Este texto inaugura uma nova seção na Caju, a Incubadora de Crítica. Através dela, a revista passa a publicar ensaios e análises de críticos em formação. Mestrando em História e Crítica de Arte pela Escola de Belas Artes da UFRJ, Thiago Fernandes escreveu sua análise a partir de uma provocação de Cezar Bartholomeu, artista e professor da EBA, que propôs aos alunos que escrevessem sobre as obras presentes na exposição Queermuseu, censurada em setembro do ano passado, e invadissem as plataformas digitais com o pensamento crítico sobre aquilo que não pôde ser visto no Espaço Cultural Santander, em Porto Alegre, onde a mostra estava em cartaz quando foi fechado.
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É possível identificar, ao longo da história, uma série de ciclos de iconoclastia, como é chamada a aversão às imagens. O primeiro deles surge no plano filosófico, ainda na Grécia Antiga, quando Platão acusa os artistas de criarem aparências, imagens sem qualquer função utilitária que fascinam a tolos e crianças. Ao contrário do artesão, que precisa conhecer o funcionamento do objeto para confeccioná-lo, o artista, segundo Platão, apenas reproduz a sua aparência e cria, portanto, um simulacro, charlatanice pura.
Também é uma questão metafísica que culmina na iconoclastia do islamismo, pois se o Deus maometano está em todas as coisas, se tudo é Deus, qualquer tipo de figuração deve ser abolido, sendo tolerados apenas motivos abstratos. Já correntes mais ortodoxas do judaísmo rejeitam até hoje qualquer representação visual, mesmo motivos puramente ornamentais, em respeito ao interdito das imagens imposto em passagens do Êxodo, Levítico e Deuteronômio.
Outro ciclo de iconoclastia surge no Império Bizantino, quando a igreja católica em ascensão teme que a presença de imagens nas igrejas, principalmente a imagem esculpida, que se assemelha aos ídolos pagãos, faça com que os recém-convertidos ao cristianismo não compreendam a diferença entre suas velhas crenças e as novas. Um defensor do uso das imagens pela igreja foi o papa Gregório I (c. 540 – 604 d.C.), que acreditava em seu papel pedagógico, uma vez que poderiam auxiliar os analfabetos, além de manter viva a memória dos episódios sagrados. No entanto, mais um ciclo de iconoclastia surge durante a Reforma Protestante, no século XVI, quando seus adeptos, em oposição à igreja católica, pregam a destruição de imagens e a perseguição dos que praticassem a idolatria, defendendo que a fé deve ser associada somente às escrituras sagradas. Essa lógica é seguida até hoje pelos cristãos evangélicos, ainda que, contraditoriamente, seus líderes religiosos sejam donos de emissoras de TV e façam uso de filmes, novelas e séries com temas bíblicos para propagar a sua fé.
‘Quem toma o poder tem o monopólio da imagem’, diz Mondzain
Uma modalidade de iconoclastia vem sendo praticada recentemente, já no contexto da cultura de massa. Uma iconoclastia mais uma vez baseada em um fundamentalismo cristão, mas que desta vez não se limita à iconografia religiosa e rejeita também toda imagem que manifeste a presença de grupos minoritários ou ainda do próprio corpo nu, ainda que este esteja presente na arte desde o período paleolítico. Marie-José Mondzain afirma, em entrevista recente (leia a íntegra aqui) que “todo poder tem suas imagens e recusa ao contra-poder ter sua visibilidade. Aqui estamos perto da problemática iconoclasta: quem toma o poder tem o monopólio da imagem e de sua significação. E, portanto, interrompe a busca icônica do outro, ou o censura”.
Trata-se, agora, de uma iconoclastia que paradoxalmente se utiliza da imagem, pois tem como principal plataforma as redes sociais para fazer circular fotografias e vídeos contaminados por discursos de ódio contra aquelas imagens que recusa e contra seus produtores. De repente, um vídeo de um minuto, com um fragmento de uma obra de arte em um museu – La bête, de Wagner Schwartz, apresentada na última edição do Panorama da Arte Brasileira, no MAM-SP – faz ir por água abaixo mais de meio século de discussão sobre performance, sobre o corpo na arte, sobre os Bichos de Lygia Clark. Ignora-se a exposição como um todo, o seu contexto, o seu recorte curatorial. E então aquele único vídeo, de um minuto, é compartilhado massivamente por iconoclastas que, ironicamente, creem fielmente naquela imagem, que é descontextualizada e esvaziada de todo o seu conteúdo. Repito aqui os questionamentos que ouvi recentemente do curador e professor da Uerj Marcelo Campos: tratar desses assuntos em plataformas e dispositivos da cultura de massa é a maneira certa? Como poderia a cultura de massa dar conta de toda a discussão que uma obra de arte como essa envolve? O problema é que a cultura de massa se bifurcou. Enquanto poderia ser utilizada como lugar de esclarecimento, talvez fosse possível, mas outros caminhos vêm sendo tomados.
Esses mesmos questionamentos haviam tomado meu pensamento quando li a convocatória do professor Cezar Bartholomeu, da Escola de Belas Artes da UFRJ, que propôs aos estudantes da Escola de Belas Artes que escrevessem textos críticos sobre as obras da exposição censurada Queermuseu: Cartografias da diferença na arte brasileira, e colocassem esse material em circulação nas redes sociais para que pudessem chegar, desta maneira, às massas.
Podemos retomar a discussão sobre iconoclastia e cristianismo a partir da obra de Fernando Baril, de 1996, intitulada Cruzando Jesus Cristo com o deus Shiva (1996), que estava presente na mostra censurada. Como o próprio título já sugere, Baril realiza um cruzamento da iconografia cristã com a iconografia hindu, mas não se limita a isto. À imagem de Jesus Cristo com múltiplos braços e pernas, como na iconografia de Shiva, segurando objetos das mais variadas origens e calçando um par de tênis, somam-se ainda símbolos da cultura de massa inseridos abaixo de seus pés, como um computador, um walkman, uma garrafa de Coca-Cola e ainda uma lata de sopa Campbell e uma serigrafia de Marilyn Monroe, ambas amplamente difundidas e elevadas ao status de ídolos pelo artista americano Andy Warhol, que inclusive era católico, apesar de este fato ser pouco comentado ao se tratar de suas obras. Também era católico o artista Andres Serrano que, no entanto, causou revolta na comunidade cristã ao executar a obra Piss Christ, que é uma fotografia de um pequeno crucifixo de plástico imerso na urina do próprio artista (veja aqui). Segundo o filósofo Arthur Danto, o objetivo de Serrano não era desrespeitar o ícone cristão, mas, ao contrário, recuperar a maneira como Jesus foi humilhado enquanto carregava a cruz.
O maior ícone da cultura pop é a imagem de Jesus Cristo
Ao contrário de Andres Serrano, que faz uso do choque e realiza um ato facilmente considerado ofensivo, o que Fernando Baril realiza é um simples ato de sincretismo, ao qual o brasileiro já deveria estar acostumado, se considerarmos que há séculos vemos divindades de matriz africana serem associadas à iconografia cristã, como tática dos negros escravizados que advém de uma reação à hegemonia imposta pela igreja católica no Brasil, que em um ato de iconoclastia seletiva durante o período colonial perseguiu todas formas de cultura material e imaterial de origem africana.
Shiva é o deus hindu da destruição, aquele que destrói para renovar. Segundo relatos de Fernando Baril, a obra foi executada em uma Semana Santa, tradição cristã que comemora a renovação. Portanto, podemos pensar em um elo entre a imagem de Cristo, que morre para ressuscitar, e a de Shiva, que destrói para reconstruir.
A partir da associação da religiosidade com a cultura de massas, Baril realiza uma crítica sobre a igreja como instituição indissociável do capitalismo, considerando não apenas o aumento desenfreado do consumo em datas como a Páscoa e o Natal, mas também o fato de ela nos empurrar seus produtos, como as já citadas novelas e filmes bíblicos, programas de TV religiosos, toalhas e canetas “milagrosas” e tantos outros.
Fernando Baril aproxima-se da Pop Art, não apenas por utilizar um repertório de imagens banais de produtos industriais como a Coca-Cola, um computador, um walkman ou ainda o rosto da estrela de cinema Marilyn Monroe. O maior ícone pop de sua pintura está no centro, é a imagem de Cristo, uma alegoria da fé que se tornou mercadoria no contexto da cultura de massa.
É irônico que sua pintura cause tamanha indignação em um país onde pastores pedem a fiéis seus cartões de crédito e entram em igrejas com carros de luxo pedindo para que fiéis os toquem para serem abençoados. A imagem acaba por impressionar mais do que aquilo que representa.
Finalizo este texto parafraseando o historiador da arte alemão Hans Belting em A verdadeira imagem: “o mundo não é a matriz para as imagens, como ainda pensava Günther Anders, mas as imagens tornaram-se matrizes do mundo”. Ou seja, está em vigor uma nova idolatria, e o homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens, fato que também é apontado pelo filósofo tcheco Vilém Flusser em sua Filosofia da caixa preta. O homem, segundo Flusser, esquece do motivo pelo qual as imagens são produzidas, a imaginação torna-se alucinação e há uma perda da capacidade de decifrar imagens. Se cultura de massa, por um lado, contribui com isto e, mais ainda, acaba por descontextualizar e esvaziar obras de arte ao disseminá-las massivamente em meios incapazes de abranger toda a sua conjuntura e séculos de discussões sobre história da arte, espero que este texto possa ao menos apontar para o caminho do esclarecimento.
Autor
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Mestre em Artes Visuais (História e Crítica de Arte) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ. Doutorando do mesmo programa.
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