A Revista Caju conversou com Paulo Henriques Britto, que acaba de lançar Nenhum mistério (Companhia das Letras, 2018), seu sétimo livro de poemas. Também tradutor, contista e professor universitário, Britto trata nesta entrevista, concedida em seu apartamento, na Gávea, zona sul do Rio, de questões que permeiam o trabalho que realiza com as palavras desde que estreou em livro, em 1982, com Liturgia da matéria.
Aliás, a escrita é, ela mesma, um dos temas de Nenhum mistério. O que pode a linguagem poética diante do caos e da causalidade que regem as coisas do mundo? Quase nada, enfatizam alguns poemas, muitos deles apresentados em versos mais curtos (heptassílabo, principalmente), uma novidade em relação a obras anteriores do autor, nas quais predomina o decassílabo. Com base em Mário de Andrade e Carlito Azevedo, o poeta chega a arriscar uma tese a esse respeito: “O heptassílabo talvez seja algo mais visceral, mais ligado à emoção do que o decassílabo, que tem a ver com distanciamento intelectual”.
A entrevista também aborda sua preferência pelas formas fixas e a pesquisa que desenvolve na PUC-Rio sobre verso livre em língua portuguesa; a importância da tradução para a escrita poética; o tema de memória que retorna neste livro; além de sua paixão pela música.
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Como você situa Nenhum mistério (2017) em relação ao conjunto de sua obra poética? E, mais especificamente, em que medida esse livro dá continuidade ou se distancia de temas presentes em Formas do nada (2012)?
PAULO HENRIQUES BRITTO: Os livros não são concebidos como livros. Eu vou simplesmente produzindo e, passados seis ou sete anos, eu começo a organizá-los, formando séries de poemas, e os envio à editora. Cada livro, portanto, não é concebido como projeto. Aliás, nada na minha carreira foi concebido como projeto. As coisas simplesmente aconteceram. Depois, você olha para trás e vê alguns temas que se repetem, algumas situações que se configuram, mas nada disso é planejado. Eu diria que cada um dos livros reflete um pouco o momento da minha vida. Esse último livro foi escrito sob o impacto de uma perda muito grande. Logo, o tema de Nenhum Mistério passou a ser a questão da perda.
Em livros anteriores, há a predominância do decassílabo, enquanto neste último aparecem muitas redondilhas maiores e menores. A que você atribui essa mudança formal?
PHB: Neste livro, eu trabalho principalmente com versos mais curtos. Ainda aparece um poema em decassílabo, mas tem muitos versos de sete, oito sílabas. Mas eu não sei exatamente por que isso está acontecendo. Eu posso até arriscar uma tese, que consistiria em dizer que os versos mais longos no português – decassílabos, dodecassílabos – são versos mais, digamos assim, eruditos, artificiais, mentais, enquanto que a poesia mais espontânea, mais natural da língua portuguesa é o heptassílabo, presente na música popular e nas cantigas de roda. Talvez, então, o heptassílabo seja algo mais visceral, mais ligado à emoção do que o decassílabo, que tem a ver com distanciamento intelectual.
Eu penso, por exemplo, em Mário de Andrade. O último livro que ele escreveu, Lira Paulistana (1945), pouco antes de morrer, predomina o heptassílabo. É uma fase em que ele está depressivo e desgostoso com a própria carreira. Por isso, eu acho que há uma certa tendência do poeta ir para o heptassílabo quando quer uma coisa mais crua, enquanto o decassílabo exige uma versificação um tanto cuidadosa, o que estaria do lado de uma coisa mais racional. E boa parte da poesia filosófica, expositiva em língua portuguesa sai, muitas vezes, em métodos mais longos. A exceção é João Cabral, que só trabalha com métodos curtos. O Carlito Azevedo, que é um poeta que trabalha basicamente com verso livre, quando ele faz uma reflexão sobre o tempo em Ao rés do chão, ele escreve decassílabos rimados.
Li uma entrevista recente em que você dizia que a forma fixa te “liberta”, que ela lhe propõe “soluções”, ao passo que o verso livre lhe causa certa “paralisia”. Gostaria, então, que você falasse dessa sua preferência pelo verso metrificado e da pesquisa que vem desenvolvendo nos últimos anos, no âmbito da PUC, sobre verso livre e modernismo.
PHB: Eu desenvolvo, há alguns anos na PUC, uma pesquisa sobre verso livre, que é um assunto muito pouco estudado em língua portuguesa. Pessoalmente, porém, eu tenho dificuldade em escrever em verso livre. Se eu tento escrever em verso livre, eu corro o risco de escrever lugares-comuns, de saírem coisas bobas. Quando eu me imponho uma disciplina – uma rede métrica, um esquema de rimas –, a espontaneidade é brecada. As coisas que sairiam prontas não vão ter lugar. Quanto mais complexa essa forma, mais difícil fica de dizer obviedades. A forma fixa tem um fator liberador. Libera até o inconsciente, eu diria.
Certa vez, você afirmou que o trabalho de tradução lhe ajuda a praticar a escrita e a entender melhor o modo de funcionamento da narrativa ficcional. Você traduziu, recentemente, poemas de Wallace Stevens e Elizabeth Bishop. A tradução lhe ajuda também a escrever versos? De que modo?
PHB: Certamente. A poesia é uma arte como outra qualquer, ela exige prática, exige destreza, exige artesanato. Uma pessoa, para se tornar artista plástico, passa horas fazendo desenhos, estudos de cores, de traços, de perspectivas etc. A pessoa que estuda piano – eu sei porque sou um péssimo pianista – tem que passar horas fazendo escala, fazendo exercício de dedo, enfim, estudos de todo tipo. E não vejo por que com a poesia tem que ser diferente. Quando você termina o trabalho de traduzir um poema, por exemplo, você não só fez a tradução de um poema, como você aprendeu a lidar com aquele esquema métrico, a pensar dentro dos moldes propostos pelo autor.
Eu dou oficina de criação poética na PUC e sempre digo aos meus alunos que, caso alguém queira praticar escrita poética, o ideal é que faça exercícios de tradução. Escolha um poeta – de preferência um poeta que não tenha tradução em português – e comece a traduzir, obrigando-se a ficar o mais próximo possível de suas opções formais. A tradução pode até não ficar boa, mas o aluno vai aprender muito sobre os recursos da língua portuguesa.
“Se eu tento escrever em verso livre, eu corro o risco de escrever lugares-comuns, de saírem coisas bobas. Quando eu me imponho uma disciplina – uma rede métrica, um esquema de rimas –, a espontaneidade é brecada. As coisas que sairiam prontas não vão ter lugar.”
O próprio fazer poético parece estar em questão neste seu último livro. Você enfatiza a precariedade, o fracasso, ou até mesmo a incapacidade da poesia em dar sentido às coisas, aos acontecimentos, ao mundo. O que pode a arte diante da multiplicidade da vida?
PHB: Poder, não pode muita coisa, não. Eu imagino que haja pessoas para quem a realização na arte dê sentido à vida, praticamente justifique a vida. Eu não sou assim. Absolutamente. Para mim, há coisas muito mais importantes do que a poesia, do que meu trabalho como escritor. Não é isso que dá sentido à minha vida, mas eu imagino que para muita gente é.
De qualquer modo, a arte sempre foi, e até hoje ainda é, uma maneira de eu lidar com a vida, com as emoções e experiências que eu tenho. A poesia é uma maneira um pouco mais impessoal de trabalhar todas essas questões, porque, quando eu me imponho uma disciplina externa, quando eu sei que eu vou produzir para outras pessoas lerem, isso me obriga a sair da esfera da subjetividade absoluta. Isso tem até um sentido terapêutico, eu diria. O trabalho com alguma forma de expressão artística também mexe com o inconsciente, também dá acesso a coisas que você normalmente não teria acesso com tanta facilidade.
Questões filosóficas que permeiam Nenhum mistério (2017) ficam mais evidentes, explicitadas, por exemplo, no poema Tocata (Página 51). De novo, a reflexão sobre a natureza do real; um real inacessível, caótico, inapreensível. Gostaria que você comentasse como foi a concepção desses versos e quais referências filosóficas inspiraram sua formação.
PHB: Minha formação não é em literatura. É em linguística, na verdade. Eu comecei trabalhando com Chomsky, com gramática gerativa transformacional, com sintaxe, como todo mundo da área, mas fui me interessando por semântica e voltei a estudar num dado momento matemática, passando a me interessar por lógica formal, por lógica modal, em resumo, por aplicações da linguagem matemática para a língua natural. Fiz isso até chegar em Wittgenstein. O primeiro livro dele é um marco no logicismo filosófico, que vai inspirar uma tendência de trabalhar a língua como sendo redutível, de algum modo, a uma lógica formal. E, depois de velho, ele cria outro sistema que nega completamente o primeiro.
À medida que mergulhei em Wittgenstein, fui esbarrando em problemas durante a elaboração da dissertação de mestrado, dedicada a pensar uma formalização que desse conta das conjunções do português. Nesse contexto, a leitura do Wittgenstein maduro, do Investigações filosóficas (1953), foi um divisor de águas na minha vida. Ele me convenceu de uma coisa que eu já estava sendo levado a concluir, que a matemática não é uma linguagem apropriada para servir de formulação da linguagem humana. A linguagem humana, em última análise, não é apreensível por uma outra linguagem, como a teoria dos conjuntos da matemática, por exemplo.
Daí em diante, confesso que parei de fazer leituras filosóficas e passei a trabalhar principalmente como tradutor, professor de tradução, e acabei me tornando professor de literatura e comecei a me interessar, a partir do final dos anos 1990, pelo estudo da versificação, que é agora o meu tema. Tradução de poesia e versificação em inglês e português, e um pouco também em francês.
A perda aparece como questão norteadora da obra. Há um verso muito bonito em Nenhuma arte (Página 9) que diz que “não há teoria, só práxis, da ausência”. Só é possível falar em significado quando se está diante da perda, da ausência ou da frustração? Por que?
PHB: Não, os significados existem. O que eu estou dizendo, em alguns poemas do livro, é que, sob certas coisas, a linguagem esbarra numa insuficiência. A questão da perda seria uma dessas insuficiências, quer dizer, só existe a vivência da perda, mas não há um discurso que se possa fazer sobre isso. Não há nada que você possa dizer de relevante que vá, de alguma maneira, reparar a ausência. Quando você vivencia uma perda, você não diz nada, você fica calado. A linguagem pode muita coisa, mas ela não pode tudo. E uma das coisas que ela não pode dar conta é a questão da ausência, do nada, da falta de significado, da falta de lógica das coisas, que é um dos temas também do livro. Desde o primeiro poema, a ideia do acaso aparece. A gente fica tentando achar lógica, causalidade, teleologia nas coisas, enquanto o que rege o mundo é basicamente o acaso. São os “deuses do acaso”.
“Quando você vivencia uma perda, você não diz nada, você fica calado. A linguagem pode muita coisa, mas ela não pode tudo. E uma das coisas que ela não pode dar conta é a questão da ausência, do nada, da falta de significado, da falta de lógica das coisas, que é um dos temas também do livro.”
Em Duas autotraduções (Página 54), há um verso que diz que a memória atua como uma espécie de “filtro” entre o “vivido” e o “lembrado”. Já em outro poema, Spleen (Página 18), a memória aparece como algo não muito confiável, até mesmo inconveniente. Gostaria que você comentasse a respeito do papel desempenhado pela memória no trabalho de um poeta.
PHB: A memória é algo que você vai construindo ao longo da vida, ela é seletiva, você a constrói influenciado por aquilo que você quer, por aquilo que você teme. A memória é um constructo, uma ficção que você cria. Em última análise, toda memória é algo construído, ainda que ela tenha uma base no vivido, um lastro existencial. E essa construção é feita, evidentemente, de maneira interesseira, ou seja, você inventa, altera, nega fatos para que a memória se submeta àquela imagem que você quer ter de si mesmo, que você quer passar para as outras pessoas. Tem um poema, no meu terceiro livro [Trovar claro, 1997], que começa falando justamente sobre a seletividade da memória.
Na série Caderno (Página 34), aparece um raro verso em tom imperativo que diz o seguinte: “Sempre aspirar à condição da música. Não só na arte: em tudo, (…)”. Como a música entrou na sua formação como poeta?
PHB: Na verdade, eu gosto mesmo é de música, muito mais do que de literatura. Eu sempre quis ser músico. A coisa que me dá mais prazer, até hoje, é ouvir música. Mas eu comecei a estudar muito tarde, já com 14 anos, e não demorou muito para eu perceber que não tinha nenhum talento. E, agora, coisa de três anos atrás, eu comprei um piano digital e voltei a estudar. Um plano que eu tenho para quando me aposentar é estudar harmonia a sério.
O grande atrativo da música, evidentemente, é que ela é pura sintaxe, ela não tem semântica. É pura forma. Todas as outras artes têm, segundo Schopenhauer, um lastro físico que, de certo modo, impede que elas sejam pura forma. Não existe, por exemplo, poesia pura, pois as palavras vão sempre arrastar significados, imagens. Interessante da música é que ela não tem nenhuma denotação, só tem conotação. Eu posso pegar um texto e fazer uma ópera ou fazer uma letra, mas a música em si não precisa daquilo. Ela se autossustenta apenas com a forma, sem precisar de nenhuma categoria de significado.
Uma das coisas boas de eu diariamente sentar ao piano e ficar estudando por quarenta minutos é que, durante esse período, eu me liberto das palavras. É o único momento do meu dia em que eu não estou pensando em palavras. Eu estou pensando, basicamente, em sons e movimentos das mãos.
Em Dos Nomes (Página 63), num determinado momento, aparece a imagem de um escritor que insiste em continuar a escrever, “mesmo sabendo que não há sentido”, mesmo sabendo da impotência da palavra, ou mesmo da linguagem, frente ao caos do mundo. O mundo, por isso, estaria repleto de nomes que são “cascos vazios”, sem estofo, espalhados por aí. A tarefa do poeta seria, então, a de produzir “cascos vazios”?
PHB: O poema é irônico, obviamente. E termina, depois de pichar tanto os “cascos vazios”, com uma confissão de amor pelos cascos. O verso final é “E há quem (imagine!) ache pouco,/ e abrace esses nomes sem estofo/ e diga e rediga esses ocos/ feito louco”. Mesmo tendo a consciência de que as palavras são só palavras, de que a relação entre a palavra e a coisa é uma relação extremamente questionável, mesmo sabendo que aquilo não tem um estofo real, o poeta ama e é apaixonado pela palavra.
“Na verdade, eu gosto mesmo é de música, muito mais do que de literatura. O grande atrativo da música, evidentemente, é que ela é pura sintaxe, ela não tem semântica. É pura forma.”
Se há algo que marca o contemporâneo talvez seja o fato de não haver nenhum tipo de alento no horizonte; é como se as promessas de futuro estivessem temporariamente interrompidas. Isso se acentuou bastante com a eleição de uma figura como Bolsonaro. A melancolia é apenas o que nos resta? A algo a ser feito ou ficaremos a assistir ao “espetáculo” de “nossa própria queda”?
PHB: Eu, pessoalmente, estou percebendo que é uma tendência mundial o surgimento de figuras que destilam ódio, que fazem questão de afirmar o desprezo que tem pelas regras democráticas. Isso virou uma marca do nosso tempo. A última vez que uma coisa semelhante aconteceu foi nos anos 1930. E é difícil saber o que vem pela frente, quer dizer, se essa tendência vai se consolidar como no passado ou se vai se esgotar, sem ir às últimas consequências. O que está claro é que projetos como a União Européia está seriamente ameaçado por esse tipo de pensamento.
Um pensamento que detesta o consenso, a negociação, o Outro, a alteridade. É preciso resistir, cada um à sua maneira, obviamente. Porque uma das características desse tipo de discurso é um ódio ao pensamento racional, à lógica, e a valorização, em contrapartida, de aspectos emocionais. O fascismo é uma forma de sentimentalismo, nesse sentido. E isso é algo perigosíssimo, obviamente. Onde isso vai dar ninguém faz ideia. Como é que o ressentimento transformado em vontade política pode levar a alguma coisa que não seja uma coisa destrutiva?
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Nenhum mistério ||| Paulo Henriques Britto
Companhia das Letras, 70 páginas.
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A imagem principal deste post é de Douglas Machado (2017).
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Jornalista, doutorando em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ