Você pode recortá-la em tiras longitudinais
forjar fibras
e trançá-las em nós cegos à maneira dos marinheiros
criando cordas a sustentar roldanas
para verter água
dos poços artesianos e açudes onde também bebem
as reses quando não há seca mas
essas mesmas tripas
entrelaçadas podem constituir instrumento
de tortura ou de suicídio então se omita
caso perguntem com muitas delas
é viável fazer um feixe de fios torcidos arrecife
para delimitar os sulcos de lama
onde repousam dejetos de 100 milhões de pessoas
mais ou menos ou então você pode
deixá-la intacta
e insultá-la fazendo respingar sobre o poliéster
muito de seu próprio ego a arte
não necessariamente engajada apenas fluida
imaginação individual um teste
do quão longe é possível chegar
preservando o plexo de artimanhas subjetivas
em contato com o espírito do tempo você pode
enovelar muitas delas e fazer teresas
para o intercâmbio de cigarros e demais itens
de grande necessidade caso esteja na prisão
em algum momento dos próximos anos outra ideia
seria deitar sobre ela em dias ruins
deixar a marca da sua genitália
dedos engordurados o santo sudário uma mensagem
numa garrafa quem sabe um dia
alcance o futuro eles podem
inventar um cadafalso
de design avançado encimá-lo
com as cores do patriotismo nos espetáculos
de suplício talvez testar
novas dobragens para inseri-la
tal um barco em origami no útero das mulheres
fazê-la abrir velas tão logo se aproprie
daquele remoto interior
onde irá sempre lembrar
um souvenir de viagem você pode
usá-la como trama para mordaças
e cabrestos impedindo seus amigos de darem tiros
no próprio pé mas eles podem
sobretudo estirá-la no assoalho
onde fazem as execuções e então logo será a imagem
autêntica de um país pacificado a firmeza o arrojo
da pátria a acolher o imobilismo você pode
usar um estilete sobre base sólida para recortar as estrelas
e pregá-las na blusa à moda do Terceiro Reich
atestando sua impureza com os furos
na malha você pode replicar máscaras
de flandres algo inofensivas até
de certo modo carnavalescas não importa a intenção basta
o aproveitamento máximo dos investimentos o tecido
feito espinha dorsal
duma grande salamandra
que pode ser exaltada num feriado nacional
de adoração ao mérito
daqueles que se esgueiram sinuosos
em nome da família eles podem
usá-la como mortalha
que esconda as escaras os tiros os estiramentos
na pele de quem foi abatido
ainda criança eles podem
estendê-la sobre hectares de terra morta
restituindo verde à cenografia
capturada pelos satélites e tornada verdade
neste novo tempo o tempo
da bandeira
que tremula
sobre nós você sabe
do que estou falando
+++
*Com o poema de Juliana Krapp, a Revista Caju inicia a publicação regular de textos inéditos de literatura brasileira.
O poema foi ilustrado com um detalhe da obra Azul nacional, de Lourival Cuquinha, s/data. Notas de dinheiro costuradas, moeda e ímãs, 60 x 60 cm, múltiplo com edição de 50 exemplares.
Autores
-
-
Artista plástico pernambucano, tem se destacado pelo uso do dinheiro e as discussões sobre mercado, trabalho e imigração em suas obras.
Relacionado
Jornalista e escritora.