com as chamas apagadas e, com sorte, parte do acervo e prédio reconstruído, faíscas se preparam para arder em outra instituição.Assim, surge a pergunta: como seguir sempre em frente sem cair no inferno da eterna repetição?
O museu chama
Obviamente, não tenho a pretensão com este breve texto de achar uma solução para a perda constante do nosso patrimônio cultural, esteja ele sob o cuidado de instituições públicas ou empresas privadas. Quero, entretanto, reclamar a necessidade de manter esses desastrosos eventos vivos, não como acervo do passado, bem guardado e documentado, mas como um museu que segue ardendo em chamas, sempre no presente, no Agora, sempre visível, sem virar arquivo-morto da memória.
O Museu Nacional segue o seu processo de reconstrução. Mesmo com todas as adversidades, da arrecadação de verba a um período de restrições pandêmicas, a meta é reinaugurar em 2025, com o interior do palácio modernizado. Também é possível que ocorra uma abertura parcial em 2022, em virtude das comemorações do Bicentenário da Independência. Por meio de licenciamento, já foi definido o consórcio responsável pela obra e imagens de um novo museu circularam pela internet gerando polêmica[vii]. Os projetos para restauração das fachadas e recuperação do telhado já foram aprovados pelo Iphan. Diversas instituições estão doando peças para recompor o acervo. Mesmo com as perdas, nossa coleção egípcia segue senda a maior da América Latina e 16% da coleção de aracnídeos foi coletada mais uma vez por incansáveis pesquisadores. “Vamos reconstruir o museu mais antigo do Brasil”, clamam diversas vozes. O “Museu Nacional vive”, nos convencem as instituições envolvidas e as hashtags que pipocam (cada vez menos) nas redes sociais.
Da mesma maneira, o Museu da Língua Portuguesa recebeu sua primeira exposição em agosto deste ano, tal como o MAM reabriu ao público em 1982, quatro anos depois de uma destruição quase total.Que bom? Ótimo, com certeza! Não vemos a hora de ver crianças correndo pela Quinta da Boa Vista, pesquisadores novamente no museu e um acervo novo ocupando o lugar do que até então era uma montanha de escombros. É um trabalho extremamente importante e complexo e, diante de tanta tristeza e dificuldade, o empenho diário dessas equipes envolvidas merece ser enaltecido. É claro que queremos de novo o Museu!

Entretanto, o que me preocupa, é deixar mais uma vez que o novo e o progresso apaguem as chamas.Depois de alguns dias acompanhando em loop e de diversos ângulos o fogo consumir os milhões de itens do Museu Nacional, pensávamos que aquela noite se manteria viva na memória de todos, mas não foi bem o que aconteceu e aos poucos o interesse se dissipou.[viii] Como mostram as pesquisadoras Beiguelman e Lavigne, é preciso ter cuidado para que não nos reste somente a imagem positiva do restauro, do futuro, da reconstrução com o que sobrou do passado.Como escreve, Gagnebin, apagar a sepultura é uma maneira de apagar a memória[ix].O Brasil nunca lidou bem com seus traumas em diversos âmbitos, vide a falta de memória da ditadura militar, que na ausência clara e pública de seus vestígios, volta a ser questionada hoje em dia.
Também é preciso que não abracemos a ideia romantizada de ruínas e que lembremos sempre daquela montanha de escombros. Que as imagens do Museu Nacional em chamas não se apaguem da nossa memória, que elas sempre toquem o real. Talvez manter o incêndio no presente seja a única maneira de quebrar o ciclo vicioso do descaso e destruição envoltos em nosso castigo e tentar evitar o desastre futuro. Se não, cá estaremos nós mais uma vez, feito Sísifo, levando a pedra novamente para cima da montanha. Estamos felizes, o cume está logo ali.Mas sabemos que é questão de tempo para que logo em seguida a pedra volte a cair.
Passaram-se três anos do incêndio do Museu? Não. O Museu segue em chamas.
REFERÊNCIAS:
[i]A notícia foi publicada em 29 de janeiro de 1957 no jornal O Estado de S. Paulo.
[ii]A frase dá nome ao livro de Eliane Brum e também e aparece no texto “O Brasil queimou – e não tinha água para apagar o fogo”, publicado na coluna da autora no El País: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/03/opinion/1535975822_774583.html?rel=mas
[iii]O quadro exposto era um fac-símile, informação no mínimo curiosa, quando falamos do autor de Obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica.
[iv]A tese, breve porém poderosa, é sempre digna de ser publicada na íntegra:
“Existe um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Nele está representado um anjo que parece estar pronto a afastar-se de algo em que crava. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta, suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem o rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de aparece diante de nós, ele vê uma única catástrofe, que sem cessar acumula escombros sobre escombros e arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros cresce até o céu. O que nós chamamos progresso é essa tempestade”. Optamos por utilizar a tradução da tesefeita por Gagnebin e Muller e publicadano livro de Michel Löwy, citado neste texto.
[v]LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses” Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo editorial, 2015.
[vi] Neste contexto, Benjamin cita a passagem de Engels, na qual compara a interminável tortura do operário, forçado a repetir sem parar o mesmo movimento mecânico. O autor prossegue, afirmando: “Mas não se trata apenas do operário: toda a sociedade moderna, dominada pela mercadoria, é submetida à repetição, ao sempre igual (immergleichen) disfarçado em novidade e moda: no reino mercantil, ‘a humanidade parece condenada às penas do inferno’” (ver:Löwy, p.90).
[vii] Após diversas críticas ao que seria o projeto de restauração do Museu Nacional, proposto pelo consórcio H+F Arquitetos e Atelier de Arquitetura e Desenho Urbano, vencedor da licitação, a instituições afirmou que não se tratava de imagens do novo museu. O projeto oficial de restauração ainda está sendo desenvolvido.
[viii]BEIGUELMAN, Giselle; LAVIGNE, Nathalia de Castro. Memento mori: Museu Nacional e o arquivo sem museu. Contemporânea-Revista do PPGART/UFSM, v. 3, n. 6, 2020.
[ix]GAGNEBIN, Jeanne Marie. Verdade e memória do passado. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 17, 1998.