Conto do autor de Grande Sertão: Veredas estabelece diálogo com protagonista da novela mais célebre do autor mexicano, num jogo de espelhamentos e assombros
No livro Estas estórias, lançado por Guimarães Rosa em 1968, há um conto chamado “Páramo”, cujo título remete ao protagonista da novela Pedro Páramo, de 1955, sugerindo uma homenagem a Juan Rulfo, outro gênio das letras. Os dois autores eram amigos, segundo me revelou, numa etílica conversa de botequim, o escritor Eric Nepomuceno — ele que traduziu para a editora José Olympio a mais recente versão brasileira (2020) da novela. Como se sabe, Pedro Páramo é a principal obra do mexicano, escritor de produção bissexta, porém de impacto tectônico na literatura do pós-guerra no continente.
Mais do que a citação no título do conto, a homenagem está na forma sinuosa como Rosa evoca o universo quimérico de Rulfo. No enredo da novela, o herói obedece à recomendação da mãe, feita no leito de morte, e empreende uma viagem em busca do pai que os abandonara. Nessa jornada sem volta chega a Comala, vilarejo no interior do México, delimitado pela canícula de agosto e o isolamento, propício a abrigar almas em processo de encantamento. O escritor mineiro traça, desse modo, uma sutil equidistância simbólica entre a cidade mítica mexicana (que teria inspirado anos mais tarde a Macondo de Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão) e as veredas do sertão brasileiro.

Mas em “Páramo”, o autor de Estas estórias substitui a aridez da paisagem mexicana pelo ar rarefeito e glacial da cabeceira dos Andes, dando forma à sensação de solidão e estranhamento que seu protagonista-narrador vive como estrangeiro degredado, impelido a reaprender tudo nesta terra estranha, inclusive a respirar. Nas palavras deste: “Assustou-me, um tanto, sim, a cidade, antibórea, cuja pobreza do ar exigiria para respirar-se uma acostumação hereditária. Nem sei dizer de sua vagueza, sua devoluta indescriptibilidade. Esta cidade é uma hipótese imaginária… Nela estarei prisioneiro, longamente (…)”.
Os fantasmas de Rulfo e as assombrações evocadas no conto de Rosa convergem, simbolizando a bonita amizade entre os dois mestres da originalidade. O autor de Estas estórias costura seu abraço de admiração ao colega recolocando sob o olhar mineiro a questão da morte e da transcendência, bem como da solidão da vida. E faz isso transportando as veredas do sertão de Minas Gerais para a Cordilheira, mantendo a poderosa influência da geografia do lugar na ambiência literária da estória.
Rosa, no entanto, não embarca no realismo fantástico que tanto influenciaria a literatura latino-americana de língua espanhola a partir de Pedro Páramo. Em vez disso, segue a sintaxe metafísica e original, que já ficara evidente em Grande Sertão: Veredas e nos contos de Sagarana, ambos de 1956. Desse modo, reveste de sutileza as metáforas brutas de Rulfo, preenchendo os ossos e a carne de seus personagens fantasmagóricos com sentimento e desejo.
Comparado ao autor de Pedro Páramo, o estilo do escritor mineiro é de outra grandeza e se presta bem ao tom do enredo pretendido. Rosa mantém sua obsessiva prospecção pela palavra exata, mas recorre a um linguajar erudito, laboriosamente construído, a ponto de surpreender, pelo contraste, os leitores que se habituaram com o idioma do “Grande Sertão”. Em “Páramo”, ele tampouco amarra a narrativa com sentenças morais e aforismas típicos de uma conversa oral, como encontramos, por exemplo, em Meu tio o Iauaretê, pequena obra-prima presente no mesmo volume de contos.

No caso de “Páramo”, Rosa é ainda mais contido e isso talvez se deva ao fato de se tratar de uma homenagem a Rulfo, cuja novela influiu no ritmo singular do conto. Seja como for, o narrador logo nos arrasta para o centro da estória, que se trata, como em Pedro Páramo, de uma viagem íntima, propiciada por um cenário estrangeiro na Cordilheira. É aí que as veredas de rica vegetação e variedade de pássaros reaparecem sob os contornos de uma solidão gelada e profunda, por vezes melancólica.
O que falta de fôlego ao protagonista de Rosa sobra-lhe em elaboração dos sentidos da vida, inclusive em relação à resignação com a morte. A mesma questão aparece em Rulfo, com imagens distintas. Na novela e no conto, os seres encantados perturbam os vivos, confundem as personagens e inebriam o leitor diante do problema da existência num ambiente estranho e estrangeiro. Sobretudo evocam, no abraço dos dois escritores, a frase de Rosa em seu discurso de posse à Academia Brasileira de Letras (ABL): “A gente morre para provar que viveu”.
Lido como homenagem, o conto também se reveste de elementos que extrapolam seu enredo. Exemplo disso é a discrepância entre calor e frio vivido pelos protagonistas de Rulfo e Rosa em suas jornadas por esses ermos sem fim, entre fantasmas e viventes com ares de assombração, em busca de alguma redenção. Por meio desses extremos e seus protagonistas o mineiro constrói, independentemente dos enredos, um rico diálogo entre os dois escritores.
A admiração pelo autor de Pedro Páramo materializa-se, portanto, nesse lugar-sertão, território sem referências e proximidade, situado na terceira margem do rio, numa cartografia afetiva, metafísica e cosmológica, que se encontra além das respectivas narrativas. O personagem de Estas estórias faz várias escalas até seu destino no páramo andino, onde se perde nas profundezas de sua alma. Lá, onde o ar se torna mais rarefeito à proporção que se aproxima do céu, ele renasce por um breve instante, num firmamento de brilho fugaz, como a própria vida.
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Crédito da imagem principal: detalhe da capa feita pelo designer Leonardo Iaccarino para a mais recente edição brasileira de “Pedro Páramo” (José Olympio, 2020)
Autor
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Jornalista e antropólogo do Laboratório de Etnografia Metropolitana do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ). Autor dos livros “Memória afetiva do botequim carioca” (José Olympio) e “Milton Nascimento e Lô Borges: Clube da Esquina”, da coleção O livro do disco (Cobogó).
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Jornalista e antropólogo do Laboratório de Etnografia Metropolitana do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ). Autor dos livros “Memória afetiva do botequim carioca” (José Olympio) e “Milton Nascimento e Lô Borges: Clube da Esquina”, da coleção O livro do disco (Cobogó).