Em consequência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração
Sigmund Freud
O crime é o próprio inferno
Nelson Rodrigues
Um livro de capa branca com quase 900 páginas em branco baleado por um projétil de revólver calibre 38. Trata-se de Balada (1995), obra econômica e contundente criada por Nuno Ramos. À medida que o leitor vai penetrando no livro, passa pelas páginas limpas do início até chegar a uma página impactante com o furo preciso em torno do qual se formou a mancha decorrente da explosão do cartucho de pólvora; a violência do tiro atravessa a sucessão de centenas de páginas deixando o furo como rastro que fere, até que o projétil se aloja no interior do corpo do livro.
A palavra “balada” designa uma forma de poema ou um gênero musical, sentidos que estão presentes na obra de Nuno Ramos, alargados pela aproximação com baleada. Ao ser aberto, o livro desperta a memória do estampido do tiro ressoando em seu interior, abafando, calando e eliminando todas as palavras. Entretanto, não está morto; ao contrário está repleto de significados; ainda que extraídas as palavras, suas páginas reverberam os enigmas e os choques envoltos nos crimes, o indizível que cerca a morte. Não há vazio nas páginas brancas e cada furo é mais que um ponto, é passagem por onde se pode atravessar de um lado ao outro, da vida à morte. Sem respostas. Somente perguntas. Trataria de uma das formas mais cruéis de violência que é a morte da liberdade de pensar e refletir criticamente sobre a realidade? Seria um longo poema policial tenso em sua brancura, que contém em apenas um tiro a memória de todos os crimes do mundo? Seria uma obra cuja natureza polissêmica provocaria no leitor a necessidade de preencher as páginas, de construir significados movendo um inquérito ficcional aberto às narrativas mais diversas sobre os crimes?
Existe uma história da criminalidade mostrada pela produção de arte contemporânea brasileira que trabalha sobre violência, marginalidade, segurança pública e justiça – ou suas ausências. A reflexão que aqui se inicia busca compreender como os artistas respondem à crua e atroz realidade que assola o país, e como a partir de suas respostas se manifesta a tradição social, política e ética no interior da arte brasileira. A discussão sobre a violência atravessa tanto as artes visuais quanto a literatura, a música e o cinema. A arte problematiza a vida da sociedade contemporânea e investiga seus pontos críticos. E a crise se manifesta nos níveis altíssimos de criminalidade, na população temerosa com a insegurança crescente, na fragilidade das operações do Estado para conter a violência e debelar a criminalidade, nas instituições policiais ainda ineficientes, nos morosos aparelhos da justiça que operam com um Código Penal anacrônico, datado de 1940, e nos sentimentos públicos de impunidade e injustiça. Nessa zona de perigo a gravidade da crise aumenta à medida que de tanto se falar sobre a violência, se chega ao ponto de banalizá-la e de tratá-la com a indiferença de não se deixar afetar pela visão de corpos feridos ou mortos caídos no chão.

As produções dos artistas aqui analisados recusam a indiferença, rejeitam os rótulos fáceis do sensacionalismo produzido pelos meios de comunicação de massa, tomam a contramão do entretenimento espetacular violento gerado pela indústria cultural, e operam enfrentando a crueza da barbárie, pensando sobre a posição da arte diante de uma sociedade em crise, refletindo sobre violência, criminalidade, marginalidade, segurança e justiça com o olhar atento às questões éticas, ponderando sobre o animalesco instinto humano da agressividade e sobre as implicações históricas, sociais e econômicas da violência.
Pensar as obras aqui alinhadas implica em refletir sobre a história da violência no Brasil, iniciada durante o período de conquista e colonização exploratória da terra com o massacre das culturas indígenas, agravada com séculos de escravidão e de exclusão dos povos africanos e de seus descendentes, e hoje condensada nas camadas menos favorecidas economicamente e mais desassistidas pela tutela do Estado. O contexto dado pelas obras exige visão crítica sobre a complexidade desses problemas no Brasil, considerando que, ao longo dos séculos, personalidades de resistência e de afrontamento à opressão do poder do Estado, como Zumbi, Tiradentes, Antônio Conselheiro e Lampião foram considerados foras da lei, foram mortos e suas cabeças decepadas pelas forças de repressão oficial, mas posteriormente, num processo de revisão da história, foram elevados à condição de heróis e ícones da luta pela liberdade do povo brasileiro. Na história recente, a Certidão de Óbito do jornalista Wladimir Herzog – assassinado em 1975 no II Exército/SP – DOI CODI por torturadores do Governo Militar – só teve a causa da morte corrigida para “lesões e maus tratos” em março de 2013, anulando a anterior que registrava enforcamento por asfixia, apontando hipótese forjada de suicídio. A morte de Herzog tornou-o um mártir na luta pelo fim da ditadura.
A carnificina exercitada no violento castigo corporal aplicado até o limite da morte não desapareceu no Brasil, apesar da pena de morte ter sido extinta pelo imperador Dom Pedro II após a condenação e o enforcamento de um inocente. A cruel exposição das cabeças de Lampião e de dez membros de seu bando, desde que foram decepadas, em 1938, até seus sepultamentos realizados somente em 1969; a fotografia do cadáver de Antônio Conselheiro massacrado em Canudos; a imagem de Herzog enforcado depois de morto pelos torturadores da Ditadura Militar; as fotografias recentemente divulgadas do Relatório Figueiredo – documento de 1968 e que só reapareceu em 2013 – que registram atos de alta crueldade praticados contra os índios brasileiros ainda durante os anos 60 com o consentimento e a participação de funcionários do Sistema de Proteção ao Índio, órgão do governo federal; as imagens da Chacina da Candelária com os cadáveres de 8 moradores de rua, sendo 6 crianças, metralhados por policiais do Rio de Janeiro em 1992; a grande exposição de cadáveres decorrente da chacina do Pavilhão 9 do Complexo Penitenciário do Carandiru (onde geralmente eram encarcerados os réus primários que aguardavam julgamento), na qual em 20 minutos 111 presos foram assassinados durante invasão policial para conter um conflito entre detentos em 1992; o vídeo, gravado por celular e divulgado pela internet, de presos degolando as cabeças de três colegas de cela durante rebelião na Penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, em 2013; além de outras mais divulgadas diariamente, formam uma sequência de cenas apavorantes que explicita o espetáculo da condenação ao suplício da dor extrema e da humilhação exagerada da exibição do corpo violado, que, em Vigiar e punir, Michel Foucault diz ter desaparecido da Europa por volta do século XIX, quando os conceitos e os métodos de execuções penais se modernizaram “passando da arte das sensações insuportáveis para a economia dos direitos suspensos”.
A produção de arte também evidencia que a aplicação do sofrimento corporal extremo e a exibição dos cadáveres esfacelados são cenas recorrentes no Brasil, produzidas para a demonstração de poder, seja dos bandidos seja dos policiais, e para serem midiatizadas, divulgadas pela imprensa mais bruta como espetáculo da atrocidade, assistidas e consumidas pela população dividida sobre fatos tão chocantes. Talvez, seja o cinema a linguagem que mais mobiliza a opinião pública a respeito das visões sobre a violência. No cinema brasileiro, existe a tradição de tratar dos acontecimentos de grande atrocidade, de biografar a vida de criminosos famosos e de narrar conflitos entre a polícia e bandidos; também a produção musical tem forte envolvimento com o cenário da marginalidade e da violência. No cinema, temos O cangaceiro (1953), de Lima Barreto; Cidade ameaçada (1960); O Assalto ao trem aagador (1962) e Pra frente Brasil (1982), de Roberto Farias; Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber Rocha; O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla; O Homem da Capa Preta (1986) de Sérgio Rezende; Cidade de Deus (2002), de Fernando Meireles; Carandiru (2003), de Hector Babenco; Tropa de Elite (2007), de José Padilha; 400 contra 1 (2010), de Caco Souza. A história do massacre do Pavilhão 9 da Casa de Detenção foi narrada por Jocenir (Josemir Prado) na letra do rap Diário de um detento, composta a partir de informações coletadas dos companheiros de cela (ele foi preso em 1994 no Carandiru). Gravada pelos Racionais MCs na obra Sobrevivendo no inferno (1997), tornou-se o rap de maior sucesso comercial até hoje.
O massacre do Carandiru motivou a instalação de Nuno Ramos intitulada 111 (1992), obra complexa, de grande escala e de forte plasticidade, que cria um ambiente barroco, desconfortável e impactante, do qual o espectador não sai puro e ileso. A instalação tem na sua primeira parte as paredes ocupadas por quatro grandes ampliações de imagens fotográficas tomadas por satélite da região de São Paulo em momentos próximos à invasão do presídio, das quais pendem bulbos de vidro soprado, e mais uma outra fotografia do cone sul do Brasil, feita por satélite no dia e hora exatos do massacre do Carandiru; no piso à frente das imagens estão dispostos 8 bulbos, como se fossem grandes garrafas deformadas, conectadas por mangueiras a duas máquinas de produzir fumaça. Dividindo a instalação em duas partes está um véu dependurado do teto com impressão de um texto com palavras feitas de parafina. O texto ocupa também as paredes da segunda parte da obra e é transcrito sobre o vidro que veda as caixinhas de diversos materiais contendo cinzas de salmos bíblicos que ficam penduradas nas paredes. Os textos são fragmentos extraídos do livro Cujo (que Nuno Ramos só veio a publicar em 1993); dispostos sobre o piso estão 111 objetos executados com paralelepípedos recobertos com piche e breu, contendo sobre eles uma reprodução de página de jornal com noticia do massacre mergulhada em breu, sobre ela está o nome de um dos 111 mortos impresso em relevo sobre chumbo e uma página de salmo bíblico queimado em homenagem ao morto; ainda sobre o piso estão 3 peças grandes, assemelhadas a múmias, executadas com paralelepípedos e vaselina, sendo que cada uma é recoberta com um material diferente: barro cru; folhas de ouro; breu, piche e cinzas de salmos bíblicos; no centro do ambiente, dependurada do teto está uma cruz de material mole com a superfície revestida pelos nomes dos 111 mortos. A materialidade experimental da obra, a ocupação de todos os espaços, o cheiro e as propriedades táteis e simbólicas das matérias empregadas, o texto que pode ser lido e o texto que foi queimado, a intrincada operação de linguagem que estrutura a obra, as metáforas da poética do excesso, a alquimia dos materiais e a pregnância subjetiva do trabalho de Nuno Ramos, demonstram que a arte contemporânea pode voltar seu interesse para questões que afligem a sociedade, sem perder a qualidade de sua natureza investigativa puramente artística.
As obras aqui analisadas criam um campo de reflexão em torno da complexa relação da arte com os problemas éticos da sociedade. Não se pode tomá-las como panfletárias e sim como investigações que ampliam a compreensão sobre a grave violência existente no país. São operações artísticas efetuadas por meio de complexas pesquisas de linguagem, desacomodadas e críticas, que pensam os problemas pelo avesso, aprofundando a reflexão sobre a criminalidade que perde sua face e está em todo lugar e a toda hora, que se diversifica e se alastra sem fronteiras, que organiza sua estrutura, sofistica seus equipamentos, corrompe poderes, faz seus representantes junto às instituições e como um vulcão expele uma lava sangrenta produzida no interior da convulsão ética, social e política do país, e que a cada dia incessantemente escreve com sangue uma nova página no livro da história de horror da violência
O contexto brasileiro mudou após o término da ditadura militar e a retomada da democracia. Não existe mais um sistema de poder ao qual se opor radicalmente, apesar das inúmeras manifestações que eclodiram em junho de 2013. As demarcações ideológicas ficaram borradas. O poder possui outra representação no Estado democrático. Contudo a exclusão de pobres, negros e índios junto com a precariedade estrutural dos serviços públicos destinados à grande parte da população, acarretam graves problemas sociais e por consequência geram aumento da criminalidade.
Em resposta a tal quadro, os artistas apresentam as armas, os alvos, os tiros, as cenas dos crimes, as vítimas, os criminosos, os policiais, as atrocidades das distorções sociais do preconceito, os problemas da segurança pública, os métodos de execução penal e a suposta cegueira da justiça. As obras não visam especular gratuitamente sobre a dor alheia, tampouco chocar por meio da estética da violência; mas convocam-nos a repensar densamente a insuportável barbárie contemporânea.
A postura ética produção dos anos 1960-70
Clarice Lispector manifestou sua indignação e revolta contra a execução de um bandido alvejado com 13 projéteis pela polícia do Rio de Janeiro, em 1962. Em sua última entrevista, a escritora disse a respeito da obra que considerava como uma de suas mais importantes criações: “Eu me transformei no Mineirinho massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto era vontade de matar. Era prepotência”. Na crônica Mineirinho (1962) a escritora se identifica com o suplício do bandido no momento de sua agonia final, sente as balas cravarem seu próprio corpo: “Porque eu quero ser o outro”. Em sua comoção diante do brutal assassinato que provoca o “desespero em nós”, ela, sendo o outro, se desdobra em muitos, e assim assume com sua voz uma culpa que é da sociedade: “Porque sei que ele é meu erro”. E defronta–se com um homem produzido pelo abandono, pela exclusão e pela falta, “acuado” e “assustado”, de “violência inocente – não nas consequências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta”, que sem amparo, cuidados e princípios se tornou “algo ameaçador”. Clarisse Lispector deseja uma justiça que “vê o homem antes de ele ser um doente do crime”, que não busca argumentos para justificar que “a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.” Frente ao corpo de um homem metralhado Clarice Lispector compreende que “na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente”.
Hélio Oiticica formulou uma complexa e intrincada relação entre banditismo e heroísmo em obras que utilizam imagens de marginais mortos, caídos no chão. A história da arte internacional também registra alguns trabalhos em que a imagem ou o contexto da marginalidade são utilizados. Em 1923, Marcel Duchamp criou Wanted. $2.000 reward, resultado da apropriação de cartaz destinado a divulgar retrato de bandido procurado pela polícia, no qual inseriu seu próprio retrato com a informação de que atende pelo nome de Rrose Sélavy; em 1963 foi utilizado como cartaz para divulgação da retrospectiva no Pasadena Museum. Também nesse ano, Andy Warhol executou a série Most wanted man com retratos de criminosos procurados pela polícia reproduzidos em serigrafia sobre tela.
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Voltando a Oiticica, o Bólide-caixa nº18 – B33 Homenagem a Cara de Cavalo (1966) contém fotografias de Manoel Moreira, apelidado de Cara de Cavalo, que atuava na marginalidade desde criança e era envolvido com o jogo do bicho; não era um bandido de reconhecimento público até que matou o investigador da Policia Civil Milton Le Cocq de Oliveira, policial influente que pertencia à elite de um grupo de extermínio. O fato deu à Cara de Cavalo a fama de inimigo público nº1 do Rio de Janeiro. Finalmente foi assassinado pelo grupo de elite do grupo de extermínio, atingido por 52 projéteis durante um ataque violento e espetacular, que contava com a presença de fotógrafos e jornalistas e foi realizado em Búzios, em 1964. Por volta de 1965, foi criado o Esquadrão Le Cocq para atuar sem constrangimentos como um esquadrão da morte. Um dos assassinos de Cara de Cavalo e membro do esquadrão, Guilherme Godinho Ferreira, apelidado de Sivuca, foi depois eleito Deputado Estadual com campanha fundamentada no slogan “Bandido bom é bandido morto!”. As imagens usadas por Oiticica estamparam as capas de jornais que comemoraram a morte do bandido. A repercussão teve forte impacto sobre o artista, que era amigo de Cara de Cavalo, a quem considerava como herói. Na obra homenagem póstuma escreveu o epitáfio: “Aqui está, e ficará! Contemplai seu silêncio heroico”.
Também apropriadas de páginas da imprensa, as fotografias do corpo de Alcir Figueira da Silva morto e caído no chão – suicidado quando se viu cercado pela polícia, após assaltar um banco e abandonar o roubo – são entronizadas no Bólide-caixa nº21 – B44 (1966-67) debaixo de uma tela-véu onde se pode ler “Por que a impossibilidade?”. Com uma frase somente Oiticica fez indagações existenciais sobre as possibilidades que se apresentam aos marginais: condenação em vida ou a morte? O massacre ou a liberdade de agir? A submissão ou a revolta? A lei ou a transgressão? É a imagem de Alcir que aparece reproduzida em serigrafia na emblemática bandeira Seja marginal seja herói (1968), síntese do projeto de marginalidade do artista que criou o parangolé Eu incorporo a revolta (1967).
Para Oiticica, Alcir e Cara de Cavalo representavam a mesma “revolta visceral, autodestrutiva, suicida, contra o contexto social” manifesta no herói anti-herói. Embora tenha reconhecido que Cara de Cavalo “pela sua neurose autodestrutiva” foi responsável “pela construção de seu fim”, o artista entendeu que o problema é que ele se tornara à toda sociedade o “símbolo daquele que deve morrer, morrer violentamente”. O artista encontrou na marginalidade a manifestação extremada da revolta e da independência. Ele se posicionou como “marginal mesmo: à margem de tudo”, e assim conquistou, como lembra Maria José Justino, a “surpreendente liberdade de ação”. Ele equiparava o marginal que escapa do controle pelo poder por meio do crime ao artista que encontra na arte a liberdade experimental e ilimitada. Na proposição de ser ao mesmo tempo marginal e herói, firma posição política contrária ao poder do Estado de Exceção constituído pela Ditadura Militar (1964-1985). O contundente manifesto estampado na bandeira Seja marginal seja herói foi realizado em 1968, ano em que foi decretado o Ato Institucional nº5 (AI5), extremado documento que se sobrepôs à Constituição Federal, suspendeu os direitos políticos, instaurou a censura ao pensamento e à produção de arte, institucionalizou a perseguição, repressão e tortura aos opositores, legalizou a violência do Estado contra os cidadãos.
No texto Esquema geral da nova objetividade brasileira, Oiticica coloca como uma das características da vanguarda brasileira da época a “abordagem e tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos”, afirma ainda que diante da adversidade vivida no Brasil “para se ter uma posição cultural que conte, tem-se que ser visceralmente contra tudo o que seria o conformismo cultural, político, ético, social”. Este é o fundamento da posição ética de sua obra, gestado diante do impacto da execução de Cara de Cavalo; é por este motivo que usa as imagens dos bandidos mortos, e não para fazer uma homenagem pessoal ao amigo ou um elogio superficial à marginalidade.
A morte endereçada não só ao criminoso, mas também às vítimas do sadismo do poder autoritário. Na obra de Cildo Meireles Inserções em circuitos ideológicos 2 – Projeto cédula, quem matou Herzog? (1975) foi carimbada a pergunta proibida nos anos de chumbo sobre cédulas de Cruzeiro, moeda corrente à época. Diante do impacto de outros assassinatos ocorridos também por motivações políticas, o artista atualizou as inserções e perguntou por outras mortes violentas que ganharam repercussão nacional: Porque Toninho do PT foi assassinado? (2001), referindo-se ao prefeito de Campinas (SP); Porque Celso Daniel foi assassinado? (2002), prefeito de Santo André (SP); O que aconteceu com Amarildo? (2013), ajudante de pedreiro torturado até a morte por policiais em uma UPP do Rio de Janeiro. Em resposta à violência da ditadura, Cildo Meireles realizou ainda a obra Tiradentes totem – Monumento ao preso político (1970), ação contundente e radical ocorrida em Belo Horizonte às vésperas das comemorações do enforcamento e esquartejamento do mártir da Inconfidência Mineira, e que envolveu atear fogo a dez galinhas vivas atadas a uma estaca de madeira, durante a exposição de inauguração do Palácio das Artes.

Realizado no mesmo ano da inserção Quem matou Herzog?, Sal sem carne (1975) é uma obra complexa de Cildo Meireles que trata do gueto e do confronto entre as culturas branca e indígena. Definido pelo artista como radionovela, é um disco com duas longas faixas, partes 1 e 2, que ocupam os lados A e B, produzidas a partir de sons gravados em suas pesquisas pelo interior de Goiás em 1974. Gravado em 8 canais, sendo 4 ligados à cultura branca e os outros 4 ligados à cultura indígena, o disco contém duas faixas com a mesma estrutura: sobreposição labiríntica de sonoridades e narrativas de culturas distintas e que se desenrolam simultaneamente. No rótulo laranja do LP de vinil, onde geralmente se colocava o título do disco, Cildo Meireles colocou a palavra “pesquisa”, direcionando o entendimento para os processos de coleta de material, procedimentos de interpretação, associação e aprofundamento crítico.
O conteúdo é composto por uma mescla de sons provenientes de diversas fontes. O disco começa com a voz de uma locutora informando: “São 0 hora, 0 minuto, 0 segundo”, fala inaugural e recorrente marca um tempo inicial que não se move, seguido de ruídos de fita acelerada e de sinal sonoro de fora do ar. O locutor diz: “a sapataria moreno, onde é proibido vender caro, informa: acabamos de transmitir diretamente do Observatório Nacional do Ministério da Educação e Cultura…”. Outra locutora fala em português, espanhol inglês e francês algo em torno da “diferença entre o centro universal e o centro universal coordenado é de apenas 2 décimos de segundo”. O serviço de horas e a reflexão sobre o tempo permeiam as faixas, afinal trata-se da emissão da “Rádio Relógio Integral” que estrutura a obra.
Em meio aos ritos religiosos católicos celebrados na maior romaria do Centro Oeste brasileiro, em Trindade (GO), destaca-se o sermão de um padre que diz “Irmãos caríssimos, é difícil se comunicar com os outros, ser companheiro do próximo, amar com o coração (…)”. Ouve-se a voz de Cildo Meireles perguntando aos romeiros “Você já viu um índio?”. E muitas das respostas que colheu indicam o estereótipo pelo qual a sociedade discrimina e marginaliza os índios: “antigamente índio era animal”, “índio é uma nação de gente selvagem”, “já tá acostumado a passar de qualquer jeito”, “o homem amansou os índios”, “o índio come carne assada sem sal”. Esta referência constante feita ao hábito alimentar dos índios gerou o título da obra. Outros entrevistados se reconhecem descendentes de etnias indígenas Karajá, Xavante, Krahô. Entre os entrevistados pelo artista está Zé de Nem, um índio cego da etnia Xerente que sobreviveu a um massacre e que relata “eu me lembro bem, atacou a aldeia, fez extravagância com os índios, mandou matar os índios”. Também há entrevistas com índios Kraô que denunciam “nosso povo é pobre demais (…), hoje o meu povo não tem lugar (…), não tem direito de nada (…), não tenho direito de sair, pra sair de lá tem que ter autorização da FUNAI, os índios tão vivendo como prisioneiros (…) só falta matar os índios tudo”. No momento em que a voz do índio fala do morticínio indígena, a voz do padre se sobrepõe na consagração do corpo e do sangue de cristo sacrificado na cruz. Um velho índio Krahô narra em sua língua mãe os massacres vividos por seu povo, que nos anos 1930 contavam apenas 300 indivíduos, sobreviventes do enorme massacre realizado por meio de roupas contaminadas jogadas por um avião. Consta ainda fragmento de entrevista de um sertanista que trabalhava com familiares do artista. As narrativas são entremeadas pelo canto dos índios Krahô, pela música da Folia do Divino Pai Eterno e das cerimônias católicas, pelos ruídos, falas desconexas e risos de populares concentrados na romaria. As intervenções da rádio informam as horas, anunciam comerciais, e apresentam uma coluna de saúde que divulga os benefícios do sal no combate ao bócio. No final da parte 2 do disco o tempo não passou, pois o locutor informa são “0 hora, 0 minuto, 0 segundo”. Essa paralisia temporal significaria que o conflito entre brancos e índios continua no mesmo ponto desde o descobrimento? Não existem linearidade e hierarquia na edição, as sonoridades e narrativas se sobrepõem num palimpsesto, enquanto uma se eleva e a outra se abaixa, se sucedem em fuga, se intercalam e se mesclam, criando um ambiente sonoro denso, cerimonial e de difícil apreensão.
Na capa do disco, que não tem escrito nem mesmo o título, Cildo Meireles utilizou a sequência de quase três centenas de fotografias p&b – copiões de negativos e sem pretensões de arte – apropriadas de um dossiê elaborado por seu pai, que trabalhava no antigo Serviço de Proteção ao Índio, sobre uma matança de índios Krahô a mando do fazendeiro Raimundo Soares, ocorrida na antiga região do Bico do Papagaio, àquela época norte de Goiás e atualmente Tocantins. Grande parte das fotografias documenta o cotidiano e a cerimônia ritual dos índios que naquele momento tentavam recuperar sua identidade desfigurada pelo quase extermínio, outra parte mostra casas de homens brancos. No centro da capa destaca duas fotografias: na frente, um grupo de índios; no verso, um doente mental voltado para um canto de parede, contra a qual batia incessantemente com a cabeça – esta fotografia é de autoria do artista. O mesmo louco e um índio Krahô figuram nas efíges da nota de Zero cruzeiro (1974-78), que juntamente com a informação constante de “0 hora, 0 minuto, 0 segundo” apontam uma conexão entre as duas obras. Ambos, louco e índio, são desprovidos de autonomia jurídica, de função social e excluídos das engrenagens produtivas da sociedade, por isso são continuamente violentados.
No encarte de Sal sem carne, Cildo Meireles transcreveu o fragmento de uma fábula que conta o latrocínio testemunhado apenas por duas aves, que ao serem reconhecidas pelos criminosos como “as testemunhas do nosso crime” geraram a provas que acarretaram suas imediatas prisões pela polícia. Desta forma, alude ao processo aberto por seu próprio pai e que resultou na prisão do fazendeiro Raimundo Soares, a primeira condenação aplicada no Brasil a um branco por assassinato de índio.
O intolerável sem filtro
Algumas das obras aqui tratadas possuem imagens chocantes e no limite do intolerável. Entretanto, não operam com a regulação estética da violência definida por Jacques Rancière em A imagem intolerável, ao referir-se à necessidade de aplicação de um filtro à categoria de assuntos e de imagens impactantes, que geralmente as pessoas se recusam a ver e a tomar conhecimento. Em um segmento da arte brasileira o uso de imagens com conteúdo intolerável se faz sem regulação, sem a distância fria do observador impassível. Os diferentes meios, suportes e procedimentos empregados pelos artistas, por mais elaborados e sofisticados que sejam não funcionam como amenizadores do problema para torná-lo tolerável. Ao contrário da não exibição das vítimas, postulada pelo filtro de Rancière, aqui ocorre exibição dos corpos vitimados, das faces dos assassinos, das armas e das cenas dos crimes, dos equipamentos de repressão e penalização. É uma produção feita com a pulsão da vida ameaçada diante da crueza de uma realidade convulsiva e excessivamente violenta, por isso não usa estratégias de aplainamento do assunto para atrair a atenção dos espectadores.
Clarice Lispector sentiu em seu corpo os tiros que atingiram Mineirinho, e o poeta Haroldo de Campos mostra, no poema Servidão de passagem (1961), o corpo esfacelado como “carne carniça carnagem”, “sangragem sangria sangue”, homemmoendahomemmoagem (…) de morte a morte só moagem ossomoagem”. E Arnaldo Antunes no poema O corpo (1992) nos diz: “o corpo se cortado espirra um líquido vermelho. O corpo tem alguém como recheio”. Existe um viés antropofágico a atravessar várias esferas da cultura brasileira e por meio dele o corpo aparecerá quase sempre violentado. Os meios da arte são usados para modificar o significado e a constituição de imagens, objetos, documentos, palavras e situações retiradas da vida cotidiana. Embora consciente de sua própria impotência para alterar os rumos do mundo, a produção de arte, como prática estética e política, não deixa de refletir sobre os problemas que o afetam.

A instalação Atentado ao poder (Via crucis) (1992) de Rosângela Rennó refrata completamente a proposição do filtro para as imagens intoleráveis. A obra indicia temas complexos como o espaço da fotografia diante da amnésia social, a imagem da violência divulgada pela mídia e a distância entre o poder e os excluídos. A instalação é composta pela sequência de treze fotografias de homens brutalmente assassinados nos subúrbios do Rio de Janeiro, coletadas diariamente das páginas policiais de jornais populares durante os 13 dias da realização da Conferência Rio Eco 92, organizada pela ONU, que reuniu chefes de Estado e autoridades mundiais para discutir providencias para os problemas ecológicos que já afetavam globalmente o planeta. As fotografias em preto-e-branco, originalmente publicadas em formato horizontal, têm suas posições invertidas para a verticalidade alterando nosso modo habitual de ver os cadáveres; são numeradas em algarismo romano por meio de perfurações e agrupadas sobre o piso encostadas à parede numa sequência ladeada por margens de fotografias pretas; por trás e nos pequenos intervalos entre as imagens irradia a aura de uma luz verde, cor geralmente associada à ecologia, mas que por ironia ali é mórbida. O poder surge na frase The earth summit escrita em inglês, e fixada na parede bem acima das fotografias, referindo-se à cúpula do poder mundial reunida na conferência, que soberana decidia os destinos da Terra, alheia ao horror vivido cotidianamente pelas camadas baixas da população, desconhecedor das mortes sangrentas e dos cadáveres caídos no chão, massacrados e exibidos sem nenhum pudor.
O subtítulo da instalação remete à Via Crucis, representação do martírio e morte de Cristo composta tradicionalmente por 14 quadros chamados de “estações”. Mas Rosângela Rennó apresenta apenas as 13 que exibem o sofrimento e a morte daqueles que atentam contra os sistemas de poder, sejam quais forem. Falta a primeira estação, que representa a condenação à morte. No caso dos homens mortos presentes na obra de Rennó, não houve prisão, processo e julgamento dos réus. Houve apenas a execução sumária, sem chance de defesa. Ao remeter à Via Crucis a obra busca a representação da memória do assassinato. Apesar da aura verde não há sacralização e nem mitificação na banalização da morte de criminosos. O termo extraído do contexto iconográfico do catolicismo faz lembrar ainda os santos martirizados, crucificados, queimados, flechados, apedrejados, cegados, torturados até a morte. O conjunto de 13 homens cruelmente alvejados formado por Rosângela Rennó antecipou a imagem de massacres e chacinas que se sucederam durante os anos 1990.
Também as fotografias de Alberto Bitar pertencentes à série Corte seco (2012-2013) recusam o uso de filtro para abordar o intolerável. Suas imagens são tomadas diretamente nas cenas de crimes e registram assassinatos ocorridos na região da grande Belém, provocados por motivos os mais diversos e às vezes banais. Corpos caídos no chão às vezes improvisadamente cobertos por lençóis ou folhas de jornal, outras vezes depositados em carrinhos de construção ou descobertos simplesmente, são fotografados antes de serem recolhidos pelo IML em meio ao ambiente onde o crime aconteceu, locais baldios ou ruas de bairros periféricos. Algumas vezes são fotografados quase solitariamente, e noutras com a presença de policiais, equipes de perícia e muitas pessoas que curiosas fazem um burburinho em torno desse tipo de fato. Estranhamente os cadáveres cobertos tem uma presença densa enquanto as pessoas presentes nas cenas parecem espectrais, transitórias e inidentificáveis. Os crimes ocorreram durante a noite, o que implica em procedimentos de longa exposição e uso de diversas fontes de iluminação artificial com colorações e temperaturas diversas, provenientes das lâmpadas dos postes de iluminação pública, dos sinais luminosos giroflex característicos das viaturas de polícia (que fazem as imagens ficarem borradas de uma névoa sangrenta), do equipamento de luz das câmeras de vídeo e do flash da imprensa, que potencializam a plasticidade e intensificam a dramaticidade da imagem. Alberto Bitar é editor de fotografia de um dos grandes jornais de Belém e convive profissionalmente com os fatos da violência e da criminalidade, assuntos que são pauta diária do jornalismo policial; na condição de repórter fotográfico teve acesso às cenas de assassinato e pôde realizar sua obra autoral, subjetivada, introspectiva e poética, voltada à morte enquanto acontecimento existencial que registra a fragilidade e a fugacidade da vida humana. Assim suas fotografias de cenas de crimes afastam-se totalmente do padrão do fotojornalismo.
A imprensa e a imagem do crime
A imprensa tem papel importante na divulgação da violência, na formatação da imagem e da repercussão pública dos crimes, na representação social dos criminosos e das vítimas.
É antiga a presença de reportagens sobre crimes e bandidos considerados de alta periculosidade nos meios de comunicação de massa brasileiros. Aqui, convém pontuar a relação entre Lampião e o documentarista Benjamin Abrahão Botto, que obteve autorização do cangaceiro para integrar seu bando com a função de documentá-lo no cotidiano. Além de fotografias Benjamin Abrahão é autor da única filmagem feita com Lampião. As imagens produzidas pelo documentarista foram enviadas à imprensa da capital federal, à época o Rio de Janeiro, e publicadas com destaque pela imprensa, visto que a longa caçada à Lampião envolvia grandes contingentes armados e atraía a atenção pública nacional. A produção de Benjamin Abrahão (que foi assassinado logo após o massacre ao bando de Lampião), além de ter registrado a particularidade comportamental e estética do cangaço, atuou de maneira importante na construção da memória de Virgulino Ferreira da Silva como um mito popular em todo o Brasil.

O escritor Nelson Rodrigues iniciou sua carreira de jornalista aos 13 anos de idade como repórter policial no jornal criado por seu pai – atividade que manteve por muito tempo nas redações dos jornais cariocas. Foi na redação do jornal de sua família que presenciou, aos 17 anos, o assassinato de seu irmão. A experiência do jornalismo policial e o trauma do crime possuem influência relevante em sua dramaturgia, de grave acento dramático e trágico, na qual o permanente conflito entre personagens, a recorrência aos temas da violência urbana do subúrbio carioca e principalmente à morte são elementos relevantes em muitas de suas peças. Em obras como Vestido de noiva (1943), Viúva, porém honesta (1957), Boca de ouro (1959) e Beijo no asfalto (1960), por exemplo, existem inúmeros personagens jornalistas, dissecados em seus caráteres e modos de trabalhar; por meio deles, Nelson Rodrigues fez críticas ao modelo de imprensa que opera com falta de ética e sensacionalismo, que trata a notícia como espetáculo e teatraliza os crimes sem medir as consequências da encenação.
Zé de Rocha mantém estreita relação com fotojornalismo, à medida que dialoga com os registros visuais de notícias sobre a violência que tomam capas e cadernos policiais dos jornais do Rio de Janeiro, porém a configuração plástica final de seu trabalho é essencialmente gráfica. Para compor sua obra seleciona e arquiva imagens de criminalidade urbana (balas perdidas, carros acidentados, ônibus queimados), mantendo como eixo conceitual e poético a noção de risco, tanto como situação de perigo quanto de desenho como risco sobre a superfície. O desenho com elevada qualidade técnica é a estrutura de sua produção. Executada em serigrafia sobre tecido, a obra Bala perdida – 2ª versão (2008) é constituída por um tríptico que forma uma narrativa ficcional sobre a morte do próprio artista atingido por uma bala perdida no meio da rua. A obra traz a figura da vítima comum (não implicada nos confrontos travados entre policiais e bandidos, mas por eles vitimados) personificada no artista, vestido com camiseta estampada com um alvo, elemento que acentua ainda mais sua fragilidade e insegurança. Desdobram-se três cenas em que Zé de Rocha se coloca no papel de todos os personagens envolvidos: é, ao mesmo tempo, o eu e o outro, a vítima e a testemunha ocular do crime. Assim como Clarisse Lispector sentiu a morte de Mineirinho, Zé de Rocha representa na sua própria pele os tiros que outros receberam. Não são autorretratos o que o artista faz, apesar de representar sua imagem. Na cena à esquerda, a figura é atingida na cabeça pela bala, enquanto lia na capa de um jornal a manchete “Traficantes metralham dois módulos da Polícia Militar”; na cena ao centro o corpo aparece caído no chão, coberto por uma página de classificados e rodeado por curiosos e testemunhas; na cena à direita, o artista contempla seu próprio cadáver estendido na calçada que é a cena do crime, que sem autor ficará impune, como tantos outros.
Outro trabalho de Zé de Rocha é o desenho intitulado A barca de Caronte (2009) que representa o cadáver do artista, ferido na cabeça, colocado dentro de uma carrinho de construção e coberto por uma página de jornal ilustrada com cena muito semelhante àquela vista na obra Bala perdida – 2ª versão. Nas manchetes estereotipadas e sensacionalistas do jornal, escritas em italiano, se pode ler: “Duplici homicidio a Rio”, “Esecuzione in pieno centro”, “Padre e figlio crivellati”; na secção News lê-se “Guerriglia urbana”. O trabalho foi executado no período de residência do artista na Itália e demonstra no jornal ficcional a imagem da violência brasileira que é divulgada no exterior.
O trabalho 12/09/2001 (2013) de Felipe Steinberg se constitui na apropriação da materialidade e do conteúdo de jornais, reafirmando a influência da imprensa na divulgação dos fatos violentos e na formação da opinião pública sobre a criminalidade. O artista replica a edição do jornal Correio Popular, de Campinas (SP), publicada na data que dá título à obra, intervém trocando o nome do jornal pelo do jornal americano The New York Times. A data da edição é justamente um dia após ocorrerem o sepultamento de Toninho do PT– prefeito de Campinas morto com um tiro em situação não muito esclarecida com suspeita de crime político – e o atentado terrorista ao World Trade Center em Nova York. Duas cidades abaladas por ações de grande violência, de distintas naturezas, e com forte impacto público. Felipe Steinberg republica integralmente o conteúdo da capa ocupada por manchetes sensacionalistas e pelas notícias trágicas ilustradas com fotografias espetaculares do atentado (publicadas em toda a imprensa mundial), do velório e do cortejo fúnebre do prefeito acompanhado por uma multidão de 60 mil pessoas comovidas, amedrontadas e perplexas. Entretanto subtrai todo o conteúdo das 39 páginas restantes que compõem os diversos cadernos do jornal, que publicadas em branco criam um apagamento que é crítico em relação ao silêncio da imprensa de Campinas sobre o assassinato do prefeito, em função da enorme repercussão midiática que o atentado norte-americano teve sobre a imprensa mundial. A obra mostra uma violência sem território e revive as histórias de um crime político e de uma ação terrorista que marcam o primeiro ano do século XXI. Felipe Steinberg é um artista que vive em constante trânsito e sua produção reflete a situação de deslocar-se por lugares distintos dentro do mundo globalizado procurando elos para estabelecer conexões entre culturas diferentes.
A cultura das armas e a educação para o crime
Concebida para ocupar a entrada da sala de exposição, a instalação Bala perdida (2009) do casal Leandro Lima e Gisela Motta recebe o espectador com a imagem de uma rajada de balas de vários calibres perfurando as paredes da galeria. Simples e impactante, é executada com sucessivos furos iluminados pelo interior da superfície por lâmpadas vermelhas de LED, o que lhes confere o calor da bala penetrando na parede, tornada organismo ferido, corpo que sangra ao ser violentado. A obra remete a um dos grandes problemas da violência urbana contemporânea: as balas perdidas disparadas cotidianamente na disputa entre facções criminosas e no conflito entre policiais e grupos de bandidos. Comenta o tiroteio descontrolado que alveja residências, instituições, automóveis e pessoas, causando elevado número de vítimas atingidas ou mortas enquanto transitavam pelas vias públicas. Os armamentos não podem ser vistos, o atirador não está presente na cena do crime, as vítimas perderam suas identidades e foram transformadas em números estatísticos dos índices criminais, esquecidas na repetição cotidiana, no silêncio do ocultamento e da impunidade. Mas, por outro lado, alvejar as paredes de uma instituição de arte não é um gesto que visa atacar a arte em si, antes leva a pensar nas relações que existem entre o mercado de arte e os mecanismos de lavagem de dinheiro, que colocam o banditismo rico e impune na condição de clientela com alta capacidade de consumo.
Da violência das balas perdidas sobraram os efeitos cruel e letal sobre as vidas também perdidas, e as sensações de perigo e insegurança que acarretam a patologia social do pânico, transitando o problema da instância da segurança para a da saúde pública. A instalação multimídia intitulada Alvo (2008) é outra obra de Leandro Lima e Gisela Motta que discute o estado de medo que toma as cidades atuais. Como um ambiente ameaçador a obra é montada em uma sala escura na qual o espectador ao adentrar passa a ser perseguido pela projeção de uma mira que tem em seu peito o alvo acertado. Ao colocar o corpo do espectador dentro da obra a dupla de artistas não pretendem apenas uma participação involuntária do mesmo, e sim a apropriação de sua própria vida como matéria da arte, para mostrá-lo como frágil e potencial vítima da rede de violência, conscientizá-lo da condição de pessoa comum sujeita à atrocidade.

Também de Leandro Lima e Gisela Motta a instalação Armas.obj (2008) é constituída pelo conjunto por 20 reproduções de armas instaladas horizontalmente na parede. São pistolas, submetralhadoras, rifles e snipers utilizados em videogames, reproduzidos tridimensionalmente com dobradura em papel, com escala e detalhes de texturas e cores reais. Tais armas têm origens em diferentes épocas e países, o que implica na historicidade e na desterritorialização da violência, seja real seja virtual. O trabalho questiona a indústria cultural e a indústria de brinquedos e de jogos eletrônicos que inserem dentro do entretenimento infantil vasta quantidade de armas, postas em combate pela criança que brinca com a violência; ressalta o lado perverso da cultura contemporânea que espetaculariza a violência e a introduz na atividade lúdica por meio do consumo, que usa do simples maniqueísmo para promover a educação para a agressividade que naturaliza e alimenta o crime.
A instalação Arsenal (2013-2014) de Marcela Tiboni também acumula reproduções de vasta tipologia de armas brancas e de fogo criando um ambiente repleto de armamentos dependurados na parede e dispostos no piso. Revólver, escopeta, rifle, Fuzis AK47 e AR15, bala de fuzil, metralhadora, metralhadoras de montanha e giratória, canhão, míssil, lança míssil, granada, escudo de choque e cassetete são reproduzidos em tamanho real com uso de madeira, folhas e tubos de papelão, lixa, fita adesiva e uma diversidade de fogos de artifício, que vai do simples traque até rojões e bombas de longo alcance, o que torna as réplicas bastante perigosas, uma vez que a pólvora contida no interior das armas pode gerar uma grande explosão colocando em risco vidas e patrimônios, fato que, inclusive, complica a exibição da obra em muitas instituições e implica ainda em um grande debate sobre os critérios materiais para obras que podem ou devem ser incluídas nos acervos de museus de arte contemporânea, dado que, por seu alto teor de explosão e combustão, a pólvora é considerada pelas normas museológicas internacionais como uma matéria proibida. A instalação de Marcela Tiboni cria um ambiente de alto risco, pois as peças podem ser manipuladas pelo público e assim é como uma bomba que pode ser acesa a qualquer momento, apesar da precariedade material, da improvisação dos recursos e da aparência de brinquedos inofensivos que suas armas possuem. O poder crítico de Arsenal está concentrado na reflexão sobre os processos de educação infantil que introduz nas brincadeiras a violência latente das armas de brinquedo, e na crítica à precariedade estrutural característica da condição adversa em que vive grande parte da população, e que é geradora da força violenta que circula na sociedade brasileira .
As armas são objetos destinados a coagir, dominar, ferir, imobilizar e matar pessoas ou grupos; elas existem desde os primórdios da humanidade e hoje a indústria de armamentos movimenta internacionalmente alto volume de capital. Os trabalhos Armas.obj de Leandro Lima e Gisela Motta e Arsenal de Marcela Tiboni tratam do excesso de armas e levam a pensar sobre questões como: o culto às armas; a posse ligada à noção de autodefesa numa sociedade cada dia mais violenta e com menos segurança; a necessidade de controle legal e de campanhas de conscientização e de desarmamento da população; o alto volume do tráfico de armas que abastece e alimenta outras formas de criminalidade; a cultura da violência instalada no modo de vida contemporâneo.

Muito mais perigosa e carregada de memórias criminais verdadeiras, a obra Menos um (2010) , de Milton Marques, é realizada com a apropriação de uma arma real. Surgiu da traumática experiência de encontrar seu atelier invadido e revirado por ladrões, que roubaram parte de seus objetos e equipamentos e deixaram o desconforto, o medo e a sensação de permanente insegurança. Depois de passar pelas instâncias policiais para registro e investigação do crime, o artista decidiu realizar esta obra como maneira de deslocar o trauma e compartilhar sua experiência de subverter o exercício da marginalidade. A elaboração do trabalho envolveu uma complexa e perigosa operação de relacionamento do artista com diferentes marginais, com o objetivo de comprar uma arma ilegal para retirá-la de circulação no circuito do crime. Foram meses de tentativas de negociações até que conseguiu sua finalidade. De posse do revólver, Milton Marques, com seus conhecimentos sobre o funcionamento de engrenagens e de maquinarias, o desmontou e instalou em seu interior um sistema automático que dispara tiros à medida que o espectador se aproxima da obra. Os tiros são pequenas frases, que podem ser lidas no interior do cano serrado do revólver, onde foi inserido um dispositivo digital de texto. A sequência das frases forma uma narrativa sobre os acontecimentos do roubo, da convivência e da negociação com bandidos até o momento da compra da arma, quando se encerrou o processo vivencial de elaboração do trabalho. Diferentemente de artistas que se apropriam de narrativas da violência alheia, Milton Marques fala em primeira pessoa e descreve a gravidade de sua experiência de infiltração no ambiente marginal, o limite do risco que correu para expurgar, como em uma catarse, a angústia e o sofrimento de ter seu atelier arrombado e roubado.
Os nomes das vítimas e os corpos dos criminosos

Armando Queiroz trata das muitas formas de violência, histórica e cotidiana, existentes no Brasil, principalmente na Amazônia, e trabalha levantando, por exemplo, os nomes das vítimas. A obra Documentos (2001) é constituída por uma vitrine que guarda cópias de três documentos impactantes que unem passado, presente e futuro, atualizando a memória da violência que se impôs e se impõe à sociedade. São eles: Autos da devassa sobre uns presos que foram mortos a bordo do navio São José Diligente no Pará, 1823, onde constam os nomes dos 252 revoltosos políticos mortos por sufocamento no porão do navio, recolhida em pesquisa na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; Lista de Ameaçados de morte onde constam nomes de 266 pessoas (trabalhadores rurais, sem terra, assentados, índios, quilombolas, ribeirinhos, lideranças, sindicalistas, agentes ambientais, agentes pastorais, religiosos, professores, uns raros advogados e políticos) de 17 Estados, sendo que o Pará aponta o maior índice – 91 nomes jurados de morte; Atestado de óbito, em branco, aguardando que o nome da vítima da próxima tocaia nela venha ser registrado.
A memória dos revoltosos assassinados no porão do navio São José Diligente no Pará em 1823 é revivida por Armando Queiroz também no vídeo intitulado 252 (2008), no qual cada um dos 252 mortos são lembrados por seus nomes pronunciados pela voz de 252 trabalhadores do mercado Ver-o-Peso, são assim arrancados do esquecimento em que foram engavetados pela história oficial, que apaga a lembrança dos vencidos em função da glória dos vencedores.
Armando Queiroz também aborda uma prática ainda bastante recorrente no Pará: a pistolagem, à qual se devem as execuções da lista de jurados de morte. O assunto é refletido na materialidade das obras da série Tiro e eco executadas com a gravação dos nomes de Quintino e de Sebastião sobre cápsulas de projéteis de revolver calibre 38. Trata-se do nome de Quintino Lira, conhecido pistoleiro que abandonou a prestação de serviços aos poderosos fazendeiros e políticos e tomou a posição de defensor e justiceiro do MST, ao ponto de ser responsável pelo maior assentamento de trabalhadores rurais sem terra, feito até a época de seu assassinato em 1985, atribuído a Policia Militar do Pará a mando de fazendeiros e políticos descontentes com sua atuação. Sebastião se refere ao nome do santo mártir do catolicismo, que sendo soldado romano tornou-se cristão e foi condenado pelo imperador a ser flechado até a morte, tendo resistido ao martírio. Assim como São Sebastião, Quintino abandonou a prestação de serviço aos poderosos e adotou a causa dos oprimidos.
Quintino Lira se tornou após sua morte um mártir da luta contra a opressão e a violência exercida sobre o movimento dos trabalhadores rurais e sem terra do Pará. O artista Éder Oliveira o retratou na pintura Quintino (2012) como um homem imponente e forte, sóbrio e bravo, de expressão marcada e olhar vigoroso, iluminado por uma luz quente e dourada que incide sobre sua face emoldurada pelo chapéu, sacralizado por uma aura que irradia em torno de seu corpo pelo espaço da tela e que lhe confere estatura de herói.

Retratos de presidiários anônimos são empregados por Rosângela Rennó na instalação Cicatriz (1996) e nas fotografias da série Vulgo (1998-1999). São imagens extraídas de negativos acervados no arquivo fotográfico do Museu Penitenciário Paulista pertencente à Penitenciária do Estado de São Paulo; trata-se do arquivo do Carandiru, que foi formado no departamento de psiquiatria para algum tipo de investigação e análise sobre as características físicas dos presidiários, bem como para compor a documentação relacionada às suas identificações. Na instalação Cicatriz Rosângela Rennó utiliza 18 fotografias p/b que registram marcas na pele, tatuagens de desenhos os mais diversos e palavras inscritas no corpo como símbolos particulares do sujeito e de sua comunidade. Junto às fotografias expõe 12 textos esculpidos em gesso, escritos em branco sobre branco, que fazem referência às cicatrizes como marcações físicas e psicológicas.
Tendo por título uma palavra que remete tanto ao estrato mais baixo da sociedade, a ralé, quanto ao cognome que suprime a identidade civil, Vulgo é uma série de fotografias que investiga caracteres físicos de homens detentos, registros incomuns dos desenhos particulares de redemoinhos formados pelos sentidos em que os fios de cabelos nascem no topo ou na frente da cabeça, visíveis apenas quando os cabelos começam a crescer após serem raspados, e destacados nas imagens por uma coloração avermelhada. Dos 16 retratados apenas 4 são registrados de frente, mas suas identificações são quase impossíveis devido a posição abaixada da cabeça, num gesto de obediência à autoridade que efetuou a documentação. Somente um deles tem numeração afixada sobre a testa; seu nome ficou perdido no anonimato do sistema prisional tradicional em que o detento tem como parte de sua punição a perda de sua dignidade humana e de sua identidade particular, para tornar-se somente um número e um apelido no meio da massa de criminosos sob o controle e a vigilância do aparelho repressor do Estado. São ampliações de imagens arquivadas em negativos deteriorados e esquecidos dentro da instituição, registros contendo ralas inscrições nas margens que apontam para algum tipo de catalogação que também se perdeu com o tempo.
Enquanto as fotografias tratam do anonimato dos condenados nos presídios, a outra obra Vulgo/texto (1998) traz a tona o nome dos criminosos. É um vídeo-objeto com animação de palavras projetadas sobre uma pequena placa de acrílico, montada sobre um tripé de alumínio. Vulgo também significa apelido, nome popular. E o trabalho faz a catalogação das alcunhas pelas quais os bandidos se nomeiam e são conhecidos: Tistão, Androides Dente de Lata, Pneu, Sangue Bom, Raposão, Macaia, Babalú, Bueiro, Nego, Crioulo, Ed Pistola, Mão Boba, e entre outros inúmeros outros bandidos anônimos figuram os nomes de Escadinha, Nem Maluco e Polegar, bandidos de grande periculosidade e conhecidos da imprensa policial.
As fotografias da série Inserção violência e arte – Brasil (2002-2010), de Rodrigo Albert, resultam de sua investigação, realizada durante oito anos, dentro do sistema penitenciário brasileiro. Não se trata de uma investigação sem comprometimento ético, agindo apenas de maneira documental, mas ao contrário, trata-se de colocar a fotografia, como arte, associada ao processo de recuperação de condenados, e da busca de uma função social mais ampla para o trabalho fotográfico. A peculiaridade da obra de Rodrigo Albert resulta tanto do modo como escolhe planos, enquadra personagens, ilumina situações, define campos cromáticos, quanto de sua penetração nos presídios e muitas vezes de sua convivência e relação de amizade com os presidiários que retrata. Suas fotografias de penitenciárias tradicionais são imagens que revelam a superlotação, a sujeira repugnante, a precariedade e o abandono de populações carcerárias rebaixadas em toda sua dignidade humana. Em contraponto ao encarceramento tradicional, Rodrigo Albert fotografa também presídios existentes em Itaúna e Nova Lima (MG) que operam com o método humanitário de recuperação, conhecido como APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados). São pequenos núcleos desprovidos de policiais e carcereiros, onde as chaves ficam nas mãos dos presos, chamados pelos nomes próprios, e cuja eficácia é demonstrada pela recuperação de 85% dos condenados. Conforme os princípios do método, a participação comunitária é fundamental no processo de recuperação. E aí entra o trabalho de Rodrigo Albert retratando os detentos, fixando na imagem a dignidade, a autoestima e a vontade que tais presidiários desenvolvem para si mesmos. A qualidade plástica das grandes ampliações e a densidade poética que estão contidas na obra de Rodrigo Albert, são exemplos de que a arte pode operar com procedimento ético e acompanhar as construções de outras áreas da sociedade sem que seu caráter estético autônomo seja corroído.
Preconceito social e racial: estereótipo do criminoso
Os preconceitos social e racial são mascarados no Brasil pela ideia de miscigenação das raças como mito fundador do país. Contudo, implicam na segregação ao gueto e na marginalização dos relegados às classes pobres da população. Diferentemente da produção modernista que colocava o negro dentro dessa mitologia, a produção contemporânea realizada por artistas negros ou descendentes de hibridação racial investiga os processos de segregação que resultam no estereótipo preconceituoso do criminoso.
O vídeo de Dalton Paula intitulado O batedor de bolsa (2011) coloca em pauta a violência contida nos processos de exclusão social e nos preconceitos raciais da sociedade, por meio dos quais formou-se uma imagem deturpada do criminoso e do marginal, associando marginalidade às pessoas de pele negra e de origem humilde, àqueles que vivem muitas vezes desprovidos de bens essenciais, mas que nem por isso seriam capazes de cometer crimes. O racismo, hoje criminalizado, tem seu lastro histórico herdado da escravatura entranhado no comportamento brasileiro. O trabalho registra a performance rápida e econômica – feita exclusivamente para a câmera, embora seja realizada no espaço público de uma rua em bairro de periferia, tendo como fundo um muro com pintura branca desgastada e como solo a calçada reformada precariamente pelo improviso popular. Com os olhos vendados e sem camisa, o artista tem nas mãos um cassetete de madeira, arma branca bastante utilizada pela polícia, com o qual tenta bater em uma bolsa feminina suspensa no espaço acima de sua cabeça. Como em numa brincadeira infantil, sem poder ver, golpeia o ar com o objetivo de surrar a bolsa; insiste até se cansar e abandonar a cena. A bolsa quase inatingível remete a outros significados: bolsa de valores pecuniários onde circula o fluxo do capital internacional, apartada da população segregada; a bolsa que resguarda os distorcidos valores morais e éticos das pessoas brancas das classes médias urbanas. Dalton Paula revive a situação de preconceito que sofrera quando criança, denuncia a violência racial e ao mesmo tempo expurga a desmedida associação da imagem de um menino negro e pobre à figura do marginal de rua, autor de pequenos furtos conhecido como pivete, trombadinha ou “batedor” de carteira ou de bolsa.
Os trabalhos de Paulo Nazareth também discutem as formas como o racismo e preconceito social influenciam na equivocada construção da imagem pública do marginal, não somente no Brasil, mas no território globalizado onde os povos negros foram escravizados, subjugados e relegados à margem da sociedade. O artista se confronta com o sistema de exploração e exclusão do negro, assume a estética da precariedade, emprega meios improvisados de comunicação de massa e de publicidade, faz uso da linguagem escrita em panfletos baratos e cartazes de grande precariedade material, com mensagens sempre politicas, irônicas e diretas. Existe uma tensão social na fotografia Eu não vou te roubar (2012), na qual o artista se retrata junto a um amigo no meio de uma rua de Santa Luzia, periferia da grande Belo Horizonte, ambos segurando cartazes muito crus feitos sobre pedaços de papelão, nos quais estão escritas a frase título, em um cartaz em inglês e no outro em português. A imagem faz lembrar que nas periferias das grandes cidades os jovens negros do sexo masculino, confundidos com criminosos, são alvos preferenciais e constantes de execuções praticadas por policiais. O panfleto Precisa-se de homens feios e mal encarados (Sem data) anuncia uma empresa internacional especializada na prestação de serviços de limpeza e manutenção social, que desenha uma espécie de fenótipo racial do subalterno adequado às funções de segurança ou vigia de seus semelhantes: “negros, mulatos, mamelucos, confusos (…) brigões mas subservientes”. Com sarcasmo e ironia agrega à peça gráfica a solicitação de “Leia a Bíblia” seguida das indicações de autores e capítulos a serem lidos (hábito trazido dos impressos produzidos por empresários evangélicos), e inclui sub-repticiamente citações bíblicas referentes ao assassinato de Abel por Caim – episódio no qual irmão mata irmão – e à máxima cristã “amemos uns aos outros”. Ao lado do texto reproduz a imagem extraída de uma gravura de Jean Baptiste Debret que representa um homem negro, um escravo com uma máscara de ferro sobre o rosto e com um grande vaso na cabeça, índices da violência sem limite da escravidão. Um panfleto crítico e não panfletário, que revela a agressão contra o semelhante que vive nas mesmas condições e que possui a mesma origem, e mostra como o excluído é usado para violentar o excluído.
As pinturas realizadas por Éder Oliveira tanto sobre paredes e muros de espaços públicos quanto sobre o suporte tradicional da tela retratam homens jovens, anônimos, geralmente mulatos, pardos, caboclos, mamelucos, cafuzos, com os marcantes traços fisionômicos da mestiçagem amazônica – sendo o próprio artista descendente de negros e índios há em relação aos seus retratados um processo de identificação. Não se sabe se são bandidos ou vítimas da violência. Sabe-se apenas que são, sem dúvida, marginalizados, provenientes dos extratos mais baixos e desprovidos de oportunidades de ascensão dentro da trama social, personagens perdidos na massa que só podem ocupar as páginas de jornais e adquirir visibilidade pela prática do crime ou por ser vítima dele, por isso os retratados não tem seus nomes anexados aos títulos das pinturas. As obras resultam da apropriação de fotografias extraídas das páginas policiais dos jornais de Belém, entretanto o artista distorce a natureza da imagem pela ampliação de escala que confere certa monumentalidade, e pelo uso de uma paleta reduzida e singular produzida pelo daltonismo, que ao fim quebram o convencionalismo formal dos retratos. Os trabalhos da série Camisa azul (2012) encontram na simples camiseta o motivo pictórico aprofundado na cor e no debate entre luz e sombra, nos contrastes e acordos cromáticos entre figura e fundo, e nos recursos expressivos do gesto. O embate de Éder Oliveira com os meios e o suporte da pintura transpira na fisionomia de seus retratados. As expressões de medo e revolta tomam os olhares duros dos homens e traduzem não só um sentimento individual, mas de uma parte da população historicamente segregada e marginalizada, excluída dos benefícios sociais, analfabeta e sem perspectiva de futuro, constantemente ameaçada e oprimida pelos aparelhos de segurança pública.
Os aparelhos de segurança e repressão
Inteiramente crítica, provocativa e questionadora, a produção de Berna Reale reflete sobre as formas pelas quais a violência de fato e simbólica se apresentam na sociedade, sobre como o poder viola os direitos das camadas pobres da população usando seus aparelhos de segurança para mantê-las nas periferias pobres, coibir suas expressões políticas e oprimir suas revoltas e comportamentos agressivos às ordens política, jurídica, econômica, chamadas de ordem pública. Acredito que seja relevante dizer que a artista trabalha profissionalmente como perita criminal da polícia de Belém, e que tal experiência se revela no modo intenso e aprofundado como trata as questões da violência e da morte. Seja apresentada em vídeo ou em fotografia sua obra tem como estrutura a linguagem da performance. Berna Reale faz uso de seu corpo como suporte das imagens inquietantes, inventa situações que provocam grande impacto e estranhamento. Cada obra exige um esquema de produção particular e complexo: maquiagens, figurinos, objetos e adereços, cenários, linguagem e modo de captura da imagem, equipe técnica com certa extensão. No vídeo Palomo (2012) a artista como um soldado de batalhão de choque está vestida com farda de cor preta sem identificação de nome ou corporação e porta uma focinheira no rosto; montada em um cavalo branco pintado de vermelho, faz uma ronda intimidante pelas ruas esvaziadas da região central de Belém. O instinto de agressividade e ferocidade, que é uma qualidade animal presente na humanidade, é explicitado pela focinheira que limita a consumação da agressão e pela presença desconcertante imagem do cavalo pintado de sangue. A performance é conduzida com autoridade e austeridade militar evocando a memória histórica e cotidiana da truculência policial que se abate não somente sobre os bandidos mas também sobre manifestantes de todas as ordens, descontentes com o sistema, pobres, negros e minorias; abre a ferida do medo que a população sente dos aparelhos policiais, entendidos mais como ameaças do que como instituições da segurança pública.
O vídeo de Alexandre Vogler intitulado O dirigível olho grande – RJTV (2002) faz uma paródia do programa da Rede Globo, RJTV, e assim trata com humor tanto o telejornalismo voltado à violência quanto as operações criadas pelos aparelhos de segurança pública para contê-la. Na matéria original apropriada pelo artista o apresentador Helter Duarte narra, consternado, o falecimento do jornalista Roberto Marinho, personalidade poderosa e influente na cena brasileira. O movimento labial do apresentador em descompasso com as palavras ditas pela voz de Alexandre Vogler, as diferenças de qualidade entre imagens apropriadas e realizadas pelo artista, a linguagem propositadamente precária e o uso de baixa tecnologia, tornam o trabalho ainda mais potente no sentido de reforçar a ironia e o deboche sobre a fragilidade dos sistemas de segurança pública. O artista se apropriou de um bloco do noticiário e inseriu nele uma reportagem ficcional que apresenta a fase de teste de “uma nova arma contra o crime: o dirigível”, anunciado com um projeto eficaz para a cidade do Rio de Janeiro que tem como diferencial um pequeno dispositivo de vigilância aérea, o objeto preto de formato cilíndrico com um grande olho impresso com tinta prata, que inflado por gás hélio sobrevoa e monitora zonas de risco da cidade como “vias expressas, favelas consideradas perigosas, presídios de segurança máxima Bangu 1, Bangu 2 e Bangu 3”, além de desenvolver um “programa de monitoramento residencial”. Após registrar o lançamento do projeto realizado no Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar, a reportagem anuncia que o “espião de asas” será “implantado em 386 áreas críticas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro”. O olho câmera é capaz de detectar ações suspeitas num raio de 25 KM e emitir um sinal para uma antena na base da Secretaria de Segurança Pública, que o repassa aos helicópteros e às viaturas policiais da área. Em uma manobra de alta voltagem crítica, mas imperceptível, o artista inseriu no vídeo imagens subliminares do emblema da Ação Integralista Brasileira, partido político defensor do autoritarismo, ideologicamente comprometido com o Facismo Italiano e que teve ampla atuação nos anos 1930. A reportagem finaliza com imagens do dirigível sobrevoando prédios da segurança pública do Rio de Janeiro até cair no estacionamento de um departamento da polícia, enquanto a música Jailbreak, da banda de rock australiana AC/DC, toma o vídeo com a narrativa sobre um amigo que cometeu um crime passional, foi julgado e condenado a 16 anos de pena; na prisão aspira organizar uma rebelião, resolve fugir e é morto com um tiro nas costas; o que acentua a ironia com o mecanismo de segurança apresentado e aumenta o contraste com o padrão da linguagem telejornalística.
As fotografias de Bob Wolfenson da série Apreensões (2010) registram vasto conjunto de materiais – armamentos, munições, drogas, equipamentos, caminhões, carros, motosserras, máquinas caça-níqueis, apetrechos para caça e pesca, animais silvestres engaiolados, toras de madeira – aprendidos durante operações policiais realizadas em seis cidades de três estados: São Paulo e Juquitiba (SP), Belo Horizonte (MG), Cuiabá, Sinop e Guarantã do Norte (MT). Para apreender fotograficamente aquilo que as apreensões policiais retiraram de circulação no circuito do crime, o fotógrafo contou com a colaboração de um amigo delegado de polícia, Carlos Nader, que lhe franqueou acesso às autorizações para executar as imagens. Utilizou equipamento digital na captação, linguagem autoral aliada ao procedimento objetivo de fraccionar a cena fotografada em diversos quadros para obter resultados de alta definição: imagens intensamente frias, documentais e perturbadoras, que levam a refletir sobre o enorme papel que a fotografia desempenha nos processos de investigação e análise policiais, periciais e judiciais. Bob Wolfenson fotografou a violência de capitais e de cidades do interior do país, e o rol de materiais registrados indicia a variedade do repertório de crimes praticados nesse imenso território.
O crime dentro da obra
O cometimento de algum tipo de crime para produção da obra é empregado por alguns artistas cujos processos de criação exigem a tomada de atitudes radicais. Delitos que são justificados pela necessidade de criticar outras práticas criminosas, de invadir o limite do proibido, de postular o gesto marginal e transgressor como maneiras de potencializar o campo de tensões da arte contemporânea.
A videoinstalação Desvio para o branco (2013) de Helô Sanvoy é composta por vídeos, página de jornal, impressões de páginas de jornais em circulação pela internet e uma sequência de fotografias dispostas sobre a parede, à frente da parede objetos empilhados no chão, remetem a uma grande apreensão de droga. A obra foi realizada logo após a imprensa divulgar a apreensão de uma carga de cocaína encontrada em um helicóptero que caiu acidentalmente, levantando suspeita sobre a relação mantida entre o dono da aeronave e um importante político nacional. Resulta de uma ação estratégica de intervenção no circuito policial de Goiânia, envolvendo instituições do poder legislativo estadual e da segurança pública, além das páginas policiais de jornais e telejornal locais. Um vídeo documenta o artista confeccionando um tablete semelhante aos que os traficantes fazem para transportar pasta base de cocaína, feito de saco plástico contendo um quilo de gesso em pó e uma gravata, lacrado com o característico envolvimento de fita adesiva; o outro vídeo é a apropriação de uma entrevista do policial militar responsável pela apreensão dos tabletes, exibida na reportagem de um telejornal local; um conjunto de fotografias registra o abandono pelo artista de 14 tabletes na calçada em frente à Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, local hipoteticamente fora de suspeita para a prática de crimes dessa natureza. A imprensa noticiou a estranha intervenção sem nada explicar sobre a autoria da ação e a origem da suposta droga. Desta forma, Helô Sanvoy comete o crime de desviar o trabalho da polícia para comentar com humor crítico a associação entre narcotráfico e poder político, além de endereçar aos diversos crimes de colarinho branco, praticados pelos homens do poder, representados no trabalho pela gravata; aponta a dificuldade em definir quem é o homem da lei e quem é o homem fora da lei, e ainda incide no papel da imprensa como elemento de grande participação no circuito policial.
Artrafic – collier du Mozambique (2005), obra de Lourival Cuquinha é formalmente muito simples, feita com estrita economia de gestos e materiais, porém, dependendo do contexto, sua inserção institucional pode ser bastante complicada. É um trabalho humorado, transgressor, polêmico e de ativismo. O conceito da obra abarca muito mais que o objeto concretizado materialmente, envolve a noção de performance ampliada no deslocamento comportamental tanto do artista quanto do público, explicitando a pressão coletiva contra as normas vigentes que tentam regular e limitar a liberdade individual e criminalizar o sujeito por práticas inofensivas, todavia não autorizadas pelas leis. Discreta plasticamente e criminosa juridicamente, a obra é executada com um pedaço de haxixe espetado na ponta de uma agulha com uma linha atravessando o furo e se fechando como um discreto colar, acompanhado do Manual de Instruções reproduzido em fotocópia com desenhos em preto e branco. O objeto é para ser utilizado dependurado no pescoço e a droga é para ser consumida pelo seu portador, onde e quando ele achar conveniente. Para executar Artrafic – collier du Mozambique, que é produzido como múltiplo e que tem como matéria fundamental uma substância ilegal e marginalizada pela sociedade, o artista transporta ao seu modo pequenas poções de haxixe da Europa para o Brasil. Sendo uma obra de arte, coloca o trabalho no circuito e no mercado. Estão embutidos no processo de elaboração e de circulação da obra ações que o Código Penal classifica como tráfico internacional de droga, formação de quadrilha e apologia ao uso de drogas. O curador da exposição, o diretor da instituição ou o proprietário da galeria responsáveis pela exibição da obra também correm o risco de serem envolvidos em inquéritos policiais e processos judiciais. Ou seja, a obra afeta um amplo círculo de agentes profissionais do meio de arte e não somente ao artista. Lourival Cuquinha transpassa o permitido e avança numa zona marginal cometendo crimes em função da realização de uma obra que se coloca em posição extrema de combate ao conservadorismo e à hipocrisia das normas sociais, e cujo contexto artístico é atravessado pelos conceitos de arte relacional e de escultura social, uma vez que sua ação intervém junto ao debate social e jurídico sobre a legalização de substâncias consideradas ilícitas, propondo outras bases de reflexão e de redirecionamento da discussão. É importante destacar que a convicção do artista nos argumentos e nos conceitos estruturais da obra é fundamental para se desembaraçar de ações de repressão, seja policial seja institucional, com as quais a obra se defronta.
Olho na justiça (1992) é o título da intervenção que Xico Chaves realizou sobre A Justiça, escultura de Alfredo Ceschiatti instalada na Praça dos Três Poderes, à frente do Supremo Tribunal Federal, órgão maior do poder judiciário no Brasil. Coincidentemente, a ação aconteceu no mesmo dia em que as manifestações dos caras pintadas eclodiram nas ruas de diversas cidades brasileiras protestando contra o Presidente Collor de Mello, condenado, em 1992, à perda de mandato e inelegibilidade. O artista foi detido pelos policiais militares responsáveis pela segurança do local, e levado na viatura para explicar ao delegado o motivo da intervenção, considerada como crime de vandalismo contra o patrimônio público. A obra de Xico Chaves alcança um território de reflexões mais extenso do que o fato inédito da história política brasileira, da perda de mandato presidencial. Colocar sobre a venda, que impede a justiça de ver a quem julga, dois olhos bem abertos direcionados à direita de quem observa a escultura, desmontam com humor o mito da imparcialidade e revertem a imagem ao ponto negativo da parcialidade que provoca a injustiça. A escultura de Ceschiatti tem sobre o colo a espada, signo da autoridade que pronuncia a pena, mas não possui outro elemento iconográfico bastante característico das representações da justiça, que é a balança, signo da precisão dos julgamentos, justeza das sentenças e do equilíbrio entre os crimes e as penas. A justiça, tal como representada por Ceschiatti, aponta para a imprecisão, e apropriada pela intervenção de Xico Chaves passa a ter sua constituição ressignificada diante da trajetória histórica do Poder Judiciário brasileiro. A intervenção de Xico Chaves nos conduz a indagações sucessivas: que justiça é essa que vê e ainda olha à direita – direção que aponta ao campo de poder dominante e conservador da sociedade? Se o teatro do tribunal, com todos os seus atores, encena seus rituais punitivos baseado em leis que foram elaboradas para servir aos poderosos e punir os fracos, como então punir as injustiças praticadas pelos poderosos contra enormes frações da sociedade? Como acreditar na justiça se ela se enreda com os outros poderes, sejam legais ou não? Qual o nível de confiança que a população do país deposita na justiça que a ela é oferecida? Como redirecionar os caminhos para tratar as diversas formas de criminalidade praticadas no Brasil?
Autor
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Artista visual, curador e crítico de arte independente. Vive e trabalha em Goiânia/GO.
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Vou comoartilhar. Sensivel exposição de como é através da arte que um pensamento crítico pode germinar, arte para além da palavra, agregadora no meio de tanta ruptura e violência. A arte como a violência do pensar e do sentir para além do outro, mas uma convocação para a própria pele, a começar pela do artista, pele como palco e cenário dessa tragédia humana. A arte como último recurso capaz de não banalizar a violência. Verônica Dantas