Provocado pelos cursos de história da arte dados por Roberto Longhi em Bolonha no final dos anos 1930, Pasolini resolveu dedicar um breve ensaio a Caravaggio que, com sua luz, “inventou todo um mundo”. Escrito anos depois, em 1974, o texto foi publicado em Saggi sulla letteratura e sull’arte (Arnoldo Mondadore editore, Milano, 1999), coletânea organizada por Walter Siti e Silvia De Laude. Davi Pessoa, professor de língua e literatura italiana da Uerj, é quem assina a tradução.
Pasolini produziu ainda monografias sobre outros importantes artistas, como Carlo Levi, Zigaina, De Rocco, Renato Guttuso e Lorenzo Tornabuoni.
A Revista Caju inaugura, assim, a seção Garimpo, dedicada a resgatar textos (integrais ou excertos) que, por razões diversas, andavam esquecidos por aí.
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A luz de Caravaggio
Tudo o que posso saber de Caravaggio é aquilo que Roberto Longhi já disse sobre ele. É verdade que Caravaggio foi um enorme inventor e, portanto, um grande realista. Mas o que inventou Caravaggio? Ao responder tal pergunta, que não faço por pura retórica, não posso senão seguir os passos de Longhi. Caravaggio inventou: em primeiro lugar, um novo mundo que, segundo a terminologia cinematográfica, se diz pró-fílmico, e compreendo com isso o que está diante da filmadora; ou seja, Caravaggio inventou todo um mundo para colocar diante de um cavalete em seu ateliê: novos tipos de pessoas, no sentido social e caraterológico, novos tipos de objetos, novos tipos de paisagens.
Em segundo lugar, inventou uma nova luz: a luz universal do Renascimento platônico foi substituída pela luz cotidiana e dramática. Tanto os novos tipos de pessoas e de coisas como o novo tipo de luz Caravaggio os inventou porque os viu na realidade. Percebeu que ao seu redor – excluídos pela ideologia cultural vigente por cerca de dois séculos – havia homens que jamais haviam aparecido nos grandes altares, ou nos afrescos, e em certas horas do dia, formas de iluminação transitórias mas absolutas, que jamais haviam sido reproduzidas, sempre lançadas para mais longe do uso e da norma, tornando-se, por fim, escandalosas e, portanto, banidas. Tanto que provavelmente os pintores e, em geral, os homens, até o surgimento de Caravaggio, provavelmente haviam visto tais luzes.

A terceira coisa inventada por Caravaggio foi um diafragma (este também iluminado, mas de uma luminosidade artificial que só pertence à pintura e não à realidade) que divide tanto ele, o autor, como nós, os espectadores, de seus personagens, de suas naturezas mortas, de suas paisagens. Esse diafragma, que transpõe as coisas pintadas por Caravaggio para um universo separado, num certo sentido morto, pelo menos em relação à vida e ao realismo com que essas coisas haviam sido percebidas e pintadas, foi maravilhosamente explicado por Roberto Longhi com a suposição de que Caravaggio pintava olhando para suas figuras refletidas num espelho. Essas figuras eram, por isso, aquelas que Caravaggio havia realisticamente escolhido, aprendizes desleixados de vendedores de frutas, mulheres do povo nunca antes levadas em consideração etc., e, além disso, elas estavam mergulhadas naquela luz real de uma hora cotidiana concreta, com todo seu sol e toda sua sombra: no entanto, no espelho tudo parece estar suspenso, como num excesso de verdade, num excesso de evidência, tudo parece, então, estar morto.
Posso amar criticamente a escolha realista de Caravaggio, quando destaca nos personagens e nos objetos o mundo a ser pintado; posso amar, ainda mais, criticamente, a invenção de uma nova luz em que se passam os acontecimentos imóveis. Porém, quanto ao realismo é necessária uma boa dose de historicismo para caracterizá-lo em toda a sua imponência: não sendo um crítico de arte, e vendo as coisas numa perspectiva histórica falsa e achatada, em geral, segundo a minha opinião, o realismo de Caravaggio me parece um fato bem normal, superado ao longo dos séculos por outras novas formas de realismo. Quanto à luz, posso apreciar a invenção maravilhosamente dramática, mas para uma minha particular forma estética – devida, talvez, a certas manobras de meu inconsciente – não amo as invenções de luz: prefiro de longe as invenções de formas. Um novo modo de sentir a luz me entusiasma muito menos que um novo modo de sentir, por exemplo, o joelho de uma Nossa Senhora sob um manto, ou a síntese do primeiro plano de um santo: amo as invenções e as abolições do claro-escuro, das geometrias, das composições. Diante do caos iluminado de Caravaggio fico admirado, mas um pouco afastado (se é a minha opinião extremamente pessoal que, aqui, se quer conhecer).
O que me entusiasma é a terceira invenção de Caravaggio: isto é, o diafragma iluminado que torna suas figuras separadas, artificiais, como refletidas num espelho cósmico. Ali, os traços populares e realistas dos rostos tornam-se pó, numa caraterologia mortuária; e, assim, a luz, mesmo permanecendo muito transitória no instante do dia em que é apreendida, fixa-se numa grandiosa máquina cristalizada. Não apenas o Pequeno Baco está doente, mas também a sua fruta. E não apenas o Pequeno Baco, mas todos os personagens de Caravaggio estão doentes, justamente os que deveriam ser, por definição, vitais e saudáveis têm, ao contrário, a pele macerada por uma palidez amorenada de morte.
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A imagem em destaque deste post é A incredulidade de São Tomé, pintada por Caravaggio em 1601.
Autor
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Cineasta, poeta e escritor italiano (1922-1975), dirigiu filmes como "O evangelho segundo São Matheus" (1964), "Teorema" (1968) e "Salò ou os 120 dias de Sodoma" (1975). Frequentou os cursos do crítico Roberto Longhi e tanto sua obra cinematográfica quanto a literária são fortemente marcadas por imagens da história da arte.
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Cineasta, poeta e escritor italiano (1922-1975), dirigiu filmes como "O evangelho segundo São Matheus" (1964), "Teorema" (1968) e "Salò ou os 120 dias de Sodoma" (1975). Frequentou os cursos do crítico Roberto Longhi e tanto sua obra cinematográfica quanto a literária são fortemente marcadas por imagens da história da arte.