Arte moderna costuma ser compreendida como um conjunto de experiências fundadas a partir de diversas noções de autonomia: a autonomia da própria arte, com o nascimento da estética, que se emancipou de funções práticas, morais, religiosas e representativas para servir ao sensível; a autonomia do artista, que deixou de produzir apenas para atender a encomendas dos poderosos e passou a criar em virtude de seus desejos íntimos e expressivos, para ser apreciado publicamente nos espaços de exposição; a autonomia da história e da crítica de arte, que fizeram surgir novos métodos de pesquisa e avaliação artística baseadas na pura visibilidade. As vanguardas (pelo menos parte delas), com seu juramento pela autonomia da arte, seguiram suas próprias leis, libertando-se de contaminações extra-pictóricas, como a representação do espaço real e de narrativas literárias. Fala-se (sobretudo o crítico estadunidense Clement Greenberg, um dos principais pensadores da arte moderna) nas especificidades dos meios artísticos ou mesmo na sua autorreferencialidade. Na busca por aquilo que seria próprio de cada arte, o discurso da pureza ecoou em parte considerável do que se produziu em arte moderna.
Essa linha de pensamento e de criação formalista foi posta em xeque entre os anos 1950 e 1960. O crítico brasileiro Mário Pedrosa afirmou pioneiramente em 1966 que já não estava mais em vigência um ciclo puramente artístico, e sim cultural, de vocação antiarte. As neovanguardas deixaram claro que o “progresso” da arte em sua jornada pela autonomia e pela autorreferencialidade já não tinha mais sentido – retomando as profecias dos dadaístas e surrealistas, que sempre desprezaram qualquer noção de pureza ou de progresso. No caso brasileiro, não seria necessário aguardar as já mencionadas palavras de Pedrosa, ou a declaração de Hélio Oiticica de que “a pureza é um mito” (inscrita na obra Tropicália no ano seguinte), para que fosse evidenciada a inadequação do pensamento da pura visibilidade à nossa arte. O formalismo aqui nunca se impôs como um pensamento hegemônico, exceto, talvez, pela penetração do concretismo nos anos 1950, mas que logo foi domado pelos valores afetivos e humanistas dos neoconcretos cariocas. Nossa pulsão antropofágica, mais uma vez, criou algo genuinamente nosso, incapaz de ser colocado nas caixinhas dos cânones estrangeiros. O mesmo já havia ocorrido com nossos modernismos da década de 1920, tanto em sua vertente antropofágica (representada por Tarsila e cia.), como em outras linhas de criação emergentes naquele momento, representadas por figuras singulares como Ismael Nery, Cícero Dias e Regina Gomide Graz.
O que eu gostaria de propor é o entendimento dos modernismos no Brasil como encruzilhadas. Luiz Antonio Simas costuma dizer que as encruzilhadas são encaradas incorretamente de modo negativo, sendo associadas aos labirintos, à desorientação. Na verdade, elas são lugares “entre”, e por isso são lugares de complexidades, de hibridações, de contágios. São zonas de contato, de cruzamentos de caminhos, de indefinições, de possibilidades múltiplas que rompem com a constância, com a previsibilidade, com a linearidade. Compreender os modernismos no Brasil como encruzilhadas é assumir a impossibilidade de encontrar essências onde elas não existem.
A década de 1920 e seus antecedentes, para além da Semana de 22
Já começou uma espécie de maratona de comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, acontecimento consolidado como o principal marco (para alguns o momento inaugural) do modernismo no Brasil. Não é meu objetivo com este texto emitir juízos de valor sobre a Semana de 22 ou questionar seu legado, mas estimular um olhar mais amplo para a arte brasileira da década de 1920 e para seus antecedentes. E não pretendo aqui ir além da década de 1920, por considerá-la demasiadamente complexa. Por isso mesmo, me surpreende a facilidade com a qual ela é, muitas vezes, reduzida à Semana de Arte Moderna e a seus desdobramentos.
Antes de tudo, é necessário contestar o protagonismo paulista e considerar que os modernismos no Brasil têm genealogia aberta. E por isso mesmo falo em modernismos, no plural. Se ainda é possível conferir alguma linearidade à arte moderna da Europa (mesmo com suas contradições), os modernismos no Brasil, sendo das encruzilhadas, sempre escaparam de qualquer caminho reto. Ao tentar buscar as raízes e os desenvolvimentos da arte moderna aqui, logo percebemos que se tratam de acontecimentos distintos em sua forma e intencionalidade, protagonizados por diferentes sujeitos, que ora se cruzam, ora se isolam.

Alguns marcos já são comumente evocados quando se quer questionar o pioneirismo da Semana de 22, como a exposição de Anita Malfatti em 1917 e a de Lasar Segall em 1913, ambos em São Paulo. Mas também podemos voltar nossa atenção para o Rio de Janeiro e citar figuras como Eliseu Visconti e Giovanni Castagneto, que trouxeram frescor ao meio artístico carioca no final do século 19, influenciados pelo impressionismo. A ousadia de caricaturistas como Rian (Nair de Teffé) e J. Carlos. Obras específicas, como Baile à fantasia (1913) de Rodolpho Chambelland – inovadora em seu tema e em sua técnica divisionista – e Maternidade em círculos (1908) de Belmiro de Almeida – apontado por Paulo Herkenhoff (no livro “Arte brasileira na coleção Fadel”) como um artista que revelou uma consciência moderna da superfície de modo mais radical do que nas obras que seriam expostas da Semana de 22. Belmiro, já consagrado como um moderno pelo crítico Gonzaga Duque em 1888, em seu célebre livro “A arte brasileira”, exemplifica precocemente a vontade construtiva da arte brasileira em uma obra que não se refere ao cubismo e tampouco ao futurismo, que naquele momento ainda estavam se estabelecendo na Europa.
É verdade que o modernismo brasileiro da década de 1920, em sua vertente canonizada e mais estimada pelo grande público (derivada da Semana de 22) ainda permanecia conectado a um naturalismo nacionalista. Mas não é coerente supor que a resistência à abstração diminui o valor daquilo que aqui foi produzido, ou que torne nossos modernismos “menos modernos”, ou tampouco atrasados. Ao fazer isso caímos na armadilha de tomar a arte europeia como parâmetro, deixando de refletir sobre as complexidades de nosso próprio cenário.

É bastante significativo o fato de a Semana de 22 ter coincidido com o centenário da independência do Brasil. O país ainda estava forjando um imaginário nacional. Não havia, como na Europa, uma tradição plástica tão extensa e tão consolidada para ser rompida. Aí reside mais uma das razões de se pensar os modernismos no plural. Esta é uma maneira de reforçar as particularidades da arte brasileira e de considerar o modernismo europeu como apenas mais uma atitude estética entre outras, e não como o dono das regras do jogo.

As complexidades dos modernismos brasileiros se acentuam se nos atentarmos a alguns pontos fora da curva revelados ainda na década de 1920. O paraense Ismael Nery foi contemporâneo à geração da Semana de 22, mas virou as costas para a busca por uma identidade nacional. Suas pinturas exploram as complexidades das figuras humanas, muitas vezes ambíguas, andróginas, tão enigmáticas quanto o próprio artista. O pernambucano Cícero Dias tem uma produção singular que não se encaixa numa matriz expressionista, nem cubista, nem próxima ao art déco (as principais em voga no Brasil naquela década). Suas composições suaves costumam apresentar devaneios doces e eróticos ao mesmo tempo. Evocam ainda um imaginário fantástico nordestino, sem se restringir a arquétipos facilmente designados. E como definir Regina Gomide Graz? Uma paulista menos celebrada que Tarsila e Anita, talvez por ter se voltado para as artes aplicadas. Uma exímia artista abstrata – contradizendo a narrativa segundo a qual a abstração só teria chegado no Brasil na década de 1940 – cujas obras têxteis das décadas de 1920 e 1930 se aproximam da visualidade produzida décadas mais tarde pelos concretistas.
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As contradições do moderno
Os fotógrafos Augusto Malta e Marc Ferrez são figuras-chave para a compreensão de algumas contradições de nosso processo de modernização. São dois importantes cronistas visuais do início do século XX, responsáveis por eternizar em imagens as transformações pelas quais o Rio de Janeiro, então capital federal, passava naquele momento – embora, devo assinalar, estivessem trabalhando para o governo e colaborando para a legitimação de um problemático projeto de Brasil. Com as reformas do prefeito Pereira Passos, entre 1902 e 1906, foi produzida uma nova imagem da capital, com o objetivo de esconder o seu passado colonial, motivado por um anseio de progresso e embelezamento. O projeto de Passos era criar uma Paris nos trópicos. A construção da Avenida Central (atual Rio Branco), um grande boulevard inspirado nas recentes reformas urbanísticas parisienses, operou como uma metáfora daquele novo Brasil. Enquanto as picaretas derrubavam os antigos espaços e antigas arquiteturas, os legisladores erradicavam as manchas “anti-civilização” da cidade, proibindo o comércio ambulante, mendigos, desocupados, pontos de encontros de “vadios”, etc. Os pobres eram vistos como ameaças para a reordenação do espaço urbano. A cultura popular foi criminalizada. E assim era forjada uma imagem disciplinar do Rio de Janeiro, ameaçando a cultura e o exercício de atividades econômicas informais, que garantiam a sobrevivência da parcela mais carente da população, composta principalmente por ex-escravizados.

O ano de 1922, além da Semana de Arte Moderna, também é marcado pela derrubada do Morro do Castelo, o berço do Rio de Janeiro – que começou a ser erradicado em 1920, sob a gestão do prefeito Carlos Sampaio, com a intenção de abrir espaço para a Exposição Internacional do Centenário da Independência. O que ocorria, na verdade, era a continuidade do “bota-abaixo” de Pereira Passos. Um progresso iconoclasta que levou por água abaixo, literalmente, a memória da cidade. Com o desmonte do Castelo se foi todo um patrimônio histórico e preciosidades arquitetônicas (como o Colégio dos Jesuítas e a Igreja de São Sebastião). É curioso que, logo em seguida, artistas e arquitetos modernos se interessariam justamente por esse passado colonial. Em viagens para cidades históricas de Minas Gerais, buscavam resquícios de uma identidade nacional. Em Aleijadinho e na arte religiosa de seu tempo, enxergavam os primeiros indícios de uma brasilidade genuína. Vemos, portanto, que o modernismo é mais do que uma disputa entre acadêmicos e modernos. Outros conflitos constituíram nosso processo de modernização e, sem dúvida, esses embates urbanos e epistemológicos deixaram marcas (ou cicatrizes) mais profundas em nossa cultura do que as obras debatidas nos salões de arte.
A Primeira República (1889-1930) foi um momento não apenas de apagamento do passado colonial, mas também de intensa perseguição às rodas de batuque e às demais expressões culturais de origens africanas. Nesse contexto, se destacam figuras como Tia Ciata, baiana que transformou sua casa, no centro do Rio, num exemplo moderno de quilombismo, onde sambas e ritos afro-brasileiros driblavam as batidas policiais. Enquanto as elites buscavam disciplinar os corpos de ex-escravizados e de seus descendentes, impondo um modelo europeu de se vestir, de habitar a cidade, e compreendendo nesse modelo o verdadeiro exemplo de modernidade, o samba, o carnaval e a cultura popular em geral estimulavam formas de resistência – palavra que aqui deve ser entendida não como um mero “estar contra”, mas no sentido de afirmação de outras formas existência.
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A persistência da cultura popular evoca a impureza que define nossos modernismos. De um lado, vemos artistas tomando-a como temas de suas obras, compreendendo que o Brasil moderno é o Brasil do samba, do carnaval, dos batuques. Entretanto, essas manifestações são muito mais do que temas possíveis para pinturas (produzidas, em grande parte, por uma elite), sendo elas mesmas as formas mais bem-sucedidas de arte produzidas na modernidade.
As impurezas definem não apenas os temas, mas também as práticas dos modernistas brasileiros, em suas diferentes vertentes, que desenvolveram formas híbridas e modos singulares de criação, não conformados às categorias cunhadas pela crítica estrangeira e difíceis de serem domesticadas pela crítica nacional – por isso mesmo, muitos nomes foram deixados de lado pelas narrativas oficiais.
Esses dados reforçam que os modernismos se dão no Brasil como encruzilhadas, ocorrem no cruzo, no encontro de diferentes saberes e práticas, nas impurezas. Nossa arte moderna esculhamba as normatizações, como diriam Simas e Luiz Rufino, fazendo emergir outras possibilidades de invenção.
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IMAGEM DO CABEÇALHO
Foto de Augusto Malta, 1922. Desmonte do Morro do Castelo, com ruínas da Igreja dos Jesuítas e Observatório Astronômico. Acervo do Instituto Moreira Salles (IMS).
Autor
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Mestre em Artes Visuais (História e Crítica de Arte) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. Doutorando do mesmo programa.
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