Rosa como a alvorada
As duas Irenes é um filme sobre famílias e espelhos – e sobre como famílias e espelhos podem ser experiências difíceis, no mínimo controversas, quando uma menina entra na puberdade. Com curta e elogiada carreira no circuito comercial brasileiro, o primeiro longa de Fábio Meira está agora disponível no sistema de compras Now, da Net, dando aos assinantes da operadora a oportunidade de (re)conhecer uma história comum, transformada em um conjunto de singularidades por roteiro e direção sensíveis, um ótimo elenco e por fotografia e direção de arte excepcionais.
Em uma cidade não identificada do interior brasileiro, em época imprecisa – referências musicais, figurinos e mobiliário dão conta de que se trata possivelmente do fim dos anos 1960 ou início dos anos 1970 – a primeira Irene do título (Priscila Bittencourt), de 13 anos, vive sua crise da adolescência oprimida entre a irmã caçula xodó e a irmã mais velha debutante, sentindo-se uma espécie de patinho feio de uma austera família de classe média. Ela não encontra apoio no pai, o cansado e silencioso Tonico (Marco Ricca), e nem na mãe (Susana Ribeiro), uma dona-de-casa marcial, que a rejeita por razões até então desconhecidas. Sua única interlocução é com a babá, Madalena (Teuda Bara).
Irene então descobre que existe outra Irene (Isabela Torres) na mesma região onde mora. Ela tem sua idade e também é filha de seu pai. À espreita, a menina observa que Tonico assume uma personalidade solar e empolgada quando está no convívio dessa outra família, nitidamente mais humilde que a sua, formada pela meia-irmã e pela mãe dela, a costureira Neuza (Inês Peixoto). Movida pela revolta, mas também por certo fascínio, Irene arranja uma forma de se aproximar desse lar livre e musical, quase um avesso do seu: compra um corte de tecido e usa o nome de Madalena para fazer uma encomenda para Neuza. As duas Irenes se aproximam e passam a conviver como amigas, numa troca simbiótica em que ambas se transformam.
Meira faz um filme sobre a procura e a transformação de identidades e suas dores profundas, dosando bem o peso que existe entre os silêncios, as mentiras e as possibilidades de redenção nas famílias. É um filme sobre os destinos e seus caminhos de reinvenção a partir da alteridade e da compaixão.
As duas jovens atrizes que interpretam as Irenes se saem muito bem, sobretudo naquilo que o roteiro insinua em vez de verbalizar. A presença de três atrizes formadas na carpintaria dramatúrgica do teatro (Teuda e Inês vêm do Grupo Galpão; Susana, da Cia dos Atores) dá densidade às três mulheres adultas do enredo, com a babá Madalena de Teuda significando uma espécie de “terceira margem”, território além dos ocupados pelas duas mães da história. Ricca, sem dúvida um dos melhores atores de sua geração, brilha ao conduzir com muita sutileza as distinções entre os dois Tonicos, diferentes pais para diferentes Irenes, demonstrando no entanto que ambos são máscaras genuínas de um mesmo homem.
Há ainda duas pequenas joias que brilham no curso da história. A primeira é a condução de parte da trama tendo a plateia de um cinema de interior como cenário, metalinguagem que se aproxima de Cinema Paradiso, A Rosa Púrpura do Cairo e tantos outros filmes que falam sobre amar os filmes. É lá, diante da tela, que as Irenes se encontram, se misturam e desabrocham. E, já que falei da Rosa, vamos ao rosa: é com essa cor que a direção de arte de Fernanda Carlucci se encontra com a fotografia elegante de Daniela Cajías, fazendo com a que a paleta rebaixada e caipira do filme se transforme em um elemento de narração do enredo e suas protagonistas. O rosa que toma conta do cenário não é fúcsia, não é choque, não é bebê: ele vai do chá ao goiaba, se misturando aos tons de terra, e toma conta das paredes do cinema, da escola, do quarto proletário da filha da costureira. É um rosa-Volpi: cor de desabrochar tímido, suspiro entre os gritos. Mas também um tom persistente e luminoso, como aquele que tinge as mais lindas alvoradas.