“Você pinta como eu pinto?” A pergunta funcionaria como piada em um contexto no qual a linguagem estivesse naturalizada enquanto espaço de enunciação do masculino e se essa naturalização valesse também para o campo da arte enquanto um lugar próprio para uma prática social igualmente masculina. Em Lição nº18 vc pinta como eu pinto? (2018), a pintura do meme do garoto que debocha e denuncia o anacronismo de determinados enunciados é um protesto da artista brasiliense Camila Soato (1985): a arte, especialmente a pintura, e a linguagem não podem ser naturalizados como espaço do masculino, dos grandes mestres e de seus instrumentos de semântica fálica.

A ideia de “fuleragem” ocupa centralidade no trabalho de Soato. Associada a um imaginário mambembe, informal e à gambiarra, tal noção é expressa no modo como a artista reúne arte e diversão, empregando humor, escatologia, por vezes promovendo o constrangimento e dando espaço para o erro e o acaso. Além do deboche, outros códigos são recorrentes em seu trabalho. Figuras humanas, cenas de coito animal, ícones da mídia e da cultura de massa, e outros fragmentos diversos de imagens são aproximados e pintados sobre fundos neutros, desrespeitando normas convencionais de escala, perspectiva e do famigerado “bom gosto”. Tais aproximações evocam tanto o procedimento da colagem e da fotomontagem, já consagrados e reconhecidos pela História da Arte, como também a cultura recente dos memes.
Em Lição nº16 desconfie de quem não seja democrático (2018), a artista lança mão dos memes também enquanto recurso para seus procedimentos ao aproximar, na mesma pintura, imagens canônicas da História da Arte – caso da referência ao Rapaz mordido por um lagarto (1593-94) de Caravaggio – e da cultura do entretenimento recente, caso dos conhecidos minions, personagens de animação da Disney tidos como aduladores de vilões. Semelhante aos memes, o trabalho torna-se uma imagem síntese ao comentar o receio e a desconfiança que provocam os chamados “bolsominions”, eleitores apaixonados, inconsequentes e cínicos do atual presidente da república e que se empenham em produzir e disseminar as mais absurdas fake news pelas redes sociais.

Nas pinturas de Soato, a referência aos memes vai além da colagem de ícones da cultura, seja ela qual for. A referência a Caravaggio é, de certa maneira, reduzida à sua expressão e gestualidade que denotam asco diante dos minions. Junto ao deslocamento de contexto, tal redução e recorte de efeito implicam em uma operação de esvaziamento e de superficialização em relação ao seu contexto inicial para produzir, em um primeiro momento, um sentido imediato, circunstancial e precário. Isso não significa afirmar que o modo como a artista opera a imediaticidade e a superficialidade tornam seus trabalhos igualmente circunstanciais ou limitados a pouco mais que piadas. Diferentemente, suas pinturas instauram uma polissemia de sentidos a partir de idas e vindas que costuram, precariamente, um emaranhado de História da Arte, História da Pintura, cultura de massa, política, crítica feminista, entre outros.
As narrativas “fuleiras” e precárias dos memes convivem com instituições consideradas tradicionais e prestigiosas pela História da Arte: a figura humana e a própria pintura. Soato critica essas instituições, seus valores e processos históricos que instituíram hierarquias canônicas entre os gêneros artísticos – em ordem crescente de importância, natureza-morta, paisagem, retrato e pintura histórica –, entre outras questões. É fundamental ressaltar a ambiguidade do termo “gênero” nesse caso. A hierarquia entre eles ecoa, podemos crer que não à toa, a relação entre essas categorias e o gênero daqueles que estavam habilitados a realizá-los. Até o século XIX, mulheres eventualmente frequentavam as academias de ensino de arte, mas na condição de amadoras. O decoro até então interditava suas presenças nas aulas de modelo vivo, indispensáveis para a realização da pintura histórica, relegando a elas a possibilidade de produção dos gêneros considerados menores e das ditas “artes decorativas”, especialmente os têxteis.
Segundo a própria artista, seu incômodo com a pompa e com o modo como a pintura foi consagrada, considerando inclusive as questões de gênero implicadas nesse processo – a predominância masculina traduzida em expressões como “Os Grandes Mestres” – são motores de sua obra. A artista passou a perseguir a subversão desse cenário a partir do seu interior. A partir do domínio da prática da pintura, Soato empreende uma relação de amor e ódio e tensiona sua tradição, sua seriedade e sua masculinidade, fazendo a técnica se voltar contra ela mesma e contra seus agentes produtores e legitimadores. Entretanto, de modo paradoxal, sua crítica e sua circulação dependem do prestígio da pintura. Afinal, não faz sentido chutar cachorro morto.
Essa constatação remete ao que o campo da arte denomina como “crítica institucional”, uma recorrência de distintas práticas nas quais artistas se insurgiam de alguma forma, desde modos mais brandos até os mais radicais e utópicos, às instituições da arte, entre elas o museu, a crítica, o colecionismo, a curadoria e seus agentes e valores. Essas práticas são operadas de distintos modos por artistas em suas poéticas, variando conforme contextos geográficos, políticos e institucionais. Se há algo em comum na “crítica institucional”, podemos mencionar a afirmação da artista norte-americana Andrea Fraser sobre a impossibilidade de se pensar em um “fora” da instituição. Soato trabalha nessa perspectiva, precisa das instituições em pé para poder questioná-las em relação ao como historicamente vêm sendo, por vezes, instrumentalizadas para a construção de hegemonias a partir de interesses políticos e econômicos específicos.

Nesse sentido, o trabalho de Soato usa instituições e o processo de institucionalização para formular questionamentos e tensioná-los a partir do interior dessas mesmas instituições e circuitos. Suas críticas às hegemonias branca, masculina e europeia na História da pintura e suas denúncias a crimes recentes, como a pintura Presente (2018), exposta na Bienal do Mercosul de 2018 e que lembra o assassinato político da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), jogam com o prestígio de instituições e eventos para ampliar sua reverberação. A artista não se intimida, pinta “como eu pinto” e subverte. Não é flor que se cheire.
Autor
-
Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.
Relacionado
Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.