No livro Suspensões da percepção (Cosac Naify, 2013), o professor e crítico Jonathan Crary, um dos maiores pesquisadores dos regimes de visão e da hiperconexão, analisa profundamente a obra Parada de circo (1890-1891), do pintor francês George Seurat (1859-1891). Uma das partes mais interessantes de sua análise é a relação que estabelece entre a pintura com a reforma empreendida pelo compositor alemão Richard Wagner (1813-1883) na estrutura dos espetáculos de ópera, especialmente após a construção de seu teatro de festivais em Bayreuth.
Mas quais mudanças tão radicais foram empreendidas por Wagner para serem capazes de se refletir na obra de um pintor parisiense que nunca presenciou uma montagem de suas óperas em Bayreuth? Primeiramente é preciso entender a importância da ópera na sociedade do século XIX. A ópera era um grande evento social e os teatros onde se apresentavam os espetáculos eram praticamente todos construídos no modelo italiano onde um palco é rodeado por uma construção em forma de U, com uma plateia situada um pouco atrás da orquestra, que se posicionava à frente do palco, nos andares superiores, camarotes permitiam que as pessoas socializassem e observassem o que acontecia tanto no palco como na plateia.

Poderíamos dizer que as óperas se desenvolviam num clima parecido com o de um show de música pop nos dias de hoje: enquanto os artistas se apresentavam no palco, as pessoas na plateia bebiam, flertavam, conversavam e também prestavam atenção em suas músicas preferidas, pois o espetáculo durava horas e havia momentos em que o que acontecia no palco funcionava como fundo para um evento social. Wagner achava isso o fim, e, durante toda sua vida, empenhou-se numa cruzada para mudar essa situação.
Uma questão fundamental para Wagner era a atenção. Como bom megalomaníaco, não queria que os espectadores se distraíssem com nada que pudesse tirar a concentração no grande espetáculo criado por ele. Ele fazia parte de um grupo de compositores românticos da época que estava muito preocupado com a música do futuro, com avanços em relação aos modelos formais herdados do classicismo e também em fazer uma distinção entre a música séria que deveria ser ouvida com reverência num clima de devoção e a música de entretenimento que fazia parte da vida mundana. Claro que Wagner situava suas composições no âmbito da música elevada, que servia para edificar e promover a transcendência do ser humano ao elevar a consciência além das mesquinharias da vida comum. Essa música deveria ser ouvida em total silêncio e concentração e um dos meios utilizados pelo compositor para esse intento foi mudar radicalmente a estrutura da encenação de suas óperas.
Tradicionalmente, desde o seu início, no Renascimento, a ópera era composta por diversos números, ou seja, partes separadas que se uniam para formar um todo inteligível (às vezes nem tanto). Havia partes onde os cantores eram solistas (as famosas árias), partes onde se cantava em conjunto (duetos, trios e ensembles), interlúdios orquestrais e balés. Wagner também compôs diversas óperas nesse esquema tradicional, mas a partir de certa fase de sua vida resolveu mudar tudo. Planejou a construção de um teatro com condições cênicas e acústicas especialmente projetadas para exibição de suas óperas, esse teatro seria um centro de difusão da sua música, abrigando festivais, onde em dias seguidos, o público participaria de uma experiência imersiva e catártica em espetáculos que conjugariam todas as formas de arte unificadas. Wagner chamou esse novo modelo de gesamtkunstwerk ou obra de arte total. O compositor batalhou durante muito tempo para conseguir fundos necessários à empreitada gigantesca, que só foi possível graças ao apoio do rei Ludwig II da Baviera que era devoto incondicional dos ideais wagnerianos e de várias sociedades wagnerianas ao redor do mundo, inclusive nosso imperador na época, D. Pedro II, contribuiu para a construção e esteve presente na cerimônia de inauguração.
A cidade de Bayreuth, na Alemanha, foi escolhida para sediar o teatro e a pedra fundamental foi lançada em 1872 sendo a inauguração em 1876. Mas o que torna o projeto desse teatro tão peculiar, primeiramente a posição da plateia, não há mais divisões hierárquicas entre os lugares, todas as cadeiras são dispostas de frente para o palco formando um semicírculo e proporcionado uma visão frontal do espetáculo para todos os espectadores, a orquestra é colocada em um fosso ficando invisível para o público e proporcionando uma aura mística à encenação, o palco fica atrás de três proscênios que criam uma ilusão a respeito da distância entre plateia e palco fazendo parecer que o cenário e os cantores tem um tamanho muito maior que o real e por fim durante as apresentações todas as luzes da plateia são apagadas, transformando o palco em uma tela luminosa. Esses procedimentos, tão comuns nos teatros de hoje em dia foram uma verdadeira revolução no século XIX, as pessoas se viram hipnotizadas pelas realizações de Wagner e a fascinação pela figura do compositor tomou proporções de um verdadeiro culto, o Wagnerismo.

Na música, as mudanças não foram menos radicais, Wagner eliminou todas as separações em números, tradicionais aos espetáculos de ópera desde sua criação, a ação se desenvolve de modo ininterrupto como no teatro, as vozes participam da composição do mesmo modo que os instrumentos da orquestra e a grande inspiração para essa condução sinfônica de uma estrutura que sempre privilegiou a exibição vocal em números foi Beethoven. Wagner, assim como vários compositores do romantismo, queria ser o herdeiro do legado de Beethoven e falava muito no conceito de melodia infinita como fio condutor de uma composição, esse conceito tirado das sinfonias de Beethoven, permitiria a construção de todo um ato de uma ópera combinando organicamente cantores e orquestra. É interessante notar que ao se valer dessa tradição sinfônica para sustentar suas teorias Wagner estava procurando uma justificativa que não gerasse nenhuma dúvida a respeito da integridade de suas intenções. Se pensarmos no universo da ópera como um meio onde tudo sempre foi regido pela melodia e pelos gênios melódicos como Gluck, Mozart e Bellini, entre outros, a opção de Wagner por se abrigar na sombra do gigante Beethoven para justificar suas reformas foi realmente um recurso inteligente. Vale uma comparação entre os dois compositores, Beethoven não era um ás da melodia, suas composições se apoiam muito mais numa estrutura harmônica que define o pathos da obra do que em ideias melódicas contrastantes como acontece em Mozart, Claro que há melodia em Beethoven, mas o recurso que cria o envolvimento psicológico do ouvinte com as ideias do compositor é a harmonia. Wagner, mesmo com a melodia infinita e com os leitmotifs também consegue a caracterização psicológica de suas personagens através de recursos harmônicos radicais os quais na ópera Tristão e Isolda, por exemplo, chegaram ao limite expressivo do sistema tonal, criando uma ruptura que abriu as portas para a música do século XX. Nesse sentido temos que concordar que Wagner estava certo ao se intitular herdeiro de Beethoven merecendo com honra esse privilégio.
Voltando ao teatro de Bayreuth, a ideia inicial de Wagner era uma construção simples que durasse o período do festival e depois fosse demolida, também não seria cobrado ingresso do público que seria formado por estudantes e amantes de música. Essa ideia foi logo abandonada e o Festpielhaus tomou as proporções que conhecemos hoje. Esse teatro que pretendia ser o que havia de mais avançado no mundo da música, curiosamente tem uma semelhança com o teatro de ópera mais antigo da Europa. O Teatro Olímpico de Vicenza foi um dos primeiros teatros cobertos no continente europeu, foi inaugurado em 1585 e projetado pelo arquiteto Andrea Palladio. A similaridade com o teatro de Bayreuth é impressionante, temos a plateia disposta em semicírculo com o público todo de frente para o palco, o qual também cria uma ilusão visual para a audiência (aqui de perspectiva) e no projeto do teatro a ideia de um festival que igualasse o público em um evento comunitário também era similar aos ideais primários de Wagner.

Os teatros construídos depois, em toda Europa, aboliram esse ideal de congregação social, substituído por uma hierarquização do espaço onde cada classe social ocupava seu lugar distinto e estanque. Algo parecido aconteceu em Bayreuth após a inauguração, a seita Wagneriana começou a se referir à colina onde se situa o teatro como lugar de peregrinação, palavras como “culto” e “iniciados” começam a aparecer nos ensaios sobre as representações das óperas e uma espécie de muralha fictícia começa a ser erguida para separar a grande arte realizada ali da arte popularesca e de massa. Isso tudo nasceu dos escritos e palestras de Wagner. Nem vou falar da sombra racista e xenófoba que até hoje mancha o passado do local, essa história já é bem conhecida.
Chegamos por fim a Seurat e sua Parada de Circo. O quadro mostra uma cena onde músicos de rua se apresentam em um palco improvisado.
A pintura tem um caráter fantasmagórico, os efeitos de luz sugerem uma iluminação vindo de trás e de cima, segundo Crary a figura andrógina do trombonista faria referência às caricaturas que representavam Wagner e seus discípulos como trombonistas loucos, também observa que o zero no fundo do palco lembra a forma de um anel e cita o mito do anel dos Nibelungos como símbolo do poder do dinheiro e da corrupção.

Seurat tinha o hábito de pintar as molduras de seus trabalhos com cores complementares e seu amigo Emile Verhaeren conta que o pintor sabia que em Bayreuth o teatro ficava todo escuro antes do palco aparecer iluminado, como um foco solitário da atenção, Seurat então passa a pintar suas molduras de cores mais escuras o que nos leva a imaginar que o pintor também estava preocupado com estratégias de direcionamento da atenção. Parada de Circo pode ser vista como uma possível crítica aos modelos de transformação da experiência artística em uma espécie de ritual de transcendência e unificação social já impossível na sociedade industrializada do século XIX.
Aqui cito textualmente as palavras de Crary: “se existe uma crítica latente ao wagnerismo em Parada de circo, ela não está no fato de representar uma imagem de entretenimento popular do submundo urbano, que se contraporia às pretensões reverenciais de seus amigos wagnerianos. Mesmo os comentadores com mais consciência de classe não identificariam ali uma celebração da cultura urbana de rua. Antes, Parada de circo poderia ser entendida como um desmantelamento implacável do modelo wagneriano de espetáculo; como uma paródia amarga e um desmascaramento de sua tentativa, de combinar o mito e a música como ritos sociais e de valorizar a obra de arte como figuração de uma comunidade unificada em formação”.
Podemos pensar em como o legado de Richard Wagner se cristalizou em um culto autorreferente, cuja Meca é a colina de Bayreuth, mas também em como as inovações cênicas e musicais do compositor fertilizaram todo o mundo do espetáculo chegando até a música atonal. Wagner influenciou a arquitetura das salas de cinema, que ainda eram uma novidade no movimento em que o compositor propôs sua revolução cênica. Os cinemas emulam seu Teatro de Festivais, com seu palco luminoso que capturava o olhar absorto da burguesia do século XIX. No século XXI, quando as telas de celulares e tablets concentram e dispersam em uma antítese constante e exaustiva, ainda é do cinema o papel de tela luminosa imersiva, capaz de capturar e concentrar o nosso olhar.
Autor
Relacionado
Artista visual, pianista e colunista de música clássica da #RevistaCaju.