Fomos convidados a olhar uma imagem. Trata-se de uma famosa pintura do artista realista francês Gustave Courbet intitulada como A origem do mundo (1866). Se pudéssemos descrevê-la rapidamente, diríamos que a imagem mostra (em close) um torço feminino nu. No texto subversões femininas da lógica fálica, a psicanalista Tania Rivera lembra que recentemente foi possível descobrir a identidade da modelo do artista e que esta seria uma mulher de nome Constance Queniaux – dançarina e uma das amantes do diplomata turco-egípcio Khalil-Bay, quem teria encomendado essa obra como item da sua coleção “dedicada à celebração do corpo feminino”. A pose de Constance no quadro pede por nossa reflexão. Constance aparece deitada sobre alguma superfície – que poderia ser uma mesa, um sofá ou uma cama, e ainda que ofereça a visão clara da sua genitália para o grande olho estabelecido do lado de fora do quadro, desempenha, contudo, uma pequena torção. Partiremos desta posição oblíqua do corpo de Constance para olhar essa imagem.
Vamos imaginar um possível observador para aquele corpo que posa confiante. Confiante é uma leitura possível, sabemos disso; contudo, não seria esgarçar demais as coisas se considerarmos que aquele corpo transmite extroversão – literalmente voltado para fora do espaço pictórico. A imagem de Constance se projeta em forma, textura e oferece ao observador, ao menos dois paradoxos: um corpo pleno, relaxado e ao mesmo tempo impassível; um corpo que mostra, explícito e esconde outra cena na lateralidade do quadro. Neste sentido, diríamos que Constance posa e, sobretudo, performa, e a imagem que Courbet pinta, já antecipando o olhar fotográfico lançado em close, insinua um mais além daquilo que é possível ver sob aquele enquadramento.
Na maneira que Courbet pinta Constance parece haver espaço para algo mais, fora do campo do visível. Há, sem dúvida, uma oferta para o olhar, diríamos, justamente na transversalidade daquele corpo,o que o distancia de um corpo que se submete (e não posa) ao olhar da clínica médica por exemplo, por que não dizer de Charcot, considerando a data da pintura (1866) e a clínica de Jean-Martin Charcot – como Chefe do Serviço de Clínica Médicano Hospital da Salpêtrière [1] (1862-1867). E é aqui que fazemos uma dobra.
Nos termos propostos por Michel Foucault, a clínica médica nasceu de uma operação predominantemente visual, entre o cruzamento de corpos e olhares. Esta operação, ele diz, foi possível a partir da mudança na estrutura na relação entre o visível e o invisível que fez aparecer sob o olhar (e na linguagem) aquilo que estaria outrora adormecido – fora do campo perceptivo e enunciável. Uma vez revirada a estrutura do visível, surgiria uma nova aliança entre as palavras e as coisas, entre o ver e o dizer, abrindo-se a verdade como um tecido dotado de espessura, cor, forma e, como veremos em um segundo momento (a partir do discurso da psicanálise), uma verdade questionada por manchas, furos e lacunas.
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Charcot e o “quase-rosto” de Augustine
Influenciados pelo estudo de Michel Foucault sobre o olhar – como condição nuclear ao Nascimento da Clínica, e pela pesquisa de Didi-Huberman sobre a clínica visual de Charcot em a Invenção da Histeria, ecoamos a crítica sobre a submissão daqueles corpos, predominantemente mulheres, que não posavam, longe disso, eram preparadas para uma cena sem cortina, cena crua montada distante de qualquer improviso. Eram corpos submetidos, inclusive à violência: rígidos, petrificados, sem nenhum indício de sensualidade, corpos que precisavam, por compromisso, mostrar tudo até às entranhas se fosse necessário ao exame. Vejamos este conjunto de imagens retiradas da Iconografia fotográfica da Salpêtrière. Trata-se de Louise Augustine Gleizes, ou simplesmente Augustine, fotografada por Paul Regnard, dedicado e habilidoso fotógrafo que se instalou naquele Hospital sob o patrocínio de Charcot.
O texto extraído da catálogo de Regnard assinala, sob o título Augustine, que Charcot “deu ordens diferentes que ela obedeceria com a docilidade da hipnose, como comer papel enquanto lhe diziam que era um tomate ou provocar um estado cataléptico para fotografá-lo ou usá-lo para suas palestras e apresentações públicas”. Diante dessas imagens, tomamos uma. Aqui, a legenda indica: “atitudes passionais, erotismo”. Na fotografia, Augustine parece sorrir e tem os braços sobrepostos em seu peito em forma de cruz. É possível recolher um excesso dos lençóis, múltiplos tecidos sobre aquela cama. Há também uma visível artificialidade, especialmente para aquiescer a legenda que orienta a imagem como “erotismo”.

Didi-Huberman se detém diante deste conjunto de imagens e diz que a neutralidade de Augustine desprovê a imagem de algo que seria “um sentido, uma história, um drama, que a imagem supostamente ilustraria”. Se esta mulher seria mais ou menos parecida com qualquer outra, ele conclui, temos apenas um quase-rosto [2]. A imagem fotográfica deveria vir para ilustrar, esclarecer, contudo aparece encadeada numa série de imagens recheadas de comentários e legendas construídas para suprir, ele incita, a neutralidade daquele rosto, inventando uma personagem e, com ela, fazer ficção. Nesse sentido, conclui, uma quase-Augustine.
Manet e Ticiano: genitálias cobertas e descanso
A pintura de Gustave Courbet se distancia consideravelmente destas imagens fotográficas montadas na Salpêtrière de Charcot. Se afasta, inclusive, da Olympia de seu contemporâneo Édouard Manet (pintada na mesma época, em 1863, somente três anos antes da Origem do Mundo). O salto entre a pose destas duas mulheres é digno de nossa atenção. A Olympia cobre sua genitália com uma das mãos assim como faz a Vênus de Urbino – um óleo sobre tela de Ticiano pintado no século XVI. Sua expressão é tão bela quanto indiferente, para não perdermos contato com a expressão atribuída por Freud à Charcot (La belle indifférence das histéricas). Tania Rivera esclarece que o naturalismo proposto por Courbet seria, neste sentido, subversivo, e “rompe com a domesticação do corpo feminino classicamente adotada, desde a Renascença, nos chamados Nus, em suas posturas reclinadas em divãs, com as pernas suavemente cruzadas sobre panos negligentemente drapeados”. Enquanto Olympia e a Vênus descansam, reclinadas em seus divã se Augustine resta submetida ao olhar de Charcot, o que faz Constance Queniaux?
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Retornamos a olhar para essas imagens da Iconografia da Salpêtrière com o mesmo cuidado que Didi-Huberman investiga as fotografias produzidas na clínica visual de Charcot. O filósofo comenta amplamente sobre o tempo de exposição que submetia aqueles corpos,inclusive à dor. Tanto Charcot quanto Courbet estariam no século XIX e, desse modo, nos acena a ideia de que Courbet considerou alguma coisa disso na sua pintura, pois este corpo pintado, torcido, enviesado, sensualiza, e não parece capturável por nenhum olhar. Não seria forçado de nossa parte dizer que o corpo de Constance não é dócil como um corpo que se submete a um exame, a um saber, da medicina por exemplo.
Rivera acrescenta que o mesmo “naturalismo” que romperia com os Nus ditos clássicos da iconografia da pintura ocidental, também aproximaria a imagem criada por Courbet da pornografia, como para justificar as reações aversivas e todas as censuras que essa imagem, até os dias de hoje, enfrenta, inclusive nas mídias digitais. A simples consulta no Google já realiza esse embaraço: pois ao buscar pela Vênus ou pela Olympia nos deparamos com suas imagens automáticas e em destaque na página inicial, contudo o resultado não é o mesmo com esta pintura de Courbet.
Se digitarmos “a origem do mundo Courbet” recebemos muitas informações, mas nenhuma imagem daquela pintura (experimentem!). Neste campo, recorremos à Roland Barthes, assim como Didi-Huberman o fez por mais de uma ocasião. Neste ponto, nos detemos ao lado de Barthes sobre uma determinada fotografia de Robert Mapplethorpe (Autorretrato, 1975) para entendermos a diferença que ele marca entre uma imagem erótica e àquelas oferecidas como pornografia. Roland Barthes esclarece que a fotografia de Mapplethorpe “leva o espectador para fora de seu enquadramento”, e completa: “e é nisso que a foto me anima e eu a animo”. Por outro lado, a imagem pornográfica representa o sexo como um objeto imóvel, portanto sem vida: “quando muito ela me diverte e ainda, o tédio surge rapidamente”, ele diz. Dito em termos psicanalíticos, tanto no retrato do fotógrafo norte americano quanto na pintura de Courbet, haveria espaço para a fantasia, para o equívoco, para a inclusão da possibilidade de outra cena, escondida nas lacunas do discurso, na coxia de um placo italiano, como Freud revelou em seu trabalho paradigmático sobre os sonhos e “onde se situa toda a maquinaria do inconsciente” (J-A Miller).

Se a fotografia da jovem Augustine foi instrumento para a nosografia de um quadro clínico (da Histeria de Charcot) e sua pose se encerra na totalidade de uma cena montada sem furos, como evidência, como certeza e verdade, olhamos para o retrato de Mapplethorpe ou para a pintura de Gustave Courbet para reconhecer um fora da imagem. E é a isso que a psicanálise oferece lugar. E é desse lugar, “ponto insondável” nos termos de J.Lacan, que o artista mostra qualquer coisa quando balança a cortina. Se no Auto-retrato vemos um corpo em movimento, abrindo-se em um espaço lateral onde se imagina um amante: alguém que puxaria o homem para retira-lo do plano fotográfico, para quem ele sorri, por exemplo, igualmente imaginamos o observador de Constance Queniaux, petrificado diante daquele corpo que posa insubmisso e, assim, se apresenta ao olhar de seu íntimo expectador de maneira a captura-lo para uma outra cena, bem distante de qualquer enquadramento.
[1] construído no século XVII para abrigar aqueles considerados marginais na cidade de Paris, após a Revolução Francesa passou a funcionar como asilo para a loucura. Sua população era composta, especialmente por pacientes mulheres.
[2] referência à Jean-Paul Sartre (A Imaginação, 1936/1964) para transmitir a ideia de que entre o retrato e seu objeto há um quase-rosto, como aquilo que se assemelha ao rosto que é visado através da fotografia, da imagem.